Nem, nem
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Depois de Empresto do Visitante (Patuá, 2013), livro em que cintilam poemas-instante, clics da paisagem que ombreiam em beleza com o que retratam, Ronald Augusto lançou dois volumes pela editora Butecanis: Mnemetrônomo (2014) e nem raro nem claro (2015). No primeiro, o poeta enfrenta, não sem revelar o esforço que a tarefa demandou, a construção de poemas metrificados:
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dizer em sáficos esses dez lustros
com que deslustrei minha juventude
não é de amargar mas me sai a custo (…)
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Mas não pensem que a forma clássica amansou o discurso enviezado que costuma estar presente na poesia de Ronald. A seleção de palavras com pontas, que se atritam entre si no poema, continua presente:
ao peso se dobra
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por seu modo insurrecto e sem molhar palavra
ria menos viril que ônfalo e às pregas
alheio a mais desditas derribando regras
que lhe custaram escaras tanta choça brava
quando não anedotas de secar escrúpulos
aos que lhe eram caros e ruins dependendo
outra vez seu acinte prestava a medo
quem lhe dera o molesto jurara sem cuspo
pelo sol sem cachaço que surte com o inverno
não havia outro trato a dar à circunstância
foi sempre assim consigo e a um golpe de lança
fende-se essa página engolindo-o inteiro
Insurrecto, rir às pregas, derribando, escaras, choça, molesto, sem cuspo… Termos e expressões mais raras povoam o texto do autor desde o excelente Homem ao rubro (1983). Constroem um labirinto semântico em que podemos ter duas atitudes como leitor: parar a cada desvio, consultar se preciso o dicionário, ou seguir adiante. Já usei os dois métodos e o resultado foi o mesmo.
Os poemas de Ronald propositadamente lidam com as palavras de maneira analógica. Assim como se escolhe uma palavra para se unir à outra pelo som num poema, o que é um critério não semântico, podem ser aproximadas palavras que, justamente por serem estranhas em significado, sejam colocadas lado a lado. Com esse procedimento, Ronald vai alternando na sua poesia o raro e o claro, dois termos que escolheu para nomear seu livro mais recente:
brossiano
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quando você quer indicar
ao motorista do ônibus
que vai descer na próxima parada
basta apertar o botão
ou puxar a cordinha
já que não é possível
coisar as coisas em si mesmas
Esse poema é claro, mas a clareza não o impede de ser raro. O final, afirmando que não é possível coisar as coisas em si mesmas, traz para uma cena cotidiana tanto uma novidade de leitura quanto de linguagem.
A produção do poeta, em pleno desenvolvimento, continua trazendo questionamentos estéticos e mostra que o canto não o abandonou. Ao contrário, continua soando com o eterno movimento das ondas do mar:
(…) mesmo que me abandonem esses cantares
tomados ao olvido que marulha,
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a retro, infinidades de outros mares
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Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornalZero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica(Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas(Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com
10 agosto, 2015 as 20:11