Uma linguagem não humana


….A LINGUAGEM NÃOHUMANA DE DJAMI SEZOSTRE

 

Que a poesia se tornou um corpo estranho nisto que chamamos de sociedade moderna é fato bastante reconhecido. Num mundo em que milhões de trabalhadores precisam se sujeitar a condições degradantes e inseguras de trabalho para ganhar o insuficiente para sua sobrevivência, dedicar-se a uma arte da palavra que não tem “utilidade prática” é algo incompreensível para muitos.

Agora, imaginem o estranhamento causado no leitor que se depare com os livros de Djami Sezostre. A começar pelo nome do autor. Estranhamento que continua com os nomes de (quase todos) seus livros: Lágrimas & orgasmos, Çeiva, Z a zero, Zut, Cavalo & catarse, O pênis do Espírito Santo, Óbvio oblongo, Oh cahtahrahkwyh – o som da Via Láctea e este A estrela chorou rosas. E que se confirma ao abrir esses livros e ler seus poemas.

Os poemas de Djami Sezostre estão entre os mais estranháveis na poesia brasileira, hoje. Considerando a ampla legibilidade – associada, não poucas vezes, à platitude – prevalente em boa parte da poesia publicada aqui, recentemente, afirmar isso significa reconhecer, no mínimo, sua relevância. Trata-se de um poeta que experimenta constantemente, tanto na linguagem, quanto nos temas e nos seus suportes.

O título deste livro – A estrela chorou rosas – nos remete ao livro anteriormente publicado – Oh cahtahrahkwyh – cujo subtítulo é “o som da Via Láctea”, livro que está aqui republicado, na última parte. A estrela chorou rosas é dividido em quatro partes: 1) Loas; 2) Eu chorei o meu rio Paranaíba; 3) A estrela chorou rosas; 4) Oh Cahtahrahkwyh – o som da via Láctea. O título desta última parte remete à temática cosmológica, que é recorrente na poesia de Sezostre. Aliás, a relação entre o cosmológico e o telúrico é todo um outro campo a ser lido, pressentido e pesquisado na poesia de Sezostre.

O título do livro anterior (agora incorporado neste) coincide – parcialmente – com o do primeiro poema do seu livro Zut, de 2016. Um título onomatopaico: o som de uma catarata – oh cahtahrahkwyh. No título daquele livro, a palavra onomatopaica é associada com o subtítulo o som da Via Láctea que, por sua vez, é também título de um poema do livro O pênis do Espírito Santo (2018). Uma catarata de leite (o branco das estrelas) de dimensões cosmológicas? Uma maneira de afirmar uma íntima relação entre a vida aqui na terra e a vastidão do cosmos?

A reiteração é um procedimento constante na poesia do autor. Encontramo-la nos títulos, frequentemente nos versos e algumas vezes na reinserção de poemas inteiros – já anteriormente publicados – num novo livro. É o caso, por exemplo, dos três primeiros poemas deste livro – “Oh cahtahrahkwyh”, “Sudário” e “Menino Jesus é rei” – , que já constavam do livro Zut. Há vários outros casos assim. Antes de qualquer julgamento apressado sobre este tipo de procedimento, é preciso observar com mais cuidado. Lendo os poemas, neste e nos livros anteriores, ressalta a presença da reiteração em sua estrutura interna. Vejamos alguns exemplos:

“Ena ene ini ino inu rinchou

O menino na boca do cavalo

E a boca do cavalo não era

Cavala a menina virgem

Ena ene ini ino inu rinchou

O menino na boca do pássaro

E a boca do pássaro não era

Pássara a menina virgem”

(do poema “Airmã”, do livro “O pênis do Espírito Santo”)

“Eu sou o tiziu e ninguém além da

Água me viu assim sendo eu o tiziu

Eu sou o tiziu e ninguém além da

Égua me viu assim sendo eu o tiziu”

(do poema “Zil”, do livro “Oh cahtahrahkwyh…”)

 

Nestes, como em muitos outros exemplos que poderíamos citar, as reiterações incluem pequenas alterações dos vocábulos que sugerem um jogo combinatório que, no entanto, não parece meramente lúdico. Lembram as reiterações estruturais – o paralelismo – características das cantigas trovadorescas e encontráveis na poesia popular. Essas reiterações paralelísticas, sabemos, têm origem na linguagem oral e sempre estiveram muito presentes na tradição da poesia oral – e estão até hoje, além de terem, ao longo da história, estendido sua influência na poesia escrita. Viviana Bosi, em artigo publicado a respeito do livro Zut, ressaltou a forte presença, na poesia de Sezostre, da oralidade com emprego de ritmos e sonoridades com efeito encantatório.

Em sua poesia, não se trata apenas de reiterações; são abundantes os ecos, ressonâncias, espelhamentos. Inclusive dentro de um mesmo livro. Vejamos um exemplo deste volume. Nas Loas iniciais, o autor diz, em determinados momentos:

“Djami faz performance nu no colóquio Fenda 16 poetas vivos em Belo Horizonte”

“Mãe arrasta filha durante espetáculo Cilada ao ver o poeta em ereção”

“’Que absurdo’, desabafa Francesco Napoli, com a exclusão pelo Instagram de uma imagem do poeta Djami Sezostre nu acusado de pornografia”

“Acharam que ele era mulher, assim exclamaram os leitores de Cilada”

“Ensaio nu do poeta dos cerrados provoca olhares no MASP em São Paulo dos Campos de Piratininga”

“Sebastián Moreno fotografa o poeta de saia em ensaio pela Pampulha”

“Performance tem poeta de saia em Subida ao paraíso”

“Poeta constrange o público com a sua nudez no Complexo da ventania em Cruzília”

 

Páginas adiante, reencontramos essas imagens de nudez e travestimento retrabalhadas no poema “Nu”:

 

Nu comonuncanasci euestou nu

Nudiante da água e diante da água nu

O espelho me veste a criança me veste

Eu quero a saia da minha mãe para

Para anoitecer, a saia da minha mãe

E para dormir e sonhar, a saia da minha mãe

E para amanhecer, a saia da minha mãe, eu mbiá

 

Essa constante referência à nudez e ao travestimento parece querer ressoar uma rememoração de uma infância idealizada na qual se associam, por um lado, uma relação erotizada e livre com os outros e com a natureza; por outro lado, um aprendizado com a cultura dos povos originários – “eu mbiá”; e, ainda por outro lado, uma recriação permanente da linguagem de modo a ignorar os entraves das suas sedimentações acomodatícias.

De fato, o experimentalismo de sua poesia – que neste livro se mostra ainda mais agudo – não é tão voltado aos recursos tipográficos-visuais (como em grande parte da poesia experimental das vanguardas históricas), mas a um trânsito constante entre a cultura letrada e a cultura ágrafa. Inclusive, alguns poemas tematizam essas passagens, como, por exemplo, “Os ágrafos” (no livro O pênis do Espírito Santo) e “Currutela” (no livro Óbvio oblongo) – este último, um longo poema em que se enumeram muitos nomes de lugares do interior do país nos quais explode a riqueza sonora de uma linguagem distante do prestígio social (que é como define “corruptela” o Dicionário Houaiss). No livro – Oh cahtahrahkwyh, um dos poemas se chama “Nãolíngua”. Um verso no poema “loas”, no início deste livro, diz: “O pai do poeta era ágrafo e falava uma língua fóssil”.

Entre o fóssil e o físsil, nos poemas de Sezostre a norma linguística é frequentemente corrompida: palavras são fragmentadas e/ou emendadas/fundidas e outras tantas são inventadas. Em diversos poemas, parece que as próprias coisas e os animais querem tomar a palavra. Por exemplo, nas “Loas” iniciais deste livro, encontramos este verso: “O enxame ziziou onomatopeias na enxurrada”. Trata-se, frequentemente, de uma linguagem que evoca/invoca uma glotogonia (numa relação intrínseca entre biologia, linguagem e cultura), mas sem as ambições conceituais da “zaum” (linguagem transmental) de Khlébnikov, por exemplo.

Na linguagem poética de Sezostre podemos ver uma espécie de desrecalcamento da escrita (em termos derridianos): a denegação do fonologocentrismo que compromete a voz ao sentido. Como sabemos, Derrida apontou o fonologocentrismo como origem da metafísica da presença. No pensamento ocidental (supondo uma continuidade cada vez mais questionada), o significado (portanto, o sentido, a presença) estaria na fala e a escrita seria o lugar da falta, da ausência. Uma das razões do estranhamento provocado pela poesia de Sezostre é o fato de que nela fala e escrita parecem intimamente engastadas. Isto não significa que em sua linguagem a incompletude do signo tenha sido abolida, mas que ela é suprida por uma semiose contínua que mescla elementos de fala e escrita.

O mundo que essa linguagem em permanente experimentação expressa contém muito animismo, mistura de elementos da cultura europeia e de culturas indígenas e negras, fusão humano/não-humano e pansexualismo (inclusive com a sugestão de elementos autobiográficos recorrentes e cifrados). A associação desse hibridismo de linguagem, de séries culturais (Tynianov) e de experiências vivenciais conduziu essa poesia à performance, prática constante de Sezostre.

Mário Alex Rosa, em texto ao final do livro Z a zero (2010), observou que, embora vários poemas de Sezostre pareçam um jorro, embora sua poética pareça intuitiva e até selvagem, é possível observar “um rigor na composição dos versos, na construção equilibrada, como se fosse um poeta de linhagem mais construtivista”. Aliás, no posfácio ao mesmo livro, o poeta português Fernando Aguiar destacou o rigor de composição dos sonetos que integram aquela obra.

Assim, também, se dá nos livros mais recentes e neste que aqui se apresenta: em meio a uma aparente incontinência de um vitalismo um tanto naif, quase selvagem, podemos entrever, diversas vezes, construções poéticas densas e refletidas. O dizível, para Djami Sezostre – poeta que mantém uma relação das mais tensas com a língua – , desliza no emaranhado entre o material e o espiritual. Entretanto, o poeta se mostra consciente da relação de sua poesia com essas forças vitais. Seu léxico – relacionado, amiúde, aos reinos animal, vegetal (um de seus livros mais importantes se chama “Çeiva” – um título no qual essas substâncias vitais se travestem num “erro” ortográfico: de certo modo, uma síntese de sua poética) e mineral – demonstra que em sua poesia o espiritual encontra pregnância na riqueza multiforme do mundo material.

 

Julio Mendonça é escritor e ensaísta.


Djami Sezostre, criador da Poesia Biossonora e da Ecoperformance, é autor dos livros: Lágrimas & OrgasmosÁguas SelvagensDissonâncias, Moinho de FlechasCiladaSolo de ColibriÇeivaPardal de RapinaAnuArranjos de Pássaros e FloresCachapregoEstilhaços no Lago de PúrpuraYguaraniSilvaredoZ a ZeroEu Te AmoOnze Mil VirgensO Menino da sua MãeZutCavalo & CatarseSalmos VerdesO pênis do Espírito SantoCão RaivaÓbvio Oblongo, O pássaro zero, Oh Cahtahrahkwyh o som da Via Láctea, A estrela chorou rosas.




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