Poesia pós-bomba atômica
DEIXEMOS NASCER
— conto de fadas da bomba atômica —
de Sadako Kurihara
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Era uma vez um subsolo de um prédio em ruínas à noite.
Os feridos da bomba atômica
lotavam
o subterrâneo escuro, sem uma vela para iluminar.
Havia cheiro de sangue, de morte e suor. Havia gemidos.
Então, uma voz maravilhada:
“O bebê vai nascer!”
Naquele instante, naquele inferno, uma jovem
sentia as dores do parto.
Mas, na escuridão, sem um fósforo sequer?
Esquecidos da própria dor, todos se preocuparam com a jovem.
“Sou parteira”,
falou uma mulher muito ferida, que até então gemia.
Assim, uma vida surgiu no subsolo escuro.
A ensanguentada parteira não sobreviveu até o amanhecer.
Deixemos nascer,
deixemos nascer.
Mesmo que, para isso, morramos.
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Sadako Kurihara nasceu em 1913 e morreu em 2005. Morou em Hiroshima tendo sobrevivido à explosão da bomba atômica na Segunda Guerra Mundial. Além de poeta, era ensaísta e ativista.
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SUPER-HOMEM
de Inuo Taguchi
Em sua cadeira de rodas, o Super-Homem
passeia pelo jardim
Quando jovem, voava pelos céus
ignorando sua sorte
Agora, é diferente
Voar pelos céus, bem
é mover o mindinho
alguns milímetros
Piada infame, a vida
Estar em uma cadeira de rodas
para, pela primeira vez
tornar-se o Super-Homem
Inuo Taguchi nasceu em Tóquio, em 1967. Mais informações sobre Taguchi, aqui.
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ISTO É UM SER HUMANO
de Tamiki Hara
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Isto é um ser humano
note como a bomba atômica o transforma
o corpo horrivelmente inchado
homens e mulheres de volta à forma original
dos lábios intumescidos do rosto purulento e esturricado
escapa a voz
“socorro…”
palavra débil, inaudível
isto é isto é um ser humano
um ser humano
Tamiki Hara (1905-1951) nasceu em Hiroshima e foi um dos sobreviventes da explosão da bomba atômica. A experiência vivida com a explosão da bomba e a morte de sua esposa são os temas essenciais de sua escrita. Tamiki Hara cometeu suicídio atirando-se na linha do trem. Mais informações sobre Hara: [http://voiceseducation.org/content/tamiki-hara-japanese e http://cosasdebaradeldia.blogspot.com.br/2011/06/flores-de-verano-tamiki-hara.html]
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DIÁLOGO NA BAÍA DE TÓQUIO
de Anzai Hitoshi
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A melhor época para pescar é a semana do equinócio
Ainda era cedo, mas, mesmo assim,
acabei aceitando. O céu
estava aberto na calma baía de Tóquio.
O reflexo da luz ofuscava, não há calor mais intenso.
“O tempurá desses peixes
é uma delícia. Mas,
se olharmos bem, a cara deles
não parece humana?”
Meu amigo gargalhou.
“É assim mesmo.
Afinal, são nossos ancestrais distantes.”
Sua avó vivia na cidade baixa,
esbanjando saúde.
“Em março de 1945, durante os bombardeios,
eu corria para lá e para cá.
Milhares de pessoas
morreram queimadas ou afogadas.
Os peixes da baía de Tóquio,
do que você acha que eles se alimentaram?”
Há quem nunca mais comeu peixe na vida.
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Anzai Hitoshi (19018-1994) foi repórter no Japão e, posteriormente, presidente da Japanese Modern Poetry Society.
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[Outros poetas e poemas japoneses: Poetry International]
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Diogo Kaupatez possui graduação e mestrado em Letras pela FFLCH, ambas em língua, literatura e cultura japonesa. Tradutor do japonês de Contos fantásticos, do Ryûnosuke Akutagawa (Editora Z), À espera do tempo: filmando com Kurosawa, da Teruyo Nogami (Cosac), Rabiscos e Aprendo com meus amigos, do Taro Gomi (Cosac), Balanço, da Keiko Maeo (Cosac). Mini contos do Hoshi Shin Ichi na Bruce Livros. O resto é picuinha. E-mail: diogokaupatez@gmail.com
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