Canaviais


 

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I

O tardio capital estrangeiro atravessa os mares em forma de fábrica ocupando os campos com brêdos de flores roxas. Mais uma vez o canavial se incinera na chegada da safra e suas labaredas estralam ao ebulir o caldo açucarado acordando as crianças das ruas e os coiotes nos escritórios. Nuvens de muriçocas e pixilinguis e maruins tomam as ruas no fim da tarde em mais uma vez a cidade com sonhos industriais e com escapamento automotivo e cortes verticais de aço inox em direção ao vermelho céu e o sol gema de ovo. Sempre como norteador as presepadas dos chefes municipais com nepotismos e cartéis e agiotas como mecanismo eficiente de coerção social e especulação sobre como se constrói e como se faz e como se trai. E no cardápio do dia um exemplo formidável de nossa gastronomia exótica e errônea de frettuccine ao creme de jerimum acompanhado com elevados índices de violência e prostituição infantil e analfabetismo funcional e como sobre-mesa frapê de araçá com marketing governamental.

II

E essa mistura de miserê noticioso e poético urbanóide esconde que dentro dos canaviais há separação de miolos em segundos onde foices e peixeiras temperam o córtex no embate do corte da cana de quatro toneladas dia no chão e a safra em que alguns não se safam nos atropelos dos tratores e treminhões em morros de massa pê onde acontecem a última trepada boia-fria e nas encruzilhadas existem dezenas de centenas de pequenas cruzes pintadas de azul e branco e anúncios de ticoqueiros  e lambais e corumbas  e cambindas mortos. E mulheres beatas rezam e revezam diante de velas acesas e acenos de pavor quando as palavras se diluem em significados distantes e não trazem mais certezas. Na capela santos e sonhos e senhores entre o perdão e pendão e o punhal quando fé e facão e fuzil passam a se derivar da mesma origem do mesmo início e difícil acordar.

 

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Caosnavial

 

Ouro branco

CANA

CAIANA

CAIADA

DE SANGUE

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Verde Sangue

BRAÇADA

ENCHADA

REVOLTA

O CHÃO QUE BROTA

 

Mascavo

NESTES CANAVIAIS

SEIS MILHÕES DE NEGRO FORAM SORVIDOS

É IMPOSSÍVEL

ESSE CAFÉ NÃO DESCER AMARGO.

 

Moenda

CALDO

DE HOMEM

O QUE SOBRA

É OSSO.

 

Rapadura

O CALDO ENDURECE

O HOMEM TAMBÉM.

 

Procissão

NO ENCONTRAR DOS CAMINHOS

NÃO É LUGAR PRA SANTOS

A REZA É MANDINGA DA BRABA

FUMO, VELA, CACHAÇA NA ENCRUZILHADA

 

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RESTAURO:

A existência brotou do silêncio através de um berro criativo na enorme espiral trilhando a potência guia – surgi daí minha anarquia.

No univerno existe inúmeros compassos, dês/compassos, ritmos simultâneos, sem contradição, direções distintas ao mesmo tempo do mesmo corpo, sem anulação e tudo mantido pelo tempo. O tempo passa por nós, e sentimos seus efeitos, do passado e do futuro. Jorge Mautner.

Ao dizer a palavra, expressamos também a existência. Se edificarmos um viver mais amplo e integrado, também assim expressaremos a nossa palavra. Roberto Crema.

O mundo real não se manifesta através da álgebra, Geometria ou física, mas mostra-se no seu todo. Do mesmo modo o homem e sua ação não se manifestam independente de seu entorno natural, social, cultural e emocional. Ubiratam Ambrósio.

 

 

pendões floriram no verde silêncio

pássaros – meus filhos legítimos com a ave óvni virgem

degustam a brisa & o pôr-do-sol & várzeas & vertigens & cogumelos & lírios & chás & chãs

ao longe pés de ipês flocam os restos da mata com o seu próprio sol

irmãos de fluxo & flúido o capibaribe-mirim & o tracunhaém na simbiose das águas

jovens fugitivos do concreto cortam bambus & jangadeiam no açude imitando jacarés de papo amianto num dia de sol & de nuvens também sobre seixos & segredos & sexos & schitosomas

miragens de monstros guaiamuns  arrasando sob as patas oito igrejas de calcário sinistros calvários de negro sisudos mas o perdão por essas terras unem os desejos de viver

verdes vergeis de angico & vajucá & jurema preta & branca assombrações do jaraguá

oxum exu axé xângo xamã

pretos antiguíssimos deuses ainda mais caboclo de urorubá elús & ebós

astronautas baixam num ponto-ponte canto-iluminado num toré-profano-colérico-esperanto

a tecno-umbanda soa nas periferias nos seus terreiros-terraços de pouso & donwload’s de mistérios

simultaneidades antropofágicas da cibernética num presente tempo líquido onde um otimismo embutido chora & delira em nosso carnaval shivaísta–dionísico brasileirificando o mundo

um buraco negro no centro do caminho de leite brinca de baba das super-novas & pesadas senhoras anãs vermelhas imaginam nebulosas sedentas & brilhantes & brincantes & sensuais produtoras de sóis que inutilmente iluminam a matéria escura “mas o essencial é invisível aos olhos” porque a alma não tem cor

o novo modo de olhar & buscar & decifrar é através das fissuras & rasuras & brechas & fendas do pensamento em nós em mosaicos & re/plugados através do umbigo de gaia & na mente de maia & no samba de shiva & no pão de cristo &

yin-yang-jung-engenho cumbe & harebol-beleza-de boa-a toda-cantando loa & axé-odara & kaos com k & quilombo de catucá negro malungo nas banda de cá & negro zumbi de palmares nas bandas de lá & todos os anjos & demônios & deuses & eu tocando & cantando & dançando numa espiral de luz & poesia é vida seja falada ou escrita & escrever é um ato sagrado & recitar é imitar deus e estar aqui é ser o diabo & krishna dança maracatu e vi a calunga nas mãos de zeus & exu declama no megafone o poema que virou prece & a jurema sagrada abre os braços e sacia minha sede com a seiva dos astros & o yorubá tatua no peito o símbolo do tao caça um mantra na mata no silêncio do sol & uma procissão em confetes e serpentinas reza dançando para cristo-tupã & alfaias despertam brahma e este passeia num bumba-meu-boi & um xamã traga um arco-íris e dilata a pupila de osíris & na dança circular da pacha mama e iemanjá tocam rabeca e pandeiro alá e jah.

AUM-OM-UM

 

 

Philippe Wollney

Goiana,  03 de fevereiro de 2011

 

 

 

 

 

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Philippe Wollney é poeta. Na cidade de Goiana, Zona da Mata de Pernambuco, faz parte do Movimento Silêncio Interrompido, que realiza desde 2006 atividades de recitais, saraus, intervenções e provocações artísticas na região. Sua poética integra os universos simbólicos do rural e do urbano, trazendo uma interpretação contemporânea da região. Philippe atualmente tem como projeto poético a síntese dos elementos existênciais-estéticos-políticos de sua vida, dialogando inseparavelmente com o entorno de onde a sua poesia brota. Tem poemas publicados em Antologia Poética Goiana Revisitada, 2012; Antologia Poética Cem Poetas Sem Livros, 2009; Concurso Nacional Novos Poetas [http://www.concursonovospoetas.com.br/], Prêmio Sarau Brasil, 2012 e I Prêmio Sepé Tiaraju de Poesia Iberoamericana, 2009 [http://www.cultura.gov.br/site/2009/08/07/premio-sepe-tiaraju-de-poesia-ibero-americana/]. PELO ESPAÇO PORTA ABERTA  [http://issuu.com/poemasdeumeucretino] Publicou os seguintes e-book’s: O Morcego; Tecer : Quatro poemas de Costura; Poemas de um eu cretino; Grão de Luz. Email: philippewollney@yahoo.com.br

 

 




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