Um autêntico lírico



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Ou eu perdi uma parte do filme da vida, ou realmente pouca gente falou sobre o excelente livro de poemas Debaixo das Rodas de um Automóvel, de Rogerio Skylab, lançado em 2006 pela Rocco.

O cara, como se sabe, é músico também. Apresenta um programa no Canal Brasil. Deu entrevistas comentadas no programa do Jô Soares.

Mas importa menos aqui sua repercussão extraliterária, assim como sua imagem de artista de vanguarda ou de maldito. Tudo isso de nada valeria se seus poemas não se sustentassem com o domínio da palavra, que o autor apresenta com segurança e brilho de craque.

O craque é aquele que joga com sobra. Enquanto os esforçados conseguem o mínimo com o máximo de esforço, o craque faz o máximo com a aparência de ter empregado o mínimo de trabalho. Mas é claro que é só aparência. É que o esforço do craque se dá nas horas e horas ou de treino, ou de observação, ou mesmo de simples pensamento sobre o que ele irá fazer em campo e como o fará.

É comovente ver o relato de Zico sobre seus treinos para cobrança de faltas. Sobre seu estudo dos movimentos do goleiro adversário. Sobre o uso de pontos de referência para a mira, como uma bolsa do massagista dentro da goleira ou a toalha do arqueiro pendurada na rede durante a partida. Toda essa ciência do movimento coroada pela inspiração do improviso.

Voltando ao livro do Rogerio, que é carioca e nem sei se gosta de futebol ou se torce para o Flamengo. São oitenta e cinco sonetos. Mas não sonetos com métrica regular e rimas. Às vezes, o andamento do discurso é quase de prosa, como o de um narrador em primeira pessoa de um minirromance. As frases/versos se distribuem, se acomodam, nos dois quartetos e dois tercetos. O corte dos versos, alguns deles guardando uma surpresa no desdobramento da troca de estrofes, e o ritmo da fala comandam o procedimento criativo. Poucos jogos sonoros ou de significado. Poucos, mas, quando aparecem, são exatos e precisos.

Construído por essa estética, move-se um eu pelo mundo externo e interno. Um mundo trivial e contemporâneo, mas, ao mesmo tempo, vazio até a medula. É aí que esse eu se assemelha a um narrador/personagem de um romance de Dostoievski, por exemplo, para usar como comparação o autor de universos decaídos e vistos sem nenhuma piedade.

Mas, de novo, isso poderia ser, à distância, apenas pose de maldito, persona literária, caso não se realizasse como poemas da mais alta qualidade. E creio que a raiz dessa poesia é ainda mais funda. Está na origem da poesia lírica.

A lírica aparece na história do pensamento grego depois de um longo percurso. Muito antes da lírica, os textos, como a Teogonia do Hesíodo, falavam dos deuses. O mundo é regido por eles, e o poeta, como Hesíodo, apenas organiza, com o metro, toda essa cambada de deuses. Passassem-se alguns séculos e chegamos ao texto épico. O trabalho de Homero é contar como os homens, ajudados pelos deuses, conseguem seus feitos. Roda o calendário e estamos na fase do texto dramático. Agora, Sófocles e sua turma mostram os homens em relação aos deuses. É o tempo da demarcação, da tomada de consciência sobre o humano e seus limites. Até que uma das vozes do coro do texto dramático começa a ganhar cada vez mais fala, de tal sorte que se desprende do coro e da narrativa, e passa a falar sozinha. Passa a falar não mais a partir dos deuses, ou da ajuda deles, ou da diferença deles. Mas fala a partir do homem. Esse é o sentido da poesia lírica. Não se trata de falar do eu como comumente se diz por aí, ocasionando tanto toda uma série de poemas sobre a vida do poeta como toda uma tentativa de dizer que esse eu é o eu-lírico, o eu do texto, como o de um personagem em primeira pessoa – questão relevante, mas ainda secundária.

A grande conquista da poesia lírica, desse poeta que a entoava ao som da lira, foi de o homem ver o mundo com liberdade, a partir dele mesmo. E seja para falar do que quisesse, não apenas de si mesmo. Daí os poemas desde os líricos gregos até os romanos falando das imposturas do poder, dos reis, das aparências da vida em sociedade e também do amor, do sexo, da sacanagem e do destino individual – como nesse poema do Arquíloco: “nada ganharei chorando a noite inteira/nada perderei amanhecendo em festas e bebedeiras”. Não há Zeus e toda sua tropa. O próximo passo do pensamento grego, desse homem livre, foi chegar à filosofia, quando o homem pensa por si mesmo.

Nesse sentido, a poesia que temos em Debaixo das Rodas de um Automóvel é profundamente lírica. Tem a liberdade de um Catulo, de um Marcial, de um Horácio, poetas líricos romanos em torno do século I. Sim, porque os romanos receberam de bandeja esse mundo livre dos deuses da cultura grega. No livro de Rogerio Skylab, esse homem-eu, personagem do poema, mostra o que vê com olhos livres. Não tem culpa, escrúpulo, medida, ponderação, moral e bons costumes. É um eu cruel e sem compaixão. Mas também caído, sofrido, aspirando à beleza e ao gozo. Vive no aqui e agora, na paisagem do seu tempo, no meio do shopping center, olhando da janela as vitrines fechadas no feriado, relatando a cena de massagem feita por um travesti, o acidente de carro, pensando a linguagem, a poesia, sozinho e estirado sobre a cama.

Mas tudo isso poderia ser ainda apenas mais uma máscara literária se não fosse realizado em poemas que dão um prazer de leitura como há muito não via na poesia brasileira.

 

 

 

 

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Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornal Zero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica (Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com




Comentários (6 comentários)

  1. rogerio skylab, Ricardo, gostei tanto quando vc falou do Zico, e olha que sou Fluminense doente. Eu também treino todo dia, da manhã a noite. E a medida que vou treinando fica tudo concentrado. De repente, sai uma jogada livre, espontânea, que até parece gratuita. Mas se não fossem os treinos…
    26 novembro, 2012 as 4:10
  2. Ricardo Silvestrin, Legal, Rogerio. Eu torço para outro tricolor, o Grêmio. Mas meu time de botão é o Flamengo de 82. Parabéns pelo livro! Abraço.
    26 novembro, 2012 as 16:33
  3. Nathan, Eu, sinceramente, não sabia que o Rogerio escrevia poemas e que havia publicado um livro. Apesar de não gostar dos livros (o objeto) vou comprar o do Skylab, porque muito me interessou! Boa escrita, Ricardo.
    27 novembro, 2012 as 13:10
  4. Marcelo Ariel, Ricardo Finalmente alguém faz justiça a esse livro do Rogério, na época escrevi sobre o livro no meu blog TEATROFANTASMA e acho que ele passou despercebido como 90% dos bons livros de poesia editados no Brasil. Um abraço-blue!
    28 novembro, 2012 as 17:17
  5. Ricardo Silvestrin, Legal, Marcelo. Bom saber que tem mais gente nesse coro. Abraço.
    30 novembro, 2012 as 0:32

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