“Dez mil poetas se calam”
.
Não existe o haicai. O que há de fato é o haicai de cada haijin, de cada poeta que realiza no concreto e a sua maneira isso que se quer definir em abstrato. Mas dizer poeta no lugar de haijin também não é o termo mais preciso. Na nossa tradição, poeta é o que fala. Diferente do haijin – o que cala. Ricardo Portugal sabe dessa diferença: “segue o barco solitário/desde os montes/dez mil poetas se calam” – ele escreve.
É uma prática que requer humildade. O poeta precisa se calar para que tudo fale. Mas aí também se abre outro paradoxo. Tudo só pode ser falado através do haijin, como escreve o nosso poeta: “descendo o Rio Li/nenhuma foto revela/o que o olho vela”. Assim, por mais objetivo que se pretenda o haicai com sua teleobjetiva, sempre vai revelar uma subjetividade, ou, pelo menos, através de uma subjetividade.
Por trás dos rios, montes, paisagens chinesas e brasileiras, está uma sensibilidade humana e estética, a desse poeta de mão cheia, autor de Antena Tensa, Arte do Risco e De passagens. A poesia de Ricardo Portugal, e no seu haicai também se poder notar, lida com imagens, mixagens de sons, cortes, imprecisões. Há um grande silêncio em torno do qual giram signos e sentimentos. Às vezes, o significado repousa e temos insights espirituosos e precisos: “ano do coelho/também as tartarugas/chegaram parelho”. Em outros momentos, tudo gira e ficamos suspensos no espaço: “som de água, jangada/de ar, pássaro que passa/passos, pegadas”.
Borges, Benedetti, Guimarães Rosa e tantos outros deixaram registrados em livros seus haicais. Em cada realização, vemos um tanto do que é comum ao gênero como do que as diversas personalidades, mesmo tentando se despersonalizar, trazem. É claro que os mestres japoneses, como Bashô e Issa, continuam a dar o tom, sorrindo invisíveis a cada excelente haicai como esse, de Ricardo Portugal: “janela para o inverno/barcos navegam o vidro/entre a cama e o rio”.
[Prefácio ao livro Zero a Sem, de Ricardo Portugal, editora 7 Letras]
.
Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornal Zero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica (Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com
5 julho, 2012 as 3:46