Os hiperlinks de Manuel Bandeira
BÉLGICA
Bélgica dos canais de labor perseverante,
Que a usura das cousas, tempo afora,
Tempo adiante,
Fez para agora e para jamais
Canais de infinita, enternecida poesia…
Bélgica dos canais, Bélgica de cujos canais
Saiu ao mar mais de uma ingênua vela branca…
Mais de uma vela nova… mais de uma vela virgem…
Bélgica das velas brancas e virgens!
Bélgica dos velhos paços municipais,
Úmidos da nostalgia
De um nobre passado irrevocável.
Bélgica dos pintores flamengos.
Bélgica onde Verlaine escreveu Sagesse.
Bélgica das beguines,
Das humildes beguines de mãos postas, em prece,
Sob os toucados de linho simbólicos.
Bélgica de Malines.
Bélgica de Bruges-a-morta…
Bélgica dos carrilhões católicos.
Bélgica dos poetas iniciadores,
Bélgica de Maeterlinck
(La Mort de Tintagiles, Pelléas et Mélisande),
Bélgica de Verhaeren e dos campos alucinados de Flandres.
Bélgica das velas ingênuas e virgens.
(BANDEIRA, Estrela da vida inteira, 1993, p. 111)
“Bélgica” está entre os poemas que Bandeira (1984, p. 45), no Itinerário de Pasárgada, coloca entre os que “ainda acusam o sentimento da medida.” É um poema, no entanto, já com versos de tamanhos diferentes, inclusive, com metros acima das doze sílabas. Está no caminho dos experimentos que o levaram ao verso livre.
Há um jogo entre os canais belgas, o país tem 1,5 mil quilômetros de canais, e a circulação da arte e, sobretudo da poesia, que saiu de lá para o resto do mundo. Os pintores flamengos integram o gótico internacional, que, no sul da Europa, originou a Renascença Italiana, e, no norte, a Renascença Flamenga. Os flamengos inovaram no uso da tinta a óleo e na criação de retratos. Também trouxeram as cenas cotidianas para os quadros.
Bugres, a morta é um romance simbolista, de 1892, do autor belga Georges Rodenbach. Nas referências à poesia, Verlaine, com Sagesse, livro que marca sua conversão ao catolicismo, Maeterlinck e Verhaeren. O simbolismo então está mapeado no poema no que deve à Bélgica.
Veja-se o que diz Henri Peyre (1983, p. 59) sobre a contribuição dos belgas:
A grande inovação do simbolismo, em matéria de técnica, foi a liberação do verso. Verlaine e, sobretudo, Rimbaud […] tinham sido os predecessores. […] E os belgas, vários de origem flamenga, que desempenharam um grande papel em Wallonie e em Paris – Verhaeren sobretudo -, manejaram com maestria este novo verso francês.
É o verso “livre da numeração silábica e repousando nas medidas rítmicas” (PEYRE, 1983). Então, mais do que exaltar a Bélgica, Bandeira saúda no seu poema referências importantes do seu caminho para o verso livre. No Itinerário de Pasárgada, assim ele relata um pouco desse trajeto:
O poema “Paroles pour les jeunes gens”, de Guy-Charles Cros, li-o no Mercure de France, número de 16 de abril de 1912. Foi, com umas lullabies de Mac-Fiona Leod, o meu primeiro contato com verso-livre. Antes disso o que eu tomava por verso-livre eram os versos polimétricos de Verhaeren. (BANDEIRA, 1984, p. 44)
Outro trecho: “E vejam como eu andava atrasado: em 1911 ainda não tinha ideia do que fosse o verso-livre! De repente, o poema de Guy-Charles Cros, os versos de Mac-Fiona Leod, as Serres Chaudes de Maeterlinck.” (BANDEIRA, 1984, p. 43)
Em Noções de História das Literaturas, o livro que Bandeira escreveu para usar como manual nas suas aulas do Colégio de Pedro II, ele também cita alguns dos autores da Bélgica entre os que chamou de notáveis simbolistas: “belgas Charles de Coster, Verhaeren, Rodenbach e Maeterlinck. Este último é mais afamado pelo seu teatro, todo ele de intenção simbólica (Pellèas et Mélisande, Monna Vana, l’Oiseua Bleu, etc.).” (BANDEIRA, 1969, p. 110)
Maeterlinck foi citado, como vimos, em três momentos. No Itinerário, Bandeira fala do livro Serres Chaudes, de 1889, como estando entre os seus primeiros contatos com o verso livre em 1911. O volume contém uma coleção de poemas escritos em versos de oito sílabas e também poemas de verso livre. Em “Bélgica”, Bandeira coloca entre parênteses, abaixo do nome Maeterlinck, duas peças do autor: La Mort de Tintagiles, Pelléas et Mélisande. Por fim, no seu manual, cita mais duas peças seguidas de um etc.: Monna Vana, l’Oiseua Bleu.
Em depoimento a Jules Huret, o jornalista francês que entrevistou vários escritores no final do século XIX e início do XX, Maeterlinck disse que “a peça de teatro deve ser antes de tudo um poema”. Sua fala está colhida por Gérard Dessons, professor de literatura francesa da Universidade de Paris, em artigo traduzido na revista Non Plus. Dessons analisa no ensaio as mesmas duas peças citadas no poema Bélgica. Nas duas, o centro da criação está na linguagem, no deslizamento de significado das palavras. Em La Mort de Tintagiles, dois irmãos estão separados por uma porta. Tintagiles foi levado pela rainha e está preso. Sua irmã, Ygraine, quer tirá-lo de lá. Um está de cada lado da porta. Eles não se veem e, quando perguntam onde estão, cada um responde “aqui”. A palavra é a mesma, mas cada um está num lugar diferente, inacessível ao outro. A palavra os une e os separa. Dessons mostra a seguir que o mesmo procedimento foi usado em Pellèas et Mélisande. “O paralelismo das duas falas introduz uma tensão entre os dois aqui, que, então, passam a ser um só: o aqui do drama enquanto disjunção entre duas histórias.” (DESSONS, 2017, p. 77).
Desse modo, diferentemente da citação das peças de Maeterlinck que Bandeira fez no manual, citação que termina por um etc, no poema “Bélgica” estão escolhidas duas peças em especial, que podem ter sido eleitas pelo poeta justamente por ver nelas uma relação. Também não por acaso o poema é escrito em versos polimétricos, como os de Verhaeren e, mesmo ainda acusando um sentimento de medida, estão na direção dos versos livres de Maeterlinck. Traz ainda um outro procedimento que o joga para adiante do seu tempo. É uma espécie de poema com hiperlinks. O próprio nome das peças entre parênteses acentua o caráter de um texto dentro do outro. Mas também sem os parênteses podem-se abrir outras janelas ao clicar – pensando numa analogia com o texto no universo digital – em Verlaine, Sagesse, Bruges-a-morta, Maeterlinck e Verhaeren.
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Trecho da dissertação de mestrado Manuel Bandeira, um poeta na fenda, de Ricardo Silvestrin, UFRGS, 2020. Para ler na íntegra a dissertação, clique aqui.
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Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornal Zero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica (Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com
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