Viagem por um mar anterior
……………….Sérgio Campos e sua viagem por um mar anterior
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Ao me enviar seu Mar anterior (poesia selecionada-1984/1994) a ele referiu-se Sérgio Campos na dedicatória que me fez: “Ao Floriano, estes meus dez anos de poesia, fim de ciclo, quem sabe um novo início. / Com a grande estima do amigo e irmão.” Morreu poucos meses depois. O ciclo a que se referia iniciara-se em 1984, com a publicação de A casa dos elementos, livro que guardava íntima relação sobretudo com A cúpula e o rumor (1992). O conheci ao final de 1986, quando então eu vinha demasiado descontente com a famigerada atuação do que se conhecia por “geração mimeógrafo”. Meu endereço circulava abertamente como era hábito naquela ocasião. Foi quando recebi uma carta de Sérgio Campos, acompanhada de exemplares de A casa dos elementos (1984) e Ciclo amatório (1986). Minha sisudez momentânea nada viu de interessante nesses livros. O que me chamou a atenção foi sua carta seguinte, em resposta ao meu lacônico desinteresse por sua poesia. Estava claro ali que o diálogo importava mais que o julgamento. Devo agradecer a ele, portanto, que tenhamos nos tornado dois amigos tão próximos, irmanados pela escrita e pelo empenho severo na derrocada de qualquer manifestação egolátrica. Por mais de um ano de cartas e telefones, decide-me ir a Nova Friburgo, onde então residia. Foi me buscar na estação rodoviária e fomos brindados pela insuspeita estranheza do primeiro abraço. Não se tratava de um simples encontro. A partir dali pautamos nossa vida por um diálogo que nos levasse além de nós mesmos. Sérgio dedicava-se ao estudo da literatura com uma voracidade incansável. Durante anos trabalhara com outra matéria. Um acidente de trânsito o havia imobilizado temporariamente. Antes jamais havia escrito um verso. Não havia crise da palavra e sim sua intransigível ausência. O largo período em tratamento (a reclusão branca) o animou a devorar livros. A um só tempo algo ruía em si e recriava-se. Um dos pontos mais aconchegantes em nossa amizade foi justamente essa fecunda possibilidade de transformarmos nossas perdas em ganhos. Sérgio ressentia-se muito de haver sido abandonado pela esposa justo em um momento tão difícil de sua vida. Porém sua primeira mulher havia mesmo que integrar um ciclo outro. Não poderia haver fraturas na memória. Quando o conheci já havia desatado o nó de uma nova fase. Uma vez mais casado, residindo em Nova Friburgo. Exercia a defensoria pública no condado, porém afeito magistralmente à poesia. Já havia publicado três livros e montado uma inestimável discoteca de música clássica. Foi meu dileto professor por muitos meses, mostrando-me detalhes a fio da obra de Puccini, Schönberg, Verdi, Dvorák, Beethoven, Bach. Nesta época conversávamos apaixonadamente sobre Blake e o tantrismo. Devorava livros com uma intensidade voraz. Suas cartas me traziam notícias de Bataille, Beckett, Steiner. As minhas lhe levavam sinais de Bosch, Dostoievski, Artaud. Fomos tecendo um organismo essencial de diálogo, alastrando-se pela discussão de nossa própria poesia. Em algum momento um de nós sugeriu que desmontássemos os originais de nossos próprios livros. Iniciamos ali o que Sérgio carinhosamente chamava de operação de desmonte. Discutíamos nossa poesia à exaustão. Considero um insubstituível privilégio essa possibilidade entre criadores. Não há dúvida de que meu Tumultúmulos não teria alcançado seu resultado édito não fossem as severas críticas de Sérgio Campos a seu texto original, o que lhe garantiu uma reescritura essencial. Sua ausência ainda hoje me dói de uma maneira bastante peculiar, severo interlocutor que sempre foi. Com outro grande amigo, Uilcon Pereira, mantive um diálogo igualmente crítico mas que agia quase como um contraponto em relação à conversa tecida com Sérgio. Houve um momento crucial em minha poesia onde o fragmento fascinante da linguagem contemporânea digladiava-se com uma dimensão ontológica então considerada carta fora do baralho. Uilcon era o adorável cínico provocador. Sérgio confirmava-se em sua severa defesa dos atributos clássicos da poesia. Havia riscos enormes em seguir indiscriminadamente a um dos dois. Com a morte de Sérgio, Uilcon foi tecendo um livro extraordinário, o diálogo imaginário entre ambos. Logo em seguida também morreu. Herdei o vazio, o silêncio, a dor e a responsabilidade diante da memória de meus dois mais fundamentais amigos. A morte de ambos é parte de mim que ainda não consegui digerir.
Um aspecto curioso acerca de Mar anterior é que manifestei-me contrário à ideia de Sérgio preparar esta reescritura de sua poesia. Talvez houvesse algo ali de premonitório em torno de sua morte. Quanto a mim, a recusa se dava em função de não entender seu ciclo como encerrado. Sérgio vinha pondo em prática uma épica desmitologizada que há alguns anos defendia o nicaraguense Pablo Antonio Cuadra. Recordo que a leitura de um livro como Seis propostas para um próximo milênio, de Italo Calvino, havia sido fundamental para ele. Viveu seus últimos anos fascinado com a defesa que Calvino fazia da concisão e da clareza como atributos essenciais da criação artística. Em nossas inúmeras conversas sobre a poesia hispano-americana, havia dois poetas que lhe despertaram um interesse maior: o cubano José Kozer (1940) e o peruano Javier Sologuren (1921-2004), tendo estabelecido laços epistolares afetivos com ambos. Se no primeiro lhe admirava a prodigalidade dos versos e a vertente abissal de uma mitologia pessoal, no segundo a empatia determinava-se justamente pela notável capacidade de concisão de sua poética, e sua decorrente leveza. Sobre ambos escreveu dois notáveis ensaios. Não me foi fácil escrever a Kozer e Sologuren dando notícia da morte de Sérgio Campos, justamente eu que havia tornado possível a amizade entre estes três imensos poetas contemporâneos. Havia um outro, o chileno Enrique Lihn (1929-1984), cuja morte prematura nos impediu um diálogo. Desde que lhe mostrei os primeiros versos, Sérgio fascinou-se com a poesia de Lihn, a visceralidade corrosiva com que encarnava a criação. Dias atrás estive com outro chileno, Rolando Toro. Conversamos sobre Enrique Lihn. Disse-lhe que guardava uma íntima proximidade com a maneira de encarar a vida daquele poeta. Rolando então ponderou: “Só que tu ris, e jamais se viu Enrique rir”. Enrique morreu de câncer. Sérgio também ria, mas um riso algo circunspecto, que não se sobrepunha a uma severidade quase religiosa consigo mesmo. Claro que não morreu de seriedade. Traço apenas uma possível relação entre ele e o poeta chileno. Lembro-me disto porque, logo em seguida à redação do ensaio sobre Javier Sologuren, Sérgio estava se preparando para escrever justamente sobre Lihn. Tratava-se de uma sugestão que eu lhe havia feito: um livro de ensaios sobre poetas hispano-americanos. No jornal O Galo publicou o primeiro deles, sobre José Kozer. Logo em seguida publicamos em Resto do mundo o ensaio sobre Sologuren. Havia lhe encaminhado um farto material crítico sobre Lihn, mas havia um indetectável impedimento. Por alguma razão o texto não se deixava escrever. Desta forma, não se concretizou nunca a ideia inicial.
Sérgio Campos buscou uma ontologia poética como raros poetas neste país. Sonhava com um esplendor factível de comunhão entre realidade e poesia. Em uma de minhas idas a Nova Friburgo estava comigo Socorro Nunes, adorável mulher com quem tenho dividido toda a minha vida. Combatíamos o frio daqueles dias com nosso humor. Ríamos a não mais poder. Um dia fomos até Campos, uma adorável viagem de carro, Socorro, eu, Sérgio e Marilu – então sua companheira. Fomos participar de um desses equívocos eventos culturais, aceitos como sinais de resistência mas que não passavam de sinais de um famigerado estágio de nossa cultura. Sempre fui muito cético em relação a esse tipo de evento. Sérgio mostrava-se empolgado com a aventura. Acertou. Ríamos muito. E talvez tenha sido o momento mais descontraído de sua vida. Sua travessia poética dava com o ouro da calmaria. Fertilidade. Logo depois separa-se de Marilu. Fora tomado de resgate por seus laços estreitos com a solidão. A residência em Nova Friburgo perdera seu grande motivo. Ainda estive lá algumas vezes, mas não era o mesmo Sérgio. Com o tempo vendeu o apartamento e comprou outro na Ilha do Governador, já não levando consigo a mesma voracidade de saber que o animara por tantos anos. Estive ali com ele em 1993, novamente circunspecto, cônscio mais das limitações do ser humano do que de seus particulares empecilhos. Conversamos acerca do estágio desprezível porque passava a poesia no Brasil. Ao sair dali mudei-me para Botafogo, onde passei alguns dias. Hospedado no apartamento do compositor Francisco Casaverde, cheguei a comentar: “Sérgio parece estar desgostoso de tudo”. Seguimos em nossos impagáveis diálogos telefônicos. O selo Mundo Manual prosseguiu à sua maneira. O jornal Resto do mundo inviabilizou-se. Já não ríamos muito. Perdi a noção do tempo. Um início de tarde qualquer me ligou sua primeira esposa, gentilmente noticiando sua morte. Logo em seguida liguei para D. Hygia, sua mãe. A seu filho Pedro não soube nunca o que dizer. Linguagem e silêncio. Como o título de um de seus poemas: “aprendizado pelo instante”. A morte e seus pontos de ruptura. Quando recuperei o recuperável das palavras, concluí: Sérgio me havia animado a defender-me do mundo como um poeta. O mais curioso é que justamente ele me disse um dia invejar minha firmeza em apresentar-me sempre com orgulho por ser poeta. Entendo hoje que estava certíssimo em rever sua poesia. Mar anterior é um livro indispensável à biblioteca essencial da poesia brasileira que ainda não conseguimos definir. A postura autocrítica de Sérgio Campos certamente funciona como contraponto à bestialogia que nos soterra e indigna. Dessa forma, Mar anterior, ao encerrar um ciclo traz consigo também uma severa e necessária lição de dignidade e coragem de enfrentar a si mesmo.
2.
Somente a paixão é suficientemente cruel para nos trazer de volta à vida. Celebrá-la é dar-nos a ilusão de que podemos reconquistar os prazeres perdidos. A representação, neste sentido, tem o dom de nos reconduzir ao caos original, ao palco de trevas em que fundamos todos os deuses, à casa da ardilosa solidão que nos multiplica em seres doados aos mistérios vorazes do mundo. No pulsar cíclico das representações, na convulsiva ordem de seu canto, caminhamos ao encontro da poesia. Sempre a ilusão de retorno a um tempo que jamais viveremos. Reside aí uma paixão solene que nos leva às palavras, sem que através delas jamais alcancemos desvelar nosso destino. Um teatro sombrio do ser entregue às mãos da poesia. Esta encantação sutil e dolorosa é o que nos revela, em particular, a obra poética de Sérgio Campos.
Nascido em 1941, Sérgio Campos nos traduz a imagem de um poeta obstinado na criação como atividade reveladora do espírito. Rigor e substância encontram-se nele empenhados na leitura dos mínimos gestos que nos delimitam. Compromisso sólido, mas sobretudo uma paixão. Como ele próprio assegura: “Diria que a experiência com as palavras define o poeta. Ele precisa ter uma relação especial, única em relação a elas. Precisa delas como do próprio ar, de ouvi-las em busca de novos sons, poli-las, redescobrindo sob o azinhavre a legenda dos mitos, dispô-las em conjuntos para observar seus conflitos e conciliações, povoar delas seu pátio de utopias.”
O mais que se diga soará como uma sala de ecos. Os fios encantados da linguagem movimentam a usina de sentidos em que urdimos o cenário de nossa precária existência. A poesia é nosso prato de sonhos e também a lanterna perdida cuja luz sutil o acaso nos aponta. A grave contingência de tudo quanto idealizamos. Em um poema debruçado sobre a mítica górgona, Sérgio Campos assim desfia sua voz: “Nossas imagens oscilam / somos o risco de nos perder / entre homens deuses e animais”. A poesia é um inestimável amuleto em nosso trânsito incerto pelos reinos de Hades. Em outro poema nos revela uma imagem que é a própria súmula de sua poética: “Orfeu regendo os remos de Argos”. O poeta em seu ofício de sombras, erguendo com seu canto uma outra dimensão do abismo ulterior de que nos alimentamos.
Os poemas são movidos pela memória, são sua expressão coerente, constituem o fundamento do tempo que inauguramos a cada experiência, corpos de linguagem que são. Ruptura e integração: através de tais margens instauram uma consciência crítica, erguem a síntese de suas investigações. Sua razão sustenta-se em constantes interrogações. Não vivem da imagem encontrada, mas sim do abismo entre a origem e seu testemunho. O curso temático da poesia de Sérgio Campos, ao eleger como recursos uma predileção de ordem helênica e o que Ivan Junqueira tão bem situa como “delicada fiação de enredos que se diriam domésticos”, o faz acentuando esta fundação da palavra a partir da memória. Contudo, se o mundo verbal é, como em Góngora, uma negação do mundo real, aqui também se poderia falar em afirmação de uma realidade outra, enriquecida pela memória e o curso incessante de seus descobrimentos, como se dá na poesia do cubano José Kozer (1940). Além disto, Sérgio Campos prima por uma concisão verbal, sendo por tal concisão pautado seu esplendor. Para ele o excesso consiste em um exercício absoluto de economia de meios. Seu duplo curso temático instaura uma tensão que nos conduz a uma aventura de natureza ontológica. Se até Móbiles de sal (1991) essas duas vertentes temáticas apenas compartilham o curso existencial dos livros, experimentam em A cúpula e o rumor (1992) uma audaciosa e feliz comunhão. Mitologia doméstica – elogio crítico da casa e seus elementos, recantos e cintilações -, aliada a um ideário épico de exílios e conquistas: eis aqui sua lúcida jornada imaginário adentro, caminho que o aproxima cada vez mais do sentido essencial de uma religiosidade cósmica – fonte inaugural de toda poesia -, inseparável de uma exaustiva exigência de procedimentos, recursos, ordenações. San Juan de la Cruz, Hölderlin, Perse, José Ángel Valente – seus vigorosos companheiros de viagem.
A tendência helenizante referida – cujo registro se faz sobremaneira com os recursos da parábola e da alegoria – torna-se singular na poética de Sérgio Campos exatamente por sua grande potência lírica. A presença quase constante de um narrador, e seus recontares a bordo de um abismo pessoal – o confessional só se realiza em seu transbordamento, em sua voragem -, destaca-se pelo lirismo inquietante com que tece sua trilha. O próprio poeta melhor situa tal virtude ao referir-se a ela como um “lirismo fabular”, aventura enriquecida ainda mais por sua paixão etimológica, seu notável empenho de restauração da dignidade da palavra, dever natural de todo grande poeta. Desta maneira, há que se por em destaque uma profunda arqueologia da forma – sem, contudo, sobrepor-se à sua outra face: o conteúdo -, expressa em notáveis utilizações de sonetos, tercinas, sextinas, e com acentuada inclinação rítmica, cumprindo assim um desafiante percurso polarizado pelo classicismo e a modernidade. Trata-se portanto de uma poética de múltipla abrangência, cuja revelação em curso nos traduz um dos caminhos mais valiosos da poesia brasileira em todos os tempos.
Em permanente estado crítico, Sérgio Campos publicou em 1992 uma plaquette intitulada Ponto & contraponto, lugar de diálogo com um ensaio do espanhol Antonio José Trigo, configurando-se naquilo que o próprio autor denomina de “subsídios para uma poética”. Em tal libreto situa convicções e inquietudes, a opção “por uma poesia que incorpore elementos da modernidade, na dinâmica geral dos conteúdos, com extremo rigor formal”, a lembrança sempre necessária de “que a poesia é arte da palavra, que a palavra é o ser da poesia”, a primordialidade do tempo da leitura, a defesa de uma escritura poética de natureza ontológica que estabeleça uma projeção do humano, que o sublinhe como elemento fundante de toda poesia. Por tais e encantados fios conduz sua palavra.
Pouco antes de sua morte, em 1994, Sérgio Campos publicaria o livro Mar anterior. Poesia selecionada e revista 1984/94. Mais do que simples seleção de poemas de outros livros, aqui podemos falar de um livro outro, onde os poemas, além de revistos, apresentam nova disposição, atendendo aos temas que se mostraram, ao largo de dez anos de produção, mais entranhados em sua obra. Lendo agora Mar anterior confirma-se o que já havia assinalado anteriormente, ou seja, a incidência de uma epopeia íntima, como característica fundacional dessa poética. O próprio autor assim o comenta, em nossa correspondência pessoal: “realmente, o epos se coloca em intenção no poema que, no entanto, não é heroico, mas em essência lírico, o que lhe dá essa sensação de intimismo”.
3.
FM – O soneto não é uma novidade em sua poesia (nem mesmo um artifício ditado por certos modismos); desde o primeiro livro que você o persegue (ou é perseguido por ele), contribuindo a estabelecer uma poética em sua obra. Recordo-me de você me haver dito certa vez: “Faço uma arte arcaica e assusto mais aos outros poetas que ao poder”. O que o teria exatamente levado a escrever sonetos?
SC – Fixei-me às formas clássicas da poesia. Isso advém de minha formação intelectual, de um interesse espontâneo pela linguagem, pela arte greco-latina. Também escrevo esta poesia porque me individualiza, por sinal a mesma motivação da poética de Góngora, como nos esclarece Ángel Pariente. Embora tenha figurado entre os novíssimos, no início da década de 60, em São Paulo, em torno do editor Massao Ohno, já meu primeiro livro, A casa dos elementos (1984), evidencia, com suas seis odes, creio, o rigor, a solenidade e o fervor quase religioso à palavra e à linguagem como espaço de celebração.
FM – Que dizer com relação aos que apontam seu dardo venenoso contra o soneto, acusando-o de decadente (como se o germe do déjà-vu pudesse ser inoculado nas formas literárias)?
SC – Não me cumpre defender o soneto-forma. Há quem diga, tomando por base elementos de análise literária, ou por absoluta perversidade, que o soneto cumpriu seu ciclo histórico. Que ciclo será este? Que evento fatal o encerrou? Que idade tem a poesia? É certo que, nos albores do século XVII, na Península Ibérica, o soneto, com Góngora e Quevedo, atingiu culminâncias. No entanto, já Fray Luis de León escrevera sob as luzes do século de ouro que “hablar no es comun, sino negocio de particular juyzio, ansí en lo que se dise como la manera como se dise”. Há, todavia, admiráveis sonetos escritos em nosso século, de absoluta modernidade. Ocorre que pesa sobre ele uma invencível maldição. O mau poeta, escrevendo em versos livres, é simplesmente mau; contudo, se escreve sonetos, eles é que não prestam… Ele exige muito do poeta e abriga essa fatalidade de consagrar ou destruir irremediavelmente. Marcam-me, mas não são maioria em meus livros.
FM – Anoto palavras de André Gide: “O artista ou o sábio não devem preferir-se à Verdade que pretendem anunciar (aí está sua moral). Não devem preferir a palavra ou a frase à Fantasia que querem ambos mostrar: diria que nisto reside toda estética”. Borges, por sua vez, dizia descrer das estéticas, afirmando que elas não passavam de “abstrações inúteis; variam para cada escritor e ainda para cada texto e não podem ser outra coisa que estímulos ou instrumentos ocasionais”. O que pensa a este respeito, você que já disse pertencer a “uma linguagem estética”?
SC – Minha estética é basicamente a da repetição. Não escrevo poemas semelhantes. Reescrevo um poema elevando a escrita à enésima potência. Webern já exprimia esta ideia ao escrever sobre suas Variações orquestrais: “Seis notas são fornecidas… e o que se segue nada mais é que esta forma repetida, sempre e sempre!” Ademais a linguagem como potência do inconsciente se afirma pela repetição. Ela define o mundo da representação. Como assinala Deleuze, “a repetição pertence ao humor e à ironia, sendo por natureza transgressão”. Sim, transgressão à lei moral, onde tudo é bom ou mau. Toda vez que repetimos contra a lei (mormente um prazer, uma sensação erótica, profana), a lei moral nos sanciona. Por outro lado é preciso imediatamente desacelerar a escrita. Não podemos concorrer com a velocidade vertiginosa dos fatos. A poesia dos fatos é efêmera. Cabe a propósito lembrar Borges, na palavra de seu interlocutor imaginário: “Ninguém pode ler dois mil livros. Nos quatro séculos que vivo não terei passado de meia dúzia. Além disso não importa senão reler”. Penso que reescrever educa/reeduca. Aliás, como diz um bom companheiro, não se escreve mais que meia dúzia de bons poemas na vida; os mais são repetição. Finalizando, em rumo à sua indagação, tenho um duplo de Borges a dizer em suas Sete noites: “O fato estético é algo tão evidente, imediato e indefinível, quanto o amor, o gosto da fruta, a água”. Fico com este, é claro.
FM – De acordo com John Cage, “toda influência deriva de nossa própria obra (e não de algo externo a ela)”. Acredita que as influências sejam causa ou efeito no contexto geral de uma obra literária? Seria possível enumerar as suas?
SC – O próprio Cage responde, a meu ver, a esta pergunta. Observa ele que “uma ideia, deixando a cabeça onde nasceu, volta transformada”. Noto que minhas influências, se assim posso dizer, resultam do retorno (o eterno retorno) das indagações que o poema, fazendo-se, me lança. É um processo demorado mas, cedo ou tarde, sem cerimônia, as palavras, circuladas, regressam em contraponto e desse embate resulta o poema. Hesito muito, portanto, em dá-lo como consumado. Tenho inúmeros poemas clamando serem resgatados aos livros em que os inumei. Planejo, a longo prazo, republicar poemas reescritos.
FM – É a experiência o que difere um poeta dos demais. Através dela identidades se erguem, não sem antes enfrentarem a ansiedade da realização e sua impossibilidade. A experiência poética habita os limites da palavra que a constrói. Onde se situam as margens de sua atividade criadora?
SC – Diria que a experiência com as palavras define o poeta. Ele precisa ter uma relação especial, única em relação a elas. Precisa delas como o próprio ar, de ouvi-las em busca de novos sons, poli-las, redescobrindo sob o azinhavre a legenda dos mitos, dispô-las em conjuntos para observar seus conflitos e conciliações, povoar delas seu pátio de utopias. Conquanto se tenha dito que a palavra ilude, ao operar a transformação da realidade em conceito, creio que se isto fosse verdade, estaríamos face a uma saudável trapaça. Diria mesmo, concordando com Canetti, que entre a palavra e os seres humanos os poetas preferem aquelas, embora se entreguem a ambos. Minhas margens de atividade criadora são, portanto, a primeira sílaba da primeira palavra de um conjunto e a última do movimento polifônico de vida que ela desencadeia. Poeta, para mim, é o ser capaz de realizar a experiência de fecundação da palavra, de fazer amor com elas, e de ser também amado nessa encantação.
FM – Bataille dizia que todo valor é sorte, “sua existência depende da sorte”. Você demorou mais de trinta anos para encontrar-se como poeta, e pode-se dizer que tal encontro tenha sido provocado por um acidente. Um golpe de sorte, certamente. Diria que o acaso rege nossas vidas?
SC – De fato, fiquei vinte anos sem escrever poesia. Entendi que tudo já havia sido escrito. Este recesso me fez muito bem e melhor ainda a meus raros leitores. Pude ampliar consideravelmente meu universo musical. Nutro pela música paixão idêntica à que devoto à poesia. Contém ela, portanto, esta característica de uma obsessiva busca da expressão musical. Curiosa, a propósito, a carta de Valéry a Gide, em 1891, dizendo: “Estou mergulhado até a cabeça no Lohengrin. Esta música me levará, assim o pressinto, a deixar de escrever”. Guardadas as proporções, ocorreu comigo fenômeno parecido. Quanto ao pensamento de Bataille, penso que voltei a escrever por uma necessidade interior surgida num momento de crise. Ao fazê-lo, contudo, senti-me como um adulto em busca de alfabetização funcional. Tenho desde então, principalmente na área de ideias, muito me aplicado para diminuir a margem insondável de minha ignorância.
FM – Você me disse certa vez: “Estou cansado de tantas causas. Há causas em excesso no mundo. Deixemos que a casualidade nos habite ainda que por um momento”. Até que ponto um escritor tem a obrigação de ver e denunciar as fraturas e faturas dos poderes do mundo em que vive?
SC – A frase reflete um estado de impaciência ante o mundo visto como uma máquina paranoica (daquelas de Deleuze & Guattari) de gerar crises. Estou farto de diagnósticos, dos laudos cadavéricos da realidade. Penso que muitos de nós estão a se portar como esquizoides, ancorados na infância do porquê, quando se mostra evidente que a crise decorre da própria sociedade em que vivemos. Quanto ao final da pergunta, penso não conferir à minha poesia um caráter salvacional ou evangelizador, mas é-lhe inegável a motivação humanizadora.
FM – Na verdade a crise é algo inerente ao próprio desfiar da história, sendo possível que através dela a arte se expresse. Contudo, nossa época me parece diabolicamente entorpecida à sombra de um foco (simulacro?) de crises. Uma cruel contradição deste final de século que ostenta a velocidade (mitos, conceitos, regras) como emblema inconfundível?
SC – Penso que há crise e crise. A natural, do homem, é permanente e não se precipita numa arte de ocasião. E há a crise-instituição, que é a de que falam os livros e sobre a qual trabalham os pensadores. Elas acontecem, são territorializadas e espacializadas e configuram verdadeiros rituais. Segundo bem expressa Cioran, malgrado divergência em tantos campos, “uma civilização começa a decair a partir do momento em que a vida torna-se sua única obsessão”. Se assim é, a chamada arte da crise deveria, por coerência, negar a história e a própria vida. Mas não é isso que costuma acontecer nas crises. Elas parecem ter o sinistro poder de aglutinar oportunistas em cortejos fúnebres, atropelando sepulturas, a brandir os estandartes das vanguardas. No entanto, segundo penso, a verdadeira arte é encontrada e resgatada sob as cinzas. Arte é o que sobrevive. Só o que sobrevive sabe reciclar-se e gerar novas formas de vida. A crise-instituição, histórica, civilizatória, talvez revele a arte ao deflagrar um processo, que pode vir a dar numa (re)avaliação e convalidação. Quando Blake, Van Gogh ou Artaud, por exemplo, criaram sua arte foram considerados loucos individuais, não seus tempos. Não creio em arte da crise. Esta, por sinal, em nossa época, transformou-se em rendosa indústria (como a velocidade, magia roubada aos mitos e, por obra da tecnologia, lacrada em motores). Crise consome crise. Já a arte, quando consome, consome quem a cria. É bem diferente. Pergunto-me se não será este fin de siècle o cenário de um paradoxo, ou seja, um mundo em mudança, no pensamento, na arte, e, nos salões, a celebração do fim de um milenar simulacro bíblico, num grande reveillon da burguesia, com muito champanhe, presunto e melão.
FM – Se, ao eleger mitos, na expectativa de “iludir o sistema”, a arte acaba caindo direto nos braços da ideologia dominante, então caberia ao artista, mais do que a simples negação do herói, a negação do próprio tempo do herói, não elegendo mitos sequer como sublimação do aflito. Seria esta então a fórmula que tornaria a arte insuscetível de ser absorvida, metabolizada ou, afinal, expelida pela ideologia dominante?
SC – Entendo que o sistema já metabolizou toda a contestação. A sociedade burguesa tem o fôlego de todos os gatos. Veja as graphic novels esgotadas nas bancas: o Capitão Marvel morre de câncer causado pela radiação atômica; New York está em chamas; o Homem-Aranha transforma-se em psicanalista (freudiano, creio); fantasmas líricos emergem da memória de um edifício que a especulação imobiliária demoliu… Negar o herói, portanto, não parece produzir maior efeito (elas já o negam), nem mesmo destruir mitos (eles os recriam para as mais diversas finalidades). A sublimação do aflito converteu-se na certeza de ainda fazer a quina sozinho. Restaria uma estratégia consistente numa corrosiva lógica original (“Se é possível a alguém ser processado e viver normalmente, então não há problema em ser processado”). Mas Kafka é sutil e as pessoas parecem não saber mais operar com a lógica. Contudo, mesmo contra as projeções e algumas evidências, penso que devamos continuar trabalhando, esgotando o que Octavio Paz chama “as possibilidades de saúde”. A capacidade de sobrevivência ilimitada do homem pode polarizar-se num milênio arrancado às vísceras de um nihil reativo.
FM – A arte moderna está ligada, como diria Marx, à perda do caráter?
SC – Marx se surpreendera com a capacidade da burguesia em criar e destruir, com a voracidade com que consome e recicla para gerar algum tipo de ganho. Ilustra-o com a epígrafe notável que é “tudo que é sólido se desmancha no ar”, utilizada por Marshall Berman em livro indispensável (à exceção de seu diabólico projeto de repintar o Bronx). Observa Marx que “…o capital transmudou toda a honra e dignidade pessoais em valor de troca”. E construiu seu sistema, a meu ver uma utopia que cabe discutir aqui. Contudo, sua visão da perda do caráter na arte da burguesia parece-me absolutamente correta. Pouco mais tarde Baudelaire viria a taxá-la de prostituição.
FM – Diria então que a arte já se converteu na própria “instituição burguesa do poético” (conforme expressão de Luís Costa Lima)?
SC – A classe dominante fez de seus subsistemas, na arte, um corredor cultural por onde trafega há já duzentos anos o modernismo como expressão da “liberdade de criar”. E aí está ele, com algo da “velha dama indigna” que hoje faz de seu fetiche (ainda) a produção do novo. Seria uma estupidez negá-lo, mas suas obras fundamentais já haviam sido quase todas geradas no final dos anos 20. Na música e nas artes plásticas diviso ainda hoje esta modernidade (conceito tão discutido, para alguns vazio). Mas na literatura, mormente após a Segunda Guerra, pouco de importante aconteceu. Ao contrário, assusta-me essa geração crescente de estéticas descartáveis a serviço da indústria cultural, ao lado do hortus conclusus de intelectuais e artistas de elite (alguns deles ⎼ reconheço ⎼ de invejável competência) a administrar a arte de vanguarda deste século como propriedade privada. O pós-modernismo teve o mérito de abrir essa caixa-preta, trazendo consigo a saudável ideia de que uma visão do mundo não supera outra, convive com ela, na feliz expressão de Teixeira Coelho, resgatando o humanismo à fenda histórica que o devorara. Todavia, deixou-se abandonar de compromissos e projetos, ficando à mercê da mídia, que o reconverteu à arte-moda no mundo burguês, que se alimenta de seu abismo. Isso resulta, a meu ver, em paradoxo, pois as pessoas que vivem a moda e correm alucinadamente contra seu próprio espelho, estão, no íntimo, emitindo patético apelo por um mínimo de solidez e confiança. Talvez aqui encontre a força de um compromisso: tentar, com rigor e consistência, a tradução poética desse apelo.
Floriano Martins (Fortaleza, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e a ARC Edições. A presente matéria foi inserida a título de posfácio na edição de Mar Anterior (poesia completa), de Sérgio Campos (Fortaleza: ARC Edições, 2015). E-mail: floriano.agulha@gmail.com. Pedidos diretamente através da Loja Abraxas: http://abraxasloja.blogspot.com.br/.
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