Biscoitos finos


Um lançamento conjunto de livros de poemas acontece neste início de maio em São Paulo: o professor de língua e literatura grega (da USP), tradutor e poeta Jaa Torrano publica pela editora Ateliê a reunião de sua poesia, intitulada Solidão só há de Sófocles, que inclui um livro inédito; e sai pela editora Madamu o novo livro de poemas do também poeta, professor e tradutor Marcelo Tápia, Ascensões e descensos.

Embora sejam bastante distintos em sua concepção, ambos os livros trazem de modo marcante referências ao universo da literatura grega antiga.

A Musa Rara apresenta um breve material acerca dos dois lançamentos: um texto de Marcelo Tápia sobre seu livro e alguns apontamentos sobre a poesia de Jaa Torrano colhidos do prefácio e do posfácio do próprio volume.


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Sobre o livro Ascensões e descensos

 

SE HOUVESSE UM PREFÁCIO
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O livro de poemas que acabo de publicar pela editora Madamu contém apenas um posfácio, de autoria do professor, poeta e tradutor Leonardo Antunes, que o enriquece muitíssimo. Mas, se houvesse um prefácio e fosse eu mesmo seu autor, seria cabível que seu conteúdo fosse o seguinte:

Vejo esse livro como resultado de uma vivência, já longa, com a poesia universal e brasileira de diversos períodos e tendências, uma leitura do passado múltiplo conforme o percebo visando à minha própria criação, evidentemente dentro dos limites que posso alcançar. Entendo o fazer poético como sendo sempre, de certo modo, uma reescrita do que podemos assimilar do já criado e da própria experiência, e nos move para o que conseguimos “reprocessar”.

Eu diria que este é um livro plural, mas há um eixo temático que perpassa o conjunto. Durante o processo de escrita dos poemas, que levou alguns anos, percebi que a disparidade formal e de conteúdo que se configurava convivia com uma ideia que me estimula, a dos trânsitos entre o alto e o baixo, o superior e o inferior, o céu e as profundezas, a alternância entre os pontos elevados que cada um consegue atingir e os mais rasteiros ou subterrâneos a que a vida e o desempenho podem chegar; o risco das subidas e das quedas. Também percebi que os subconjuntos que foram se formando poderiam se definir como diferentes “pessoas”: a primeira, a segunda e a terceira, que corresponderiam aos poemas basicamente em primeira pessoa (como na poesia lírica), àqueles que se dirigem diretamente a outro alguém (no caso, estabelecendo relações de súplica, mando ou imprecação) e aqueles que se fazem pela voz de um observador-narrador (como na poesia épica). Por isso, o livro foi estruturado em três partes, da “Terceira pessoa” para a “Primeira pessoa”, mas acrescentando-se um “Introito impessoal”, em que o humano é uma presença vaga ou, mesmo, uma ausência, como no poema “Pedra dura”:

…….A pedra grande no terreno,
…….com água em suas cavidades,
…….é breve descanso de pássaros
…….quando descem ao solo seco.

…….Amálgama do alto e do baixo,
…….testemunha as miríades de aves
…….pelas seculares passagens
…….aladas entre sorte e acaso.

Há alguns aspectos que estão, também, no fundamento dos poemas reunidos. Primeiramente, o da incerteza: essa ideia perpassa todo o conjunto, fazendo variar os registros e os modos de composição, e mesmo afirmando explicitamente o incerto, pois as ideias de alto e baixo determinam o percurso entre dois pontos de vista opostos, a oscilação da dúvida; por isso, esse livro também me inquieta: é um reflexo da incerteza como a vejo. Depois, o amálgama de diferenças, a fusão do que é diverso, que envolve a adoção de modelos mais ou menos longínquos para a produção dos poemas – incluindo-se, na “Terceira pessoa”, um poema de filiação épica (com 431 versos), do qual cito os versos 53 a 58:

…….Com ímpeto e coragem, sem alarde,
…….saiu no lusco-fusco da madruga,
…….com o peito apertado de quem parte,

…….mas feliz por enfim se dar ajuda
…….para seguir a viagem de retorno
…….depois de tanta lida e tanta luta.

Por fim, há a admissão de um elemento de elogio ao ingênuo que integra, principalmente, a seção  “Primeira  pessoa”, como nos “Versos do afeto infante”, algo que poderia ter sido dito pela criança mas não o foi (por não ter tido a voz para isso, aludindo-se à etimologia de “infante” (sem voz) e é feito agora; o próprio teor afetivo de alguns poemas atende  a uma permissão para o ingênuo como uma das saídas para a incerteza, por ser um substrato profundo: é claro que a dita “função emotiva da linguagem” não é  definidora da poesia, mas penso que não se pode deixar de perceber que ela também tem seu lugar no mundo da comunicação poética e, por isso, acabou tendo espaço neste livro. Adotei, neles, uma dicção aproximada da infantil para recompor memórias de eventos insignificantes que se tornam vultos persistentes; por menor que sejam, podem ecoar em diversos vãos do pensamento e das emoções, competindo na memória individual e coletiva com as coisas de fato importantes e até mesmo com aquelas que estão nos limites trágicos do mundo. Cito um dos poemas dos “Versos do afeto infante”, “Invento”:

…….A velha bicicleta abandonada,
…….que estava há tanto tempo abandonada,
…….é a nova alegria dos meus dias.

…….Ela inventou a minha liberdade,
…….juntos seguimos ventos na cidade.

Quanto às maneiras de composição, penso que para fazer poesia podem ser utilizados todos os recursos desenvolvidos durante sua história aos quais cada um possa ter acesso e, então, eleger como referências, inclusive os relativos à oralidade e à musicalidade, que nunca se apartaram do ritmo, da sonoridade, das medidas. A mim motiva explorar possibilidades métrico-rítmicas no diálogo que procuro fazer com a tradição e até, por exemplo, dar aparência de “livres” a versos feitos com rigor métrico: regras de composição não são aprisionadoras, são instrumentos para se construírem saídas libertadoras em espaços delimitados, como tudo o que existe e podemos vivenciar.

Acerca da temática, eu diria que o livro busca aproximar a infância e a velhice. Por já ter eu 71 anos, inevitavelmente a velhice faria parte, mesmo de modo involuntário, do que produzi. Achei oportuno incluir as “Sentenças dos setent’anos”, subconjunto final do livro que convive com aquele dos “Versos do afeto infante” para tratar de vivências e de estigmas associados à velhice. Os polos da pouca e da muita idade se aproximam como num espelho que exibe uma forma de síntese, a qual envolve o diálogo entre a humildade e a altivez: numa epígrafe que incorporei ao livro, versos de “Humilla el sol” (nos “Sonetos a la rosa”), de Lope de Vega, referindo-se à breve vida de uma rosa, dizem (aqui traduzidos, embora estejam em espanhol no livro): “Pois se a sombra de tua breve infância / é a mesma velhice, em que se fia / a vã presunção de tua arrogância?”.

Menciono, por fim, que todo o conteúdo de Ascensões e descensos é inédito em livro; apenas uma parte da “Primeira pessoa”, “Lance de sombras”, foi publicada antes na revista Poesia sempre, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

 

Marcelo Tápia, abril de 2025

 

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Sobre Solidão só há de Sófocles
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O livro ora publicado pela editora Ateliê reúne a produção poética de Jaa Torrano. Em seu prefácio ao volume, o autor esclarece que a reunião de seus livros segue uma ordem inversa à cronologia de suas publicações: o volume se inicia com os poemas inéditos de “Barbárie Br”, ao qual se segue o que ele denominou sua “Trilogia ecstática”: “Divino Gibi”, “A Esfera e os Dias” e “Satori Story”. Ao conjunto completo deu ele o título de Solidão só há de Sófocles, “entendido como Tetralogia Itinerante.

Tratando-se da primeira parte da Tetralogia, diz Torrano:

Em ‘Barbárie Br’, a necessidade imediata de responder co­tidianamente às injunções impostas pela chegada ao poder das forças tragicômicas encontra uma primeira resposta no refúgio na intemporalidade, na qual esse “in” da intemporalidade é ambí­guo, significando tanto “privação” quanto “internação”. Tanto se recusa a aceitar o espetáculo representado nos jornais, quanto se debruça na tentativa de compreender as causas e consequências dessa inopinada e incontornável irrupção do tempo mais hórri­do que jamais suspeitado. Ao se recusar o incontornável é que se dá o retorno ao atemporal; ao se empenhar em compreender é que se dá a razão do poema.

E prossegue:

Toda forma de pensar é por metonímia uma forma de pensar o mundo. Para pensar a situação geopolítica em que nos encon­trávamos, servimo-nos dos elementos e da dinâmica próprios do imaginário mítico documentado na produção literária grega clás­sica, fazendo com esses elementos e com essa dinâmica o nosso jogo de pensar (o mundo), como se ainda hoje pudéssemos ler o mundo tal como o liam os gregos contemporâneos do Teatro de Dioniso. Assim talvez possamos descobrir onde e como nos desen­contramos de nós mesmos e de nossas próprias referências.”

A visão mítica de mundo, evocada por Jaa Torrano em sua obra, bem como as referências que faz ao mundo mítico e literário da Grécia antiga, particularmente as tragédias – tendo ele traduzido todas que chegaram até nós, dos diversos autores, feito esse que dá a dimensão exuberante de seu legado ao leitor brasileiro – motivaram um artigo de fôlego de Leonardo Antunes e Bruno Palavro, que integra o livro como seu posfácio. Citaremos um excerto desse artigo, no qual os autores se referem a um poema do livro Divino Gibi, integrante da atual coletânea:

Na tragédia, humanos, heróis, numes e deuses representam, para Torrano, também quatro graus crescentes de participação no ser, na verdade e no conhecimento. O movimento trágico surgi­ria, portanto, dos embates entre as diferentes experiências de ser, de verdade e de conhecimento dos coreutas (humanos comuns), dos protagonistas (heróis), dos poderes definidores dos destinos individuais e coletivos (numes), e das divindades (deuses).

A própria relação do autor com a elaboração dessa leitura e seus desdobramentos em sua obra e em sua vida pode ser sentida de maneira singular no poema “a vida mais trágica”, de seu livro Divino Gibi:

……..Quando era jovem e estulto como todos
……..pensava como todos que se devia ler
……..a tragédia do ponto de vista do coro
……..sendo o coro metonímia da cidade
……..e os coristas metonímia dos cidadãos.

Os comentários de Antunes e Palavro acerca desse poema darão medida, embora parcialmente, do alcance da trajetória poética, tradutória e de vida de Jaa Torrano:

Cada uma das três estrofes do poema descreve um período do contato de Torrano com as tragédias supérstites de Ésquilo, Eurípides e Sófocles (que, malgrado não ter sido nomeado, sempre foi objeto de estudo e de experiências de tradução de Torrano), em graus progressivamente superiores de participação em ser, verdade e conhecimento. O processo todo é mediado pela tradução e posto à luz numa forma poética que se oferece para inspeção, mas apenas de modo cifrado: o leitor certamente ficará sensibilizado pelo relato de como a atividade de leitura e tradução da tragédia impactou o modo com que o poeta viveu as fases de sua vida e com que as compreende hoje, e sentirá talvez que ficou próximo de ouvir o sentido de algo profundo, tão marcadamente pessoal quanto passível de servir para uma universalidade totalizante; porém, parece ser um tipo de compreensão impossível de se atingir exceto quando se a vive.

Para fecharmos esta breve nota sobre seu mais recente livro, incluamos o poema que consta na quarta capa do volume:

 

odysseia

Pesam meus dias os remoinhos de Posídon,
vigílias em terras inimigas e os caminhos úmidos.
Paz em Ítaca que ainda não tive
deve ser algo terrível.
Como suportaria a paz pré-tumular em meu lar,
banido do convívio com o inimigo
e exilado as regiões que os meus olhos jamais viram?
Ainda que a Deusa me desse ambrosia
vida imortal para eu gozar o seu amor
no umbigo do mar,
que alegria eu teria
se não mais visse
o dia que até o ver o desconhecia?

 

 

 

 

 

 

 




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