UM KOAN AO CONTRÁRIO


 

 

 

 

A alma e o baú

 

Tu que tão sentida e repetida e voluptuosamente te entristeces e adoeces de ti,

é preciso rasgar essas vestes de dó,

as penas é preciso raspar com um caco, uma

por uma: são

crostas…

E sobre a carne viva

nenhuma ternura sopre.

Que ninguém acorra.

Ninguém, biblicamente, com os seus bálsamos e olores…

Ah, tu com as tuas cousas e lousas, teus badulaques, teus ais ornamentais, tuas rimas,

esses guizos de louco…

A tua alma (tua?) olha-te, simplesmente.

Alheia e fiel como um espelho.

Por supremo pudor, despe-te, despe-te, quanto mais nu mais tu,

despoja-te mais e mais.

Até a invisibilidade.

Até que fiquem só espelho contra espelho

num puro amor isento de qualquer imagem

– Mestre, dize-me… e isso tudo valerá acaso a perda de meu baú?

 

(Mario Quintana, in Apontamentos de História Sobrenatural, primeira edição, 1976)

 

 

 

Como se pode ler no poema acima de Quintana, estamos diante de um diálogo. Contudo, chama a atenção que a primeira fala não inicia por um travessão, que marcaria desde o princípio a fala de um, dando a entender que viria a seguir a fala de outro. Como não há o travessão, começamos a ler o poema como uma fala que se refere a um tu não especificado. Como não está determinado, e como o que é dito no primeiro verso tem um caráter universalizante, já entramos nessa interlocução, o tu pode ser eu mesmo, que estou lendo. Está falando comigo.

É fácil a gente se identificar. Afinal, quem não se entristece e adoece de si? Essa voz que fala com a gente prossegue, dizendo que essa tristeza, essa doença repetida, é como uma vestimenta de sofrimento, ou seja, é falsa. É necessário acabar com ela sem piedade, sem autopiedade. Outras imagens mais cruéis vão seguindo, como a raspagem com um caco, deixando a gente em carne viva. E nada de socorros bíblicos ou de outra ordem.

Em seguida, a identificação mais aberta com o leitor vai se restringindo, pois todos podem ter cousas e lousas, badulaques, ais, mas rimas normalmente tem os poetas. Então, a partir desse momento, podemos pensar que se trata talvez do poeta falando consigo mesmo, como quem dá conselhos a si. Nesse ponto, novamente a identificação pode ser reaquecida, já que é comum a gente, internamente, conversar consigo mesmo, tratando-se por tu, usando até o imperativo, dando ordens ou conselhos para si próprio. E, como estávamos no mesmo barco desde o início do poema, não saltamos fora agora, pois, mesmo quem não escreve rimas tem, de outra forma, seus guizos, seus penduricalhos ou excessos de louco, a maioria inconfessáveis, só revelados numa fala de si para si.

E é irresistível a todos nós, outro ponto de identificação, o convite ao despojamento, a se desfazer do que só serve para nos autoboicotar, de tudo aquilo que cada um tem dentro de si e que só existe para atrasar a sua própria vida. O convite, que cada vez mais no poema vai ganhando ares zenbudista, de se desfazer de toda sua falsa imagem, buscando chegar ao vazio, ao não-eu, é interrompido, tanto que nem tem ponto final, por um eu que vem com uma fala marcada, agora sim, por um travessão de diálogo. E começa interpelando o mestre, que agora se revela como tal, como quem o tira do transe verborrágico. É uma espécie de koan ao contrário – koan é um tipo de desafio, normalmente sem saída pela via normal de causa e consequência, proposto pelo mestre, justamente para fazer o discípulo parar de viajar na cabeça e olhar para o aqui e agora, acordando para o absurdo de querer dar sentido a tudo. Nesse poema, o koan é ao contrário, pois aqui, no poema de Quintana, é o discípulo quem desafia o mestre.

E a questão que coloca é um beco sem saída: desfazer-se de si mesmo, ainda que seja para parar de sofrer, valerá a perda de si mesmo?

 

 

[Artigo publicado no jornal Correio do Povo]

 

 

 

 

 

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Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornalZero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica(Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas(Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com




Comentários (2 comentários)

  1. Luis Turiba, Belo artigo de poeta para poetas
    16 junho, 2015 as 13:36
  2. Luis Turiba, De poeta para poetas na translucidez da viagem
    16 junho, 2015 as 13:42

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