Música que atravessa fronteiras
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Conheci Indran Amirthanayagam de forma surpreendente. Trabalhava em uma agência de publicidade e ele me fez uma visita acompanhado de uma comitiva, guarda-costas e carro da embaixada americana. Alguém havia lhe dito que se passasse por São Paulo não deixasse de me procurar.
Indran era um diplomata americano com uma história de vida cheia de peripécias. Quando este livro, Música Subterrânea, chegar às mãos dos leitores lusófonos, ele já estará aposentado da carreira e, certamente, preferirá apresentar-se como editor e poeta multilíngue.
Fiquei surpreso e encantado quando o conheci lá pelos idos de 2010 em São Paulo. Uma figura generosa que se esforçava para se comunicar comigo em português, visto que eu não falava inglês. Nossa conexão era a mais improvável e admirável das conexões: a poesia.
Não sabia nada sobre ele. Aos poucos, fui descobrindo que ele já havia publicado em inglês, em espanhol, em francês e até em crioulo haitiano. Ele nasceu em Colombo, no antigo Ceilão, hoje Sri Lanka. Aos 8 anos, foi para Londres e, aos 14, para o Havaí. Foi contemporâneo de Barack Obama na mesma escola em Honolulu.
Depois, Indran cursou literatura inglesa no Haverford College e fez mestrado em jornalismo na Columbia University. Foi seu período de efervescência poética na década de 1980. Organizou leituras de poesia, escreveu crítica de teatro e aprofundou sua amizade com Allen Ginsberg, que conhecera no Havaí e acabou se tornando uma espécie de mentor poético.
Embora Indran falasse inglês em casa com seus pais, no Ceilão, seu idioma materno era o tâmil, uma das línguas mais antigas do mundo, com uma prosódia complexa e uma estrutura gramatical flexível.
Imagino que essa tradição sonora e cultural tenha ficado imantada em seu espírito, mesmo que ele tenha vestido a capa anglo-saxônica para sobreviver e se desenvolver.
Depois das experiências em Nova York, Indran tentou a carreira diplomática em Washington D.C. e, coisa rara para um estrangeiro, conseguiu se tornar um diplomata americano com participações em missões em África, Ásia, Europa, América do Norte e do Sul.
Suas publicações em poesia começaram em 1993 com The Elephants of Reckoning. De lá pra cá, não parou mais. Já contabiliza 23 livros.
Indran é um poeta. Desviou-se dos muros de lamentações do mundo, das imposições de suas funções no império, com a estratégia existencial que a poesia nos oferece: evitar a contaminação diária do espírito.
Além de tornar-se um cidadão do mundo, Indran é também um americano do norte que sofre na pele, literalmente, o peso de um país que costuma jogar pesado com o mundo.
Utiliza-se, então, da poesia como um antídoto para estancar seus ferimentos. É o que ele nos diz em bom português: “sempre existe / o poema para / contemplar e saná-los”.
Para ele, “a última imagem do poema” não pode ser o desassossego. Sua redenção, nossa redenção, eu diria, “nasce em cada poema novo”.
Mesmo vivendo no centro do império, ou talvez por isso mesmo, a imagem de sua ilha natal não desaparece, a crueldade da guerra civil, a separação de seus entes queridos, de sua língua materna quase perdida.
Indran habita um entre-lugar que ele mobiliou com suas influências literárias, seus poemas, seus amores, amizades e projetos.
Há um caos dentro e fora do poeta que precisa ser reordenado. Ele diz: “Deixa o poema a seu caos, / ou seja, que as metáforas cruas / e rudes não encontrem suas casas”.
Quando teremos, suplica o poeta, a “confiança de que nossos filhos estudam suas letras / e matemáticas antes de voltar para casa” sem serem baleados?
Seu amor pelo Brasil fica evidente em vários poemas. Indran conseguiu, com a ajuda de seu professor e de seus amigos brasileiros, ultrapassar as travas que são colocadas no caminho de quem se arvora a escrever em uma língua que não é a sua e que muitas vezes pode ser tornar uma madrasta não muito afetuosa.
É bonito de ver que ele buscou e soube encontrar as melhores referências em língua portuguesa e brasileira. Leu Camões, Alberto Caeiro, Drummond, visitou em pessoa Ferreira Gullar e trocou correspondência com vários poetas brasileiros.
Fernando Pessoa, como não poderia deixar de ser, é uma tocante referência. A solidão múltipla de Pessoa. A solidão múltipla de Indran: sozinho no táxi, na rua, no quarto do hotel de algum lugar do mundo e sempre acompanhado de Caeiro.
Um “diplomata, mendigo, rei” que dança flutuando sobre o Rio Negro, que se preocupa, pensa e discute em fóruns mundiais saídas para o aquecimento global. Que deve reportar tudo o que ouve e vê a seu chefe em Washington, mas que, com certeza, o sumo do que ouve, vê e sente está formatado em seus poemas, agora em português.
Um homem que atravessou várias fronteiras e que, agora, livre das amarras do cargo, poderá apresentar seu passaporte poético definitivo:
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Homem atravessando a fronteira
Não acredito em fronteiras. Quando morei
na ilha, tinha vizinhos Pereira e Silva
e nossa família havia se tornado católica
há séculos. Você sabe que a nossa música chama-se baila?
Assim, não me diga para deixar de escrever em português.
O poema é um assunto pessoal. Se tocar o coração
de um só homem meu trabalho já vingou, a palavra
levada ao outro sem controles, limites e cidadania.
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Edson Cruz (Ilhéus/BA) é poeta e editor da revista digital Musa Rara.
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METÁFORA
Nas férias de verão o poeta viaja a Dubai,
ao país que construiu a torre mais alta
do mundo. Não sei em qual andar
ele caminha, se existe uma sala
para poetas estrangeiros com frigobar
e estantes cheias de livros, se aquele
governo reconhece que a ideia
da torre nasceu no sonho de um
arquiteto de metáforas.
SÓ COM CAEIRO
Sozinho no táxi compartilhado.
Sozinho na rua caminhando
com a mala. Sozinho no lobby
do hotel pagando a conta.
Sozinho no quarto diante
do televisor. Sozinho
na cama despertando
com o sonho. Sozinho à noite
na mesa de um café tomando
um suco. Agora. E tua namorada
está do outro lado do continente?
Tua ilha? Teus irmãos? Teus filhos?
Nāo queremos mais dessa
poesia mentirosa. Busca
outra maneira de estar sozinho.
Ai, pobre guardador de rebanhos.
CAIM
Nada de rimas fáceis,
nem de estrofes ordenadas.
Deixa o poema a seu caos,
ou seja, que as metáforas cruas
e rudes não encontrem suas casas.
De todas as maneiras ele será escrito,
ainda que o prazer do descobrimento
custe mais trabalho ao caminhar pelo mundo,
sempre em busca de outra maçã
no jardim do vizinho.
AO CONTINENTE FINAL
Que fazer com a ausência,
deixá-la dominar a tarde
ou assassiná-la e buscar
uma nova fonte de
inspiração com observações
sobre o extermínio
dos tâmiles, sua fuga
em barcos que afundam
perto da Austrália?
A LÍNGUA É UMA GAROTA
Você pensa que é fácil ou difícil a escolha
digo, da língua, não da companheira?
Esta última chega inesperadamente
com o Cupido, mas a língua
é outra coisa, filha de uma decisão
deliberada, pensada, sem nenhuma
pressão biológica. O mundo não tem
necessidade d’outro poema em português
mas ainda tenho dúvidas. Talvez tenha ido
a Ipanema por uma causa linguística
e o convite para um suco de maracujá não
foi outra coisa que uma mensagem do Deus
da Retórica, não de uma garota imaginada
sempre nesta vida de poeta que sonha.
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Indran Amirthanayagam é poeta, editor, publisher, tradutor e diplomata. Durante trinta anos, trabalhou para seu país adotivo, os Estados Unidos, em missões diplomáticas na África, Ásia, Europa e Américas do Norte e do Sul. Amirthanayagam produziu um ‘recorde mundial’ em 2020 ao publicar três livros de poemas em três idiomas. Ele escreve em inglês, espanhol, francês, português e crioulo haitiano. Publicou vinte e quatro livros de poesia, incluindo Isleño, Ten Thousand Steps Against the Tyrant, The Migrant States, Coconuts on Mars, The Elephants of Reckoning (vencedor do Prêmio Paterson de Poesia de 1994), Uncivil War e The Splintered Face: Tsunami Poems. Escreve em https://indranamirthanayagam.blogspot.com.
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