A poética do olhar
.
Inéditos
.
TEORIA DO POEMA
.
Felizmente
A poesia não vai salvar o mundo
Sequer nos vai salvar de nós mesmos
A poesia a nada serve senão à vaidade
Senão ao egoísmo
Senão ao ócio
Travestido de vocação estética
A poesia deve escorrer como pus
Porque dele é feita
Dele e de outros fluidos dispensáveis
Ao corpo
Inerentes ao coletivo
Inevitáveis à vida fora da matéria
Viver de poesia é mentir para um mundo
Que lhe dá tapinhas nas costas
E lhe põe chifres nas fotos com os amigos
Viver a poesia é agonizar todo dia
Extraindo prazer de um torniquete interminável
Mal aventurados os que sonham com a imortalidade lírica
Serão os primeiros a perecer na memória fria /fugidia/
do espetáculo
Da poesia não espero nada, mas
Poder agredir, incomodar e humilhar
Meu próprio corpo e meu próprio plasma
Que pouco ou nada
Tem podido por mim
.
ÍNTIMO DA MORTE
.
Quieto e recolhido
No escuro dos olhos contidos,
Sorvo em goles curtos
O solfejo de notas plenas
Que o vento sopra no vão da noite estática
Busco, num inquieto projeto
Urdir o manto da calada
Em fonemas soltos constituintes
Da voz de algo que não se realiza
Súbito, ouço sussurrar no tímpano
Uma lamúria lânguida e úmida
A língua dos cravos de uma urna funéria
Flertando com meus hormônios do sábado
Gotejado e ermo
***
Ela murmurou:
– Vinde a mim, escriba
Antes que a letra se faça fato
Olha teu redor com zelo
Nada há que esboce sentido
Se nada há, então,
Hora faz-se logo por partir
Mas vai contestar meu clamor
E há de urgir o silêncio da trombeta
Não reconheci minha hora
E tencionei calar a morte
Ela retrucou:
“Foi-se”
Era tarde, eu bem sabia
A morte lambia meu lóbulo
Sorria
E pairava de lado a lado
Pendendo o cabo de sua
Foice
***
A pele seca e fria da face
Apelava aos meus desejos cancros
A cópula perfeita da vida vaga
Com a verme in-vida da sexy morta
Amparado pelos ossos mortos
Essa morte seduzia e se despia
Olhei em torno, entumecido
E nos olhos dela li:
“Foi-se”
E de toda a pele ressequida
E berne
Senti o frio e o fogo
De sua
Foice
***
Algum amante sonhara em ser
O amante perfeito da dama do fim?
Algum amante são calculara
A cópula com sua morte amante?
A mesma que fremia orgástica
Nas estocadas do falo
Clamando:
“Foi-se”
E rajava nas costas do outro
Com unhas cadáveres a marca certa
E larga tal qual a verga de sua
Foice?
***
A barca da morte singrando
Este lago de lodo, a vida
Roçando os pelos na face
do morto, ainda que em vida
Esta cópula pura inundada de gânglios
Sua voz rouca de câncer urrando:
“Foi-se”
E a morte roça, esguia e seca
Meu supremo mote com sua
Foice
***
Esta carne processada e posta
Na lata de um ser que é e não
O é, que deseja e zera-
Se
E deita-se com a derradeira visita
Dizem que jaz:
“Foi-se”
A mariposa caveira leva em seu torso
A metamorfose /vida/ junto da morte
Com asas translúcidas que guinam no ar
E lamentam o som da
Foice
***
Sou eu, esta megera,
Como dos Anjos o dissera
Que limpo a Terra desde de
1 de janeiro e não me importa
o mundo inteiro
posto que o mundo inteiro
nunca basta
E sigo tolhendo o sonho e o plano
E bradando:
“Foi-se”
Quando a febre se abate no corpo
E o sangue contaminado
Maldiz o segmento da vida
E beija o gume de sua
Foice
***
Esbeltabsoluto
Coice
Que me sussurra sua
Foice
Me delita sua noite
E estupenda, solene, absoluta grita e brada
A luta obliterada e morta, clama:
“Foi-se”
era o passado?
Foice
***
Olhei o espectro do pai morto
Com laivos de censura
Humilhando a vida terrena
E gabando-se da
Foice
No fim da linha
Quando a morte sorriu de novo
Montada a cavalo roído e carcomido
Por sua própria
“Foi-se”
***
E para zerar em paz
Quando nada no sentido há
E nunca lá se chega pleno
E nevermore se faz de brado
À vida toda asfixiasma
Tonta e saco de vacilos
Vida inútil que nada o é
Passa o fim essa
Foice
“Foi-se ?”
.
I HAVE A DREAM ou O NORMÓTICO
sonho em ser humilhado em público
linchado na moral e desacreditado
xingado
por homens, mulheres, velhos e crianças
ser chacota de artistas, cineastas e poetas
ser galhofa da turma da escrita
desfilar na rua ao som da vaia
com faixas de frases acintosas ao meu nome
Ter a conta negativada e o empréstimo negado
Ser traído por parentes, mulheres e amigos
despejado para longe, debaixo de uma ponte
Ser cuspido por pedir esmolas que vão
comprar nosso crack de cada dia.
E então saberei, enfim, depois de tudo,
que não sou um alienígena
Saberei que tudo está comum
Que tudo segue igual
Que o que vai à volta é isso
E que sou, tão só, um normal
.
***
.
.
Do livro Zero nas veias (2015)
.
.
ESTAÇÃO CONSOLAÇÃO
é no momento
de maior necessidade coletiva
que conhecemos
nossos piores lados
.
MANGARATIBA
.
Três pobres diabos
soltos à deriva no espelho imenso
no infindo mar
Presos no fundo de memórias
arrependidas
Presos nas linhas mal traçadas
de uma trama transversal
paralela, de erros e somente erros
Presos numa clepsidra de madeira
e em cada gota que invade o casco
Enquanto o óbvio abraça
cada um a bordo
e lança-lhes o olhar do fim certeiro,
Satie executa-lhes a trilha
do mergulho final
.
A prudência de se ficar trancado em casa
.
A inutilidade não deveria
Ter pernas para sair a passear
De mãos dadas com a inépcia
Bloqueando portas
Passagens
Escadas
Vias
E calçadas
Atrasando a vida que passa
Curta demais para esta cidade
E dando cria por auto inseminação
Bilhões de vezes por segundo
A cidade está suja
De pobreza do espírito
Única moléstia
Sem cura
.
Calado já está errado
.
“Existe amor em São Paulo”,
Clama a cafonice
E me pergunto:
Quem perguntou?
.
CINEMA DE AUTOR
.
As imagens correm
Pela grifa da retina
que sonha
As palavras correm
na folha do roteiro
infilmável
No cenário que se imagina
Pairam sombras de um
Elenco inexistente
Os produtores vilões
Vetam as chances
Antes do produto final
A edição não se conclui
O último corte
É uma faca cravada
Na criação e nos
Planos longos
Os enquadramentos
Estão errados
Desfocados
Tortos
Mal calculados
Não pode haver poesia
Além daquela com
Personagens reais
Que só existem
Na ponta de uma pena
teleobjetiva
.
Donny Correia, poeta e cineasta, é mestre e doutorando em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Letras – tradutor e intérprete pelo Centro Universitário Ibero-Americano (Unibero). Realizou os curtas experimentais Anatomy of decay, Braineraser, Totem (selecionado para a 34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e Prêmio Canal Brasil) e In carcere et vinculis. Publicou os livros de poesia O eco do espelho (2005) , Balletmanco (2009), Corpocárcere (2013) e Zero nas veias (2015); Junto com Marcelo Tápia, organizou o livro Cinematographos de Guilherme de Almeida, antologia da crítica cinematográfica (Ed. Unesp, 2016), para o qual fez a seleção de textos e as notas explicativas. É coordenador de programação da Casa Guilherme de Almeida. E-mail: donnycorreia@usp.br

Comente o texto