Iluminações líricas


Em seu livro de estreia, Aline Leão brinca de quebra-cabeças. O sugestivo título intriga: a autora mira no miúdo, na migalha, na pista, no vestígio – como quem espia pelo buraquinho do telescópio pra flagrar o firmamento. Associando o método documental-surrealista do Murilo Mendes de Janelas Verdes à investigação autobiográfica na colheita de instantâneos visuais dos ensaios de Georges Didi-Huberman, sua escrita fora da casinha é aproximativa, não busca juízos finais – “o ensaio é a mente quando brinca”, diria Cynthia Ozick. Então ela instaura pequenas iluminações líricas em forma de microcontos: de uma ilha que divide continentes e ideologias à busca de Vênus no aplicativo, da estranheza de sentir no corpo um gadget que ouve o coração à descoberta dos meandros de um chuveiro, do silêncio dos pais ausentes a máquinas de costurar o tempo, de cavalinhos de plástico a profetas sem cabeça, de sereias a sibilas. “Fabricar estilhaços e recompô-los: é esse o trabalho da sibila”, diz Aline, e a gente entende – os sinais estão bem à vista. Use seu telescópio e mire no pequeno para ver o futuro.

Ronaldo Bressane

 

***

 

Trechos:

 

 

Diomede

I

       É tão possível atravessar a janela; já não quero. Fecho as pernas contra a luz que vem de lá me incomodando. Só quero a da tela, a desse mapa. Fazer zoom com os dedos pra ver melhor a mancha que acabei de descobrir tão paralela ao umbigo onde apoio o celular. Penso também na linha imaginária que divide meu corpo em duas partes, mas preciso voltar à Diomede, esta manchinha. Pequeno lugar longe de casa. Já meu corpo é outra coisa.

 

 

Sismografia

    Dentro da cerâmica onde se tem gravada a silhueta de uma sereia terrível, alguém sibilou de cansaço e ninguém ouviu. Retornando do mar sem peixe, deixou passar pelos dentes a palavra cansaço três vezes. Como um tórax, sua cavidade acústica balançando. Há um ouvido d’água dentro dela, até a boca. É uma represa entre a borda circular do barro que ondula quando a mulher respira e caminha. Tudo vibra entre seu peito e o mundo. Agora sou a mulher que nada escuta a não ser a terra que tomba: aquilo que cai porque deixa cair e é pesado. Fabricar estilhaços e recompô-los: é esse o trabalho da sibila.

 

 

Belvedere

     Depois do sonho, na boca de Zarima a sequidão. Nos olhos a água evaporando. Na mão nenhum peixe de boca enorme. Só a barriga mesmo, crescida. Há pouco comera iscas de água doce. Na bacia, os lambaris foram trazidos pelas pernas dos pássaros até o riacho quando ainda eram ovos. Depois de crescidos ficam à venda como iscas de ponta de vara para captura de peixes maiores. Às vezes comemos esses peixes pequenos: as gentes

e os peixes grandes.

 

 

Borletti de presente

       Não sei se com Evita, mas meus dedos não são os mesmos. Desde quando ganhei a máquina, parece que nasci pra isto, nasci disto. No primeiro dia, com agulha a postos e carretel cheio, fiz meu primeiro vestido simples. Dois pedaços de tecido de um metro e vinte centímetros. Você molda a manga e faz a curva onde vai a cabeça. Meu corpo coube nele duas vezes, mas virou pano de chão, nem deu pra vender. Anselmo, meu marido, teve razão ao dizer “que desaperfeiçoado isso!”. Então fui aperfeiçoar. Comecei no baixo ventre; uma costura dupla bem reforçada na minha medida. Assim ficou. Meus cabelos passaram no buraco da agulha. A obra foi feita. Depois passei para os dedos. Todos doeram; o mindinho mais. A gente se acostuma, passa a fazer parte da máquina. De madrugada, meu marido põe os pés pra testar se ainda funciona. Tanto trabalho, uma hora deve pifar.

 

 

Jumbo

    Está tudo neste saco. Sabão em pedra, papel, escovinha. Dois pacotes de cigarro. Deixaram entrar uma navalha da vez que foi meu pai, um perigo. Era barbeiro e fazia o pezinho dos companheiros, mas nenhum sangue. Delicado. O bigode fino dos presos era a tendência, coisa dele. Deslizou a lâmina por outras carnes antes, por camadas. Pagou a pena aparando o que crescia. Então, por favor, nada pontiagudo. Nada que fira. São sete algarismos, isto. Vai pra este aqui. Meu irmão é este número. Vou ditar pra você, posso começar?

 

 

Cabíria

     Quando me vi em cena naquela cama pensei que ser atriz era a minha vocação e então decidi: vou estudar. Mas o trabalho me tira o tempo de aprender. Há quem diga que se aprende fazendo, então faço. Enquanto isso, uma atriz profissional imita meus modos, meu conhecimento de calçada, meu jeito de mexer o quadril, minha boca abrindo e fechando como um robô-sucata, meu agudo.

Hoje já sacudi a bolsa na fuça daquela ali.

Continuo sorrindo segurando a lágrima no olho direito e estou nem aí pra concorrência.

Perdida na noite.

Fugitiva de flagrantes inconvenientes.

Grande sombra noturna, inimiga da luz dos postes.

Quem sou eu? A cor do meu salto e batom combinando, quem vê?

Guardo minha sobrevida bem aqui.

Aperto minha cintura, inflo os ombros e sigo os tambores até o filme acabar. Tem que acabar.

Promessas de amor são como cartinhas recitadas do pescoço pra baixo.

Nada de beijar na boca.

 

***

 

 

Onde encomendar o livro: Caravana – Grupo Editorial

 

Aline Leão é da zona leste paulista. Escreve para ser o que quiser ser. É mestra em letras pela Universidade Federal de São Paulo e faz doutorado em história e teoria literária na Universidade Estadual de Campinas. Pequeno lugar longe de casa é seu livro de estreia. Ponto de chegada, ponto de partida. Feito pra rodar. E-mail: aline_leaonascimento@hotmail.com




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook