Um grande poema sobre o mínimo


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Eduardo Dall’alba pediu a cada um de nós, os poetas convidados para o livro coletivo que organizava, que escolhesse dez poemas. Teriam que ser, pelo critério pessoal, os dez melhores poemas. Essa tarefa também coube a ele, pois integraria o volume. Como nós, teve que reler os livros de sua autoria e selecionar dez textos. Eles estão na obra Palavra não é coisa que se diga*, AGE editora, Porto Alegre, 2013.

Mas essa não foi a única honra que recebemos nesse último convívio com Eduardo, que conhecia desde os anos oitenta, colega que fomos na Letras da UFRGS. Na orelha do livro, ele revela que os poetas convidados, Jayme Paviani, José Eduardo Degrazzia, Celso Gutfreind, Paulo Becker, Ricardo Silvestrin e Álvaro Santi,  são os autores que (mais do que a leitura dos clássicos, mais do que a leitura de Drummond – poeta que Dall’alba estudou profundamente) o fizeram ver que era possível “escrever poesia em alta esfera, mas aqui, perto do chão, com densidade de conteúdo e versatilidade de ritmo, em alto e baixo tom, e tentar, como eles, atingir o grau zero da escritura, elidindo a figura do poeta em benefício do poema, pois foram e são os poetas que me influenciaram, e que só agora revelo. Eles são matrizes da poesia a partir dos anos 80, os anos que mudaram o mundo.”.

Além de nós, todos nascidos no Rio Grande do Sul, integram o volume os poemas da Vera Lúcia de Oliveira, professora e poeta que vive na Itália, nova interlocutora e afinidade poética do Eduardo, com quem dividiu a organização do projeto. E há ainda o prefácio da professora e poeta Maria do Carmo Campos, mestra que ajudou Dall’alba a admirar ainda mais Drummond. Quis o destino que essa fosse a última publicação do nosso poeta, que morreu no final de 2013. É uma espécie de livro-homenagem e inserção dele num panorama afetivo e estético. E também um balanço final da sua própria poesia.

Eduardo deixou uma obra extensa, entre poesia, ensaio, crônica e ficção narrativa. Recebeu prêmios e distinções importantes: Vinhedo das Vontades, prêmio Açorianos de poesia 1998; Lunário Perpétuo, Açorianos de poesia 2008;  Os Bens Intangíveis, que reúne dez livros anteriores, prêmio Carlos Drummond de Andrade, concedido pela União Brasileira de Escritores em 2012.

Um passeio pelo seu site, que convido o leitor a fazer no endereço eduardoguizzodallalba.com.br, mostra inúmeros poetas e professores destacados da literatura brasileira comentando e falando bem de seus textos. Também há uma seção em que o próprio autor comenta cada um de seus livros. Pela sua autoanálise, ficam claros tanto seu vasto repertório, com conhecimento profundo da história da poesia universal, quanto sua busca estética traduzida no fazer da sua produção.

Nesses dez excelentes poemas de Dall’alba, presentes em Palavra não é coisa que se diga, escolhidos por ele mesmo, pode-se fazer uma breve trajetória do nosso poeta, que vai do poema mais lúdico e musical – “Dancem tangos velhos magros,/velhas magras, como quadros/dancem quadras (…)” – aos textos longos e com um cunho mais reflexivo, num diálogo com a poesia de Drummond e João Cabral, passando pela temática da colônia italiana. Entre esses poemas, quero me deter em um.

 

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NOTURNO À JANELA DO ESCRITÓRIO

Da janela do escritório
não vejo flor, jardim, estrela
não vejo o mar em suas ondas
bater na orla da praia;
vejo apenas o edifício de 42 andares
vejo a cor do prédio apenas
enquanto ondas sonoras de um carro modernoso
de rapaz adolescente que queira impressionar moças
invade a rua e os ares – bate estaca definido – posto em frente ao edifício
que vejo à noite, do escritório.
Então a visão precária
define, de antemão, o pouco que se dá a ver
e uma mínima certeza de que não há paisagem
da pouca luz que se esconde por entre a rua
lá embaixo
de modo que ver o mínimo, desse mínimo horizonte
tangente visão de sobre como as coisas são pequenas
se incrustram no ser, penetram, e fica sendo moderno
ver o pouco que se enxerga, por mais que anseie – e se anseia –
ver o mais de completude que cabe nesse pequeno
medido chão universo, por mais que queira – e se quer –
ver a medida das coisas e o mundo definido
se compondo desse mínimo, dessa visão tão pequena
que se vislumbra na noite da janela do escritório.

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Se é verdade que nós – alguns dos poetas do livro, sobretudo os que, como Dall’alba mesmo cita, os nascidos em 1963 – temos um fundo comum, esse poema revela uma pista. Nossa geração, que completa cinquenta anos, idade com que Eduardo nos deixou, herdou um trânsito de lente na visão do mundo, de uma grande angular para o close, o detalhe, o mínimo. Se a geração que tinha vinte anos na década de sessenta pensava o mundo, e pensava que isso mudaria o mundo, as gerações que se seguiram foram paulatinamente fechando o foco a cada tomada de consciência do limite dessa mudança e da reação do mundo estabelecido, de modo que herdamos uma utopia cada vez menor, descaracterizada e desacreditada à beira do cinismo. “De modo que ver o mínimo (…) fica sendo moderno (…) por mais que se anseie (…) ver o mais de completude que cabe nesse pequeno/medido chão universo(…)”.

 

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* “palavra não é coisa que diga” é o primeiro verso de um poema de Ricardo Silvestrin, publicado no livro Palavra Mágica, Massao Ohno editor/IEL, 1994, que integra também a seleção organizada por Eduardo Dall’alba e Vera Lúcia de Oliveira

 

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[Artigo publicado originalmente no jornal Zero Hora]

 

 

 

 

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Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornalZero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica (Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas(Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com




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