SONETOS SOBRENATURAES



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Ja tive opportunidade de confessar minha perplexidade ante o espiritismo. Meu pae era kardecista e, para satisfazel-o, até passei por cirurgia mediunica antes de ficar cego. Ainda que infructifera, a experiencia me impressionou positivamente, pois sempre tive tendencia à bruxaria e, branca ou negra, a magia me toca de perto. Si não fosse o moralismo evangelizador, a mystica espirita teria me attrahido bem mais, na certa.

Passadas quasi duas decadas de cegueira, ultimamente ando accommettido dum augmento no volume da prostata, que, segundo opiniões diversas, tem a ver com o accumulo de testosterona, ou, na interpretação de amigos proximos, com o “excesso de safadeza”. Ainda não recorri a um medico medium para tractar da hyperplasia prostatica dicta “benigna” (só mesmo um masochista chamaria de “benigna” uma mijada que parece um parto), mas sei de gente que deixou de soffrer disso depois que procurou um curandeiro.

Emquanto as mijadas ainda me são possiveis e supportaveis, tenho lidado com o espiritismo em termos mais litterarios. Outro dia desarchivei a pesquisa abaixo, para a qual escrevera a seguinte introducção:

{Não sou de mesa branca nem de terreiro, mas sou bruxo, e “que las hay, las hay”… Portanto, não poderia deixar de registrar alguns exemplos tirados do famoso livro PARNASO DE ALEM-TUMULO (1932), creditado à mediunidade de Chico Xavier. É claro que não posso concordar que um Bocage, o maior auctor de sonetos sacanas em lingua portugueza, tenha-se arrependido e, no celebre soneto dictado na agonia final, feche com a chave “Rasga meus versos, crê na eternidade!”: ora, para crer na eternidade não é preciso rasgar nada, nem deixar de fazer versos! Pelo contrario: é mais comfortador crear sabendo que a obra pode perdurar indefinidamente. Acho, pois, muito extranho que não se publiquem sonetos sacanas psychographados (siquer no caso de Emilio de Menezes), o que me cheira a censura doutrinaria. Pessoalmente, depois de morto pretendo continuar a compor meus versos desboccados, e quero transmittil-os para o lado de ca sem necessidade dum “nihil obstat”. Mas isso tem tempo, ja que não espero morrer tão cedo. Deixo, por emquanto, minha resposta em soneto aos “arrependidos” e minha homenagem aos immortaes fallecidos, juncto com meu respeito aos crentes divergentes e a devida gratidão aos psychographos, sem os quaes, etc. Bemdictos sejam!}

Chico Xavier é mesmo phenomenal. Nem fallo do resto: basta-me a façanha de psychographar sonetistas de differentes estylos e estheticas, arremedando o dominio que cada auctor tinha das normas de versificação (e dos mechanismos de transgressão dessas normas), embora elle proprio, o Chico, fosse tão joven e tão despreparado nas lettras. Mesmo que estivesse clandestinamente assessorado por uma equipe de academicos (hypothese que, por si, ja seria absurda), teria que contar com especialistas em cada eschola poetica, cuja vaidade os impediria de guardar segredo sobre tal assessoria, não lhes parece?

Em todo caso, reproduzo aqui alguns exemplos typicos, não só da personalidade de cada sonetista defuncto, mas da attitude mais ou menos reverente de cada um face à sobrevivencia da alma desencarnada: Alberto de Oliveira, Alphonsus de Guimaraens, Antonio Torres, Arthur Azevedo, Augusto dos Anjos, Auta de Souza, Baptista Cepellos, Cruz e Souza, Emilio de Menezes, Hermes Fontes, Luiz Guimarães Junior, Olavo Bilac, Dom Pedro II, Raymundo Correa e Raul de Leoni. Tirem vocês suas conclusões e procurem mais exemplos, si necessario, no PARNASO DE ALEM-TUMULO… A mim bastam estes, cuja integridade procurei resgatar de successivas transcripções truncadas ou capengas. À guisa de epigraphe, abro com um dos meus.
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SONETO DA DEFESA DE THESE [Glauco Mattoso]

Sonhei que minha these defendia
e a banca era formada só por quem
ja tinha fallecido: a poesia
julgada pelos que, de facto, a leem…

Luiz, Gregorio, Emilio… A turma lia
meus versos e o que nelles se mantem:
em termos de thematica, a ironia,
e em termos de rigor formal tambem…

Bocage, ou Madragoa, me questiona
si quero ser lembrado pela conna
que falta ou pelo pé que me sobeja…

“Da conna”, digo, “todos teem cuidado,
e o pé tem muito callo a ser tractado…”
E todos votam que approvado eu seja…

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AJUDA E PASSA [Alberto de Oliveira]

Extende a mão fraterna ao que ri e ao que chora:
O palacio e a choupana, o ninho e a sepultura,
Tudo o que vibra espera a luz que resplendora,
Na eterna lei de amor que consagra a creatura.

Planta a bençam da paz, como raios de aurora,
Nas trevas do ladrão, na dor da alma perjura;
Irradia o perdão e attende, mundo afora,
Onde clame a revolta e onde exista a amargura.

Agora, hoje e amanhan, comprehende, ajuda e passa;
Esclarece a alegria e consola a desgraça,
Guarda o anseio do bem que é lume peregrino…

Não troques mal por mal, foge à sombra e à vingança,
Não te afflija a miseria, arrima-te à esperança.
Seja a bençam de amor a luz do teu destino.

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DO ULTIMO DIA [Alberto de Oliveira]

O homem, no ultimo dia, abbattido em seu horto,
Sente o extremo pavor que a morte lhe revela;
Seu coração é um mar que se apruma e encappella,
No pungente estertor do peito quasi morto.

Tudo o que era vaidade, agora é descomforto.
Toda a nau da illusão se destroça e esphacela
Sob as ondas fataes da indomita procella,
Do pobre coração, que é naufrago sem porto.

Somente o que venceu nesse mundo mesquinho,
Conservando Jesus por verdade e caminho,
Rompe a treva do abysmo engannoso e perverso!

Onde vaes, homem vão? Cala em ti todo alarde,
Foge dessa tormenta antes que seja tarde:
Só Jesus tem nas mãos o pharol do Universo.

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REDIVIVO [Alphonsus de Guimaraens]

Sou o cantor das mysticas balladas
Que, em volutas de flores e de incenso,
Achou, no Espaço luminoso e immenso,
O perfume das hostias consagradas.

Almas que andaes gemendo nas estradas
Da amargura e da dor, eu vos pertenço,
Atravessae o nevoeiro denso
Em que viveis no mundo, amortalhadas.

Almas tristes de freiras e sorores,
Sobre quem a saudade despetala
Os seus lirios de pallidos fulgores;

Eu resurjo nos mysticos prazeres,
De vos cantar, na sombra onde se exhala
Um perfume de altar e misereres…

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SINOS [Alphonsus de Guimaraens]

Escuto ainda a voz dos campanarios
Entre aromas de rosas e assucenas,
Vozes de sinos pelos sanctuarios,
Enchendo as grandes vastidões serenas…

E seguindo outros seres solitarios,
Retomo velhos quadros, velhas scenas,
Rezando as orações dos Septenarios,
Dos Officios, dos Terços, das Novenas…

A morte que nos salva não nos priva
De ir ao pé de um sacrario abandonado,
Chorar, como ‘inda faz a alma captiva!

Ó sinos dolorosos e plangentes,
Cantae, como cantaveis no passado,
Dizendo a mesma Fé que salva os crentes!…

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NADA [Antonio Torres]

Nada!… Philosophia rude e amara,
Na qual acreditei, com pena embora
De abandonar a Crença que esposara,
– A minha aspiração de cada hora.

Crença é o perfume d’alma que se enflora
Com a luz divina, resplendente e rara
Da Fé, unica Luz da unica Aurora,
Que as trevas mais compactas nos aclara.

Revendo os dias tristes do Passado,
Vi que troquei a Fé pela Ironia,
Nos desvios e excessos da Razão;

Antes, porem, não fosse tão ousado,
Pois nem sempre a Razão profunda e fria
Allivia ou consola o Coração.

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MINIATURAS DA SOCIEDADE ELEGANTE [Arthur Azevedo]

I

Hadriano Gonçalves de Macedo,
Homem de cabedaes e alma sem siso,
Penetrou no seu quarto com um sorriso
Às dez horas da noite, muito a medo.

Uma charta de amante – era um segredo –
Ia abril-a, e, assim, era preciso
Que a sua esposa, dama de juizo,
Não a visse nem mesmo por brinquedo!

Dona Coralia Augusta Collavida
Estaria nessa hora recolhida?
Levantou a cortina, devagar…

Mas, que tragedia apoz esse perigo…
Viu que a esposa beijava um seu amigo,
Sobre o divan da sala de jantar.
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II

No bello palacete do Furtado,
Palestrava a galante Mariquita
Com um pelintra affectado, assaz catita,
Bacharel delambido e enamorado.

De sobre a grande commoda bonita,
Toma o moço um livrinho encadernado,
Revirando-o nas mãos, interessado,
Mas a joven retoma-o, muito afflicta:

– “Esse livro, Antonico, é meu breviario!”
Diz inquieta. E elle, cynico e falsario,
Arrebatta-o às frageis mãos trementes:

Abriu-o. Mais o olhava e mais se ria…
Era um compendio de pornographia,
Recamado de quadros indecentes.
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III

Dom Castilho, notavel latinista,
Realizara alentada conferencia,
Sobre rigido assumpto moralista,
Protegido dos membros da regencia.

Foi um successo. E a esposa Anna Fulgencia,
Nelle via uma grande alma de artista,
Louvando-lhe a utilissima existencia
De homem probo e famoso publicista.

Que primor de moral! e os companheiros
Escriptores, poetas, conselheiros,
Foram levar-lhe o abbraço camarada.

Numa corrida louca, esses senhores
Foram achal-o em seus trajes menores,
No apartamento escuro da creada…

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HOMO II [Augusto dos Anjos]

Apoz a introspecção do Alem da Morte,
Vendo a terra que os proprios ossos come,
Horrente a devorar com sede e fome
Minhas carnes em lubrico transporte,

Vi que o “ego” era o alento flammeo e forte
Da luz mental que a morte não consome.
Não ha lucta mavortica que o dome,
Ou venenada lamina que o corte.

Depois da estercoraria microbiana,
De que o planeta triste se engalana
Nas grilhetas do Infinitesimal,

Volve o Espirito ao paramo celeste,
Onde a divina essencia se reveste
De uma substancia fluida, universal.

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EGO SUM [Augusto dos Anjos]

Eu sou quem sou. Extremamente injusto
Seria, então, si não vos declarasse,
Si vos mentisse, si mystificasse
No anonymato, sendo eu o Augusto.

Sou eu, deste intellecto meu de arbusto,
Que jamais cri, e por mais que o procurasse,
Quer com Darwin, com Haeckel, com Laplace,
Levantar-me do leito de Procusto.

Sou eu, que a rota etherica transponho
Com a rapidez phantastica do sonho,
Inexprimivel ante as theorias,

O mesmo triste e estrabico producto,
Atramente a gemer a magoa e o lucto,
Nas mais contrarias idiosyncrasias.

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RAÇA ADAMICA [Augusto dos Anjos]

A Civilização traz o gravame
Da origem remotissima dos Aryas,
Estirpe das escorias planetarias,
Segregadas num mundo amargo e infame.

Arvore genealogica de parias,
Faz-se mester que o carcere a conclame,
Para a reparação e para o exame
Dos seus crimes nas quedas millennarias.

Foi essa raça podre de miseria
Que fez nascer na carne deleteria
A esperança nos Céus inesquecidos;

Glorificando o Instincto e a Intelligencia,
Fez da Terra o brilhante gral da Sciencia,
Mas um mundo de deuses decahidos.

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ESPIRITO [Augusto dos Anjos]

Busca a Sciencia o Ser pelos ossuarios,
No orgam morto, impassivel, atro e mudo;
No labor anatomico, no estudo
Do germe, em seus impulsos embryonarios;

Mas só descobre os vermes-funccionarios
No seu trabalho infame, horrendo e rudo,
De consumir as podridões de tudo,
Nos seus medonhos agapes mortuarios.

Em meio às sepulchraes cadaverinas
Encontra-se ruina entre ruinas,
Como o bolor e o mofo sob as heras;

A alma, que é Vibração, Vida, ou Essencia,
Está na Luz, terá sobrevivencia
No transcendentalismo das espheras.

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CONFISSÃO [Augusto dos Anjos]

Tambem eu, misero espectro das dores
No escaphandro das cellulas captivas,
Não encontrei a luz das forças vivas,
Apesar de ingentissimos labores.

Bem distante das causas positivas,
Na visão dos microbios destruidores,
Senti somente angustias e estertores,
No turbilhão das sombras negativas.

Foi preciso “morrer” no campo inglorio,
Para encontrar esse laboratorio
De belleza, verdade e transformismo!

A Sciencia sincera é grande e augusta,
Mas a Fé, só, na estrada eterna e justa,
Tem a chave do Céu, vencendo o abysmo!…

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ACTUALIDADE [Augusto dos Anjos]

Torna Caim ao fausto do proscenio.
A Civilização regressa à taba.
A força primitiva menoscaba
A evolução omnimoda do Genio.

Trevas. Canhões. Apaga-se o millennio.
A construcção dos seculos desaba.
Resurge o craneo do morubixaba
Na cultura da bomba de hydrogenio.

Mas, acyma do imperio amargo e exangue
Do homem perdido em pantanos de sangue,
Novo sol banha o pelago profundo.

É Jesus que, atravez da tempestade,
Traz ao berço da Nova Humanidade
A consciencia kosmica do mundo.

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HORA EXTREMA [Auta de Souza]

Quando exhalei meus ultimos alentos
Nesse mundo de magoas e de dores,
Senti meu ser fugindo aos amargores
Dos meus dias tristonhos, nevoentos.

A tortura dos ultimos momentos
Era o fim dos meus sonhos promissores,
Do meu viver sem luz, sem paz, sem flores,
Que se extinguia em atros soffrimentos.

Senti, porem, minh’alma soffredora
Mergulhada nas brisas de uma aurora,
Sem as sombras da dor e da agonia…

Então parti, serena e jubilosa,
Em demanda da estrada esplendorosa
Que nos conduz às plagas da harmonia!

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ADEUS [Auta de Souza]

O sino plange em terna suavidade,
No ambiente balsamico da egreja;
Entre as naves, no altar, em tudo adeja
O perfume dos goivos da saudade.

Geme a viuvez, lamenta-se a orphandade;
E a alma que regressou do exilio beija
A luz que resplandece, que viceja,
Na cathedral azul da immensidade.

“Adeus, Terra das minhas desventuras…
Adeus, amados meus…” – diz nas alturas
A alma liberta, o azul do céu singrando…

– Adeus… – choram as rosas desfolhadas,
– Adeus… – clamam as vozes desoladas
De quem ficou no exilio soluçando…

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TERCEIRO SONETO [Baptista Cepellos]

Sirva-vos de escarmento a dor que trago
Na minh’alma infeliz e soffredora,
Este padecimento com que pago
O desvio da estrada salvadora.

Aqui somente ampara-me esse vago
Presentimento de uma nova aurora,
Quando terei os bens, o brando afago
Da Luz, que está na dor depuradora.

Agora, sim! depois de tantos annos
De tormentos, em meio aos desengannos,
Espero o sol de novas alvoradas

De existencias de pranto e de miseria,
Para beber no calix da materia
As essencias das dores renegadas!

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A SEPULTURA [Cruz e Souza]

Como a orchidea de arminho quando nasce,
Sobre a lama ascorosa refulgindo,
A brancura das petalas abrindo,
Como si a neve alvissima a orvalhasse;

Qual essa flor fragrante, como a face
Dum cherubim angelico sorrindo,
Do monturo pestifero emergindo,
Luz que sobre negrumes se avistasse;

Assim tambem do tumulo asqueroso,
Evola-se essa essencia luminosa
Da alma que busca o céu maravilhoso;

E como o lodo é o berço vil de flores,
A sepultura fria e tenebrosa
É o berço de almas – senda de esplendores.

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ANJOS DA PAZ [Cruz e Souza]

Ó luminosas formas alvadias
Que desceis dos espaços constellados
Para lenir a dor dos desgraçados
Que soffrem nas terrenas gemonias!

Vindes de ignotas luzes erradias,
De lindos firmamentos estrellados,
Céus distantes que vemos, dominados
De esperanças, anseios e alegrias.

Anjos da Paz, radiosas formas claras,
Doces visões de ethericos carraras
Das quaes o espaço fulgido se estrella!…

Clarificae as noites mais escuras
Que pesam sobre a terra de amarguras,
Com a alvorada da Paz, dictosa e bella…

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ORAÇÃO AOS LIBERTOS [Cruz e Souza]

Alma embriagada do immortal falerno,
Segue cantando, no horizonte claro,
O teu destino esplendoroso e raro,
Cheio de luzes do porvir eterno.

Mas não te esqueças desse mundo avaro,
O escuro abysmo, o tormentoso Averno,
Sem as doces caricias do galerno
Das esperanças – sacrosancto amparo.

Volve os teus olhos ternos, compassivos,
Para os pobres Espiritos captivos
Às grilhetas do corpo miserando!

Abre os sacrarios da Felicidade,
Mas lembra-te bem do orbe da impiedade,
Onde venceste a carne soluçando.

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BELLEZA DA MORTE [Cruz e Souza]

Ha no estertor da morte uma belleza
Transcendental, ignota, luminosa,
Belleza sossegada e silenciosa,
Da luz branca da Paz, tremula e accesa…

É o augusto momento em que a alma, presa
Às cadeias da carne tenebrosa,
Abandona a prisão, dorida e ansiosa,
Sentindo a vida de outra natureza.

Um mysterio divino ha nesse instante,
No qual o corpo morre e a alma vibrante
Foge das abyssaes melancholias!…

No silencio de cada moribundo,
Ha a promessa de vida em outro mundo,
Na mais sagrada dentre as hierarchias.

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À DOR [Cruz e Souza]

Dor, és tu que resgatas, que redimes
Os grandes réus, os miseros culpados,
Os calcetas dos erros, dos peccados,
Que surgem do preterito de crimes.

Sob os teus pulsos, fortes e sublimes,
Soffri na Terra juncto aos condemnados,
Seres escarnecidos, torturados,
Entre as prisões da Lagryma que exprimes!

Da perfeição és o sagrado Verbo,
Ó portadora do tormento acerbo,
Afferidora da Justiça Extrema…

Bemdicta a hora em que me puz à espera
De ser, em vez do reprobo que eu era,
O missionario dessa Dor suprema!

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TUDO VAIDADE [Cruz e Souza]

Na Terra a morte é o tragico resumo
De vanglorias, de orgulhos e de raças;
Tudo no mundo passa, como passas,
Entre as alluviões de cinza e fumo.

Todo o sonho carnal vaga sem rumo,
Só o diamante do espirito sem jaças
Fica indemne de todas as desgraças,
De que a morte voraz faz seu consumo.

Nesse mundo de luctas fratricidas,
A vida se alimenta de outras vidas,
Num continuo combatte pavoroso;

Só a Morte é que abre a porta das mudanças
E concretiza as puras esperanças
Nos paizes seraphicos do gozo!

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EU MESMO [Emilio de Menezes]

Eu mesmo a perguntar-me estou si posso
Chamar-me ainda o Emilio de Menezes,
Procurando tomar o tempo vosso,
Recitando epigrammas descortezes.

Como hei de versejar? Rimas em osso
São difficeis… Comtudo, de outras vezes,
Eu sabia rezar o Padre-Nosso
E unir meus versos como irmãos siamezes.

Como hei de apparecer? O que é impossivel
É ser um sanctarrão inconcebivel,
Trazendo as luzes do Evangelho às gentes…

Sou o Emilio, distante da garrafa,
Mas que não se entristece e nem se abafa,
Longe das anecdotas indecentes.

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AOS MEUS AMIGOS DA TERRA [Emilio de Menezes]

Amigos, tolerae o meu assumpto,
(Sempre vivi do soffrimento alheio)
Relevae, que as promessas de um defuncto
São coisa ‘inda invulgar no vosso meio.

Apesar do meu cerebro bestunto,
O elo que nos unia, conservei-o,
Como a quasi saudade do presunto,
Que nutre um corpo empanturrado e feio.

Espero-vos aqui com as minhas festas,
Nas quaes, porem, o vinho não explode,
Nem ha cheiro de carnes ou cebollas.

Evitae as comidas indigestas,
Pois na hora do “salva-se quem pode”,
Muita gente nem fica de ceroulas…

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MINHA VIDA [Hermes Fontes]

Não pude comprehender o meu destino
Na amargura invencivel do passado,
Que amortalhou meu sonho peregrino
Nas trevas de um martyrio irrevelado.

Do soffrimento fiz o apostolado,
Como fizera da arte minha um hymno,
Procurando o paiz indevassado
Do ideal luminoso de Aladdino.

E fui de valle em valle, serra em serra,
Buscando a imagem fulgida, incorporea,
Do que chamamos – a felicidade.

Mas só colhi dos fructos maus da Terra,
As promessas pueris da falsa gloria,
O triste enganno, a van celebridade.

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VOLTANDO [Luiz Guimarães Junior]

Apoz a longa e frigida nortada
Da existencia no mundo de hinvernia,
Busquei contente a paz que me sorria
No fim da aspera senda palmilhada.

Voltei. Nova era a vida, nova a estrada
Que minh’alma extasiada percorria;
Divinal era a luz que resplendia,
Em reverberos lindos de alvorada.

De volta, e os mesmos seres que me haviam
Offertado na Terra amores sanctos,
Envoltos em ternuras e em carinhos,

Novamente no Alem me offereciam
Lenitivo às agruras dos meus prantos,
Nas caricias risonhas dos caminhos.

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SONETO ERRANTE [Olavo Bilac]

Por tanto tempo andei faminto e errante,
Que os prazeres da vida converti-os
Em poemas das formas, em sombrios
Pesadelos da carne palpitante.

No derradeiro somno, instante a instante,
Vi fanarem-se anseios como fios
Da illusão transformada em sopros frios,
Sobre o meu peito em febre, vacillante.

Morte, no teu portal a alma tacteia,
Espia, inquire, sonda e chora, cheia
De incerteza na esphinge que tu plasmas!…

Impassivel, descerras aos afflictos
Uma visão de mundos infinitos
E uma ronda infinita de phantasmas.

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AOS DESCRENTES [Olavo Bilac]

Vós, que seguis a turba desvairada,
As hostes dos descrentes e dos loucos,
Que de olhos cegos e de ouvidos moucos
Estão longe da senda illuminada,

Retrocedei dos vossos mundos ocos,
Começae outra vida em nova estrada,
Sem a idéa fallaz do grande Nada,
Que entorpece, envenena e macta aos poucos.

Ó atheus como eu fui – na sombra immensa
Erguei de novo o eterno altar da crença,
Da fé viva, sem carcere mesquinho!

Banhae-vos na divina claridade
Que promana das luzes da Verdade,
Sol eterno na gloria do caminho!

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O LIVRO [Olavo Bilac]

Eil-o! Facho de amor que, redivivo, assomma
Desde a taba feroz em folhas de granito,
Da India mysteriosa e dos louros do Egypto
Ao fausto senhoril de Carthago e de Roma!

Vaso revelador retendo o excelso aroma
Do pensamento a erguer-se esplendido e bemdicto,
O Livro é o coração do tempo no Infinito,
Em que a idéa immortal se renova e retoma.

Companheiro fiel da virtude e da Historia,
Guia das gerações na vida transitoria,
É o nume apostolar que governa o destino;

Com Hermes e Moysés, com Zoroastro e Buddha,
Pensa, corrige, ensina, experimenta, estuda,
E brilha com Jesus no Evangelho Divino.

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NO EXILIO [D. Pedro II]

Pode o céu do desterro ser tão bello,
Quanto o céu do paiz em que nascemos;
Nada faz com que o nosso desprezemos,
Acalentando o sonho de revel-o.

Todo o nosso ideal pomos no anhelo
De regressar, e voando sobre extremos,
Com o pensamento ansioso percorremos
Nosso amado rincão, lindo ou singello.

Jaz no desterro a plaga da amargura,
De acerba pena ao pobre penitente,
De amaro pranto da alma torturada;

A alegria no exilio é desventura,
É a saudade na ansia mais pungente
De retornar à patria idolatrada.

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BANDEIRA DO BRASIL [D. Pedro II]

Bandeira do Brasil, symbolo da bonança,
Emquanto a guerra estruge indomita e sombria,
Sê nos planos de lucta o signal de harmonia,
Espalhando no mundo as bençans da Esperança.

Assignalas, na Terra, o paiz da Alegria,
Onde toda a existencia é um hymno de abastança,
Guardas comtigo a luz da bemadventurança,
És o florão da paz, marcando um novo dia.

Nasceste sob a luz de um bem, alto e fecundo,
Nunca te conspurcaste aos embattes do mundo,
Buscando illuminar as luctas, ao vivel-as…

É por isso que Deus, que te ampara e equilibra,
Deu-te um corpo auriverde onde a paz canta e vibra,
E um coração azul, esmaltado de estrellas.

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PRIMEIRO SONETO [Raymundo Correa]

Tudo passa no mundo. O homem passa
Atraz dos annos sem comprehendel-os;
O tempo e a dor alvejam-lhe os cabellos,
À frouxa luz de uma ventura escassa.

Sob o infortunio, sob os atropelos
Da dor que lhe envenena o sonho e a graça,
Rasga-se a phantasia que o enlaça,
E vê morrer seus ideaes mais bellos!…

Longe, porem, das illusões desfeitas,
Mostra-lhe a morte vidas mais perfeitas,
Depois do pesadelo das mãos frias…

E como o anjinho debil que renasce,
Chora, chora e sorri, qual si encontrasse
À luz primeira dos primeiros dias.

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NA TERRA [Raul de Leoni]

Renascendo no mundo da Chimera,
Ao colhermos a flor da juventude,
É quando o nosso Espirito se illude,
Julgando-se na eterna primavera.

Mas o tempo na sua mansuetude,
Pelas sendas da vida nos espera,
Juncto à dor que esclarece e regenera,
Dentro da expiação extranha e rude.

E ao tombarmos no occaso da existencia,
Nós revemos do livro da consciencia
Os characteres grandes, luminosos!…

Si vivemos no mal, quanta agonia!
Mas si o bem practicamos todo o dia,
Como somos felizes, venturosos!…

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POST MORTEM [Raul de Leoni]

Depois da morte, tudo aqui subsiste,
Neste Alem que sonhamos, que entrevemos,
Quando a nossa alma chora nos extremos
Dessa dor que no mundo nos assiste.

Doce consolação, porem, existe
Aos amargosos prantos que vertemos,
Do conforto celeste os bens supremos
Ao coração desalentado e triste.

Tambem existe aqui a austera pena
À consciencia infeliz que se condemna,
Por qualquer erro ou falta commettida;

E a Morte continua eliminando
A influencia do mal, torvo e nefando,
Para que brilhe a Perfeição da Vida.

/// [28/5/2013]

 

 

 

 

 

 

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Glauco Mattoso (paulistano de 1951) é poeta, ficcionista e ensaísta, autor de mais de trinta títulos, entre os quais as antologias “VÍCIOS PERVERSOS: CONTOS ACONTECIDOS” e “POESIA DIGESTA: 1974-2004″, além dos romances “MANUAL DO PODÓLATRA AMADOR: AVENTURAS & LEITURAS DE UM TARADO POR PÉS” e “A PLANTA DA DONZELA”. E-mail: mattosog@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. joão antonio, Glauco Maravilhoso ensaio fizestes. Este assunto é pouco interessado aos acadêmicos, mas não é que tens razão quando diz que seria impossível para ele imitar estilos tão dispares. O Glauco ensaísta é tão bom quanto poeta. Meus parabéns meu caro, e que o Musa continue publicando seus textos por toda a vida, e quiçá além túmulo. abracadabraço joão antonio
    5 junho, 2013 as 3:41

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