Crônicas cantadas


 

Voar em bando

Este é um livro repleto de aves. De passarinhos. Esvoaçam pelas páginas, circulam entre os parágrafos. Batem asas até a infância. Crônicas cantadas (contadas) por meio de pássaros, digamos. Reynaldo Bessa é do mesmo ninho de Rubem Braga. Tão bonita e comovente a paisagem que Bessa (Braga) recupera dos cantos por onde passou. E é mesmo “canto” o que ele faz. Tem um lirismo de flauta sua palavra de cantor. Daí as frases sonoras. Compostas de saudades aladas. Do pai, da mãe. Dos olhos de pássaro da mãe. Ele, menino, um dia ladrão de cavalinhos, preso às mãos calejadas do pai. Aqui e ali memórias dos amigos de escola. Das namoradas. Do jogo de bola. Das dores de amores. Da degola de galinhas e porcos. Do silêncio sagrado na miragem dos quintais. Das sementes dos quintais o verbo que floresce. Fácil ou a duras batalhas. Retendo, no tempo, as últimas substâncias de uma rua. De uma casa. Das coisinhas vazias brilhando ao sol. Até da embalagem abandonada de um maço de cigarros se extrai uma atmosfera rara no ar. Não falta também, entre essas crônicas líricas, o bloqueio quando se dá na escrita. Quando vem e bate a impossibilidade no peito do escritor, à caça de assunto para a inspiração. Talvez um pão que ele, na mente, engaiolou, a luz de Paris que pousou em sua mão. Ou voltar a pousar naquele hotelzinho barato em beira de estrada. Sem contar os fantasmas que o autor desde criança gostou de desenhar. Escrever é voar até Ytchala. Em um dia de domingo. Lugar que parece vizinho de Pasárgada. De São Tomé das Letras. Do mesmo céu de Gullar lá em São Luís do Maranhão. No Cosmos, então, sua terra natal Mossoró é só uma fotografia a perder de vista. Seguimos em sua companhia. Ave nossa! Andorinha que faz mais de um verão.

Marcelino Freire

 

 

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Braga & os passarinhos

junho 13, 2019

 

Sonhei que Rubem Braga me dizia que não estava gostando nada das minhas crônicas porque eu nunca falava de passarinhos. Reforçou que um grande cronista tem de falar de passarinhos. Disse-me ainda que eu parasse de falar com literatos, que estes só falam de literatura, nunca de passarinhos. E outra, passarinhos não têm ego, são como crianças com asas. Eu o ouvia. Permanecia em silêncio. Como contestar o capixaba que amo desde os meus tempos de cursinho? Quando entrei na faculdade, o primeiro amigo que agradeci foi ao Braga. Mas como me lembrei que era um sonho, e sonhos possuem tempos geniosos, nós sabemos, então tentei argumentar que…, mas ele juntou os lábios num biquinho engraçado e logo soltou um assobio que ecoou longe. Posso ter me enganado, mas penso ter ouvido um canto como resposta vindo lá de dentro da mata. Sim, no sonho havia uma mata.

Ele me disse ainda que todos os temas de suas crônicas foram cantados pelos passarinhos. Quando ele não tinha sobre o que escrever, bastava colocar algumas sementes, umas frutinhas, jilós que logo a sua varanda ficava cheinha de canários, tuins, rolinhas, corrupiões, pintassilgo-mineiro, pintassilgo-de-cabeça-preta e até pintassilgo-capixaba. Depois, era só esperar, de papel e lápis na mão, que logo, logo sairia um tema. Sem os passarinhos, disse-me ainda Braga, teria morrido de fome.

Eu o ouvia e até já pensava em fazer um curso sobre passarinhos ou, sei lá, comprar um calhamaço com todos os pássaros da terra, tipos de gaiola, alimentação, comportamento, habitat, essas coisas. Mas ainda – e sempre de olho no relógio de pulso do sonho – tentava argumentar que eu não tinha sido mesmo um menino de passarinhos. Nem de dedo nem de gaiola. E que eu fui o pior atirador de baladeira da turma, e que por isso, um dos meninos, não sei se por pena ou crueldade, me propôs o ritual da baladeira de ouro. Este ritual se resumia em matar um passarinho e logo em seguida engolir o coraçãozinho ainda quente, cru. Era tiro certo. Diziam. Ora, eu não sabia para que queria ser um grande atirador, mas que eu queria, eu queria. Mas sabia que não tinha a menor intenção de engolir o coração de um passarinho, cru, pior ainda. Mas, menino, né, Braga? você sabe. Então tentei matar um passarinho, aquele que parece um helicóptero, que para no ar e tudo mais. “Ah, então você não conhece um beija-flor?”, ele me perguntou.

Não foi fácil. Eu disse. Depois, segui à risca todo o ritual. O fato é que permaneci o pior atirador de baladeira da turma, ainda por cima, fiquei com um sentimento de culpa. Culpa que cabe na minha mão, mas que é maior que o mundo todo. Disse isso, quase de uma só vez, e ele, lá, em silêncio, olhando-me com aqueles olhos que veem tudo.

Depois de um tempinho, pôs a mão em meu ombro e disse: “eu também tenho lá as minhas histórias de menino”. Olhou, então, para o mato e gritou: “tuim, tuim, tuim”. E logo todas as árvores balançaram-se numa tempestade de tuins. Quando voltei a olhar para o Braga, ele pulou em meu dedo, depois foi para o meu ombro, deu duas bicadas em meu rosto e voou na direção dos tuins. Então, fez-se um barulho danado como se todas as folhas das árvores tivessem sido arrancadas de uma só vez. E depois, silêncio. Um desses silêncios que nos dizem mais coisas do que todas as palavras da terra.

 

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Reynaldo Bessa é músico, escritor, poeta e professor. Em 2008, lançou seu primeiro livro Outros barulhos (poemas, Anome Livros), Prêmio Jabuti 2009. Pela Patuá, em 2011, publicou Algarobas Urbanas (contos). Em 2013, lançou Cisco no olho da memória (poemas, Terracota), que recebeu Menção Honrosa no Prêmio Internacional da União Brasileira de Escritores – UBE-RJ – 2014. Publicou pela editora Penalux Na última lona (romance, 2014), Do pássaro voando ao contrário (poesia, 2018), A noite além de escura (contos, 2020) e Esta vida ou outra invenção (poesia, 2021). Em 2023, publicou seu segundo romance, Prato Frio, pela editora Urutau. O autor tem poemas traduzidos para o inglês, espanhol, francês e grego. Escreve para sites, blogs e jornais de literatura e música.




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