Leopold – uma novela


“E agora, o que faço da minha vida?” Eis a questão que atormenta um ilustre músico durante uma viagem noturna na sacolejante diligência que vai de Viena para Salzburg. Estamos em 1785 e, perante dois ouvintes adormecidos, o músico rememora seu percurso como pai de um prodígio. Ele quer mostrar ao juízo da História que sempre proporcionou o melhor para o filho, quis fazê-lo o maior compositor da Europa e quando se dá conta de que o filho já atingiu essa condição, vê diante de si apenas um vazio e uma vertigem.

Este livro não é uma biografia de Leopold Mozart, mas, sim, uma apaixonante novela, em que o autor, depois de anos de pesquisa e muita reflexão, traz-nos o que poderia ter sido esse ser humano e artista que experimentou a ventura e a vertigem de ser pai de um gênio inconteste da arte.

 

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Posfácio para ser lido antes
por Luiz Antonio de Assis Brasil
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Certo dia Valesca, minha mulher, e eu conversávamos sobre as ideias da segunda metade do século XVIII, e o assunto derivou para Leopold Mozart, iluminista e, numa aparente contradição, católico fervoroso. Ela perguntou, mais para si mesma: “Como ele se sentiria, pensando dessa forma e, ainda, sendo pai de um gênio?” Essa pergunta jamais me ocorrera, e, não preciso dizer, a resposta me ocupou nos últimos quatro anos – com uma pausa no pico da pandemia – tempo em que escrevi este livro.

Já durante o planejamento, fui tomado por escrúpulos. Que autoridade tinha eu, sul-americano, para escrever sobre um tema europeu, alemão, austríaco e musical, e em português? Tremi ante a síndrome do impostor que começava a delinear-se. Era assombrado com as reticências de possíveis leitores centro-europeus e eruditos, cobertos por séculos de cultura: “Mas quem esse autor pensa que é, intrometendo-se num tema que é nosso?”

Tentei manter a calma e evoquei algumas circunstâncias que poderiam legitimar, como se diz hoje, meu lugar de fala. Neste caso, seria mais verdadeiro tempo de fala. Pensei em minha mãe, formada em piano, uma senhorinha, entre tantas na década de 30 do século anterior, que se esforçavam por tocar a “Marcha Turca” de W. A. Mozart. Pensei em meu pai, que, entre chiados enervantes, escutava, pelas ondas curtas da Rádio Belgrano de Buenos Aires, as óperas e concertos transmitidos ao vivo do Teatro Colón, e sua preferência era W. A. Mozart. Então pensei na minha própria vida, que começa como cantor de coral de igreja, depois dedicado estudante de música, depois integrante da Orquestra Juvenil de Porto Alegre, com a direção do saudoso maestro Gunnar Skou-Larsen; depois violoncelista por 15 anos da orquestra sinfônica de minha cidade, na altura a melhor orquestra do Brasil. Toquei sob maestros de ressonância nacional e internacional. Enfim, sou músico. Era um começo de legitimação. Outro dado: na carreira de escritor, já havia publicado mais de vinte novelas, sendo que três têm como tema central a música, e foram razoavelmente bem recebidas pelo público e pela crítica, sendo uma levada ao cinema.

E Mozart? Essa é paixão antiquíssima, que me fazia exaltar quando o tocávamos na orquestra e, quando ainda adolescente, me fazia recortar e colecionar tudo que fosse escrito sobre ele [eram tempos pré-internet]. Caso me candidatasse nesses concursos na televisão que aferem o conhecimento da pessoa acerca de qualquer assunto, eu teria ficado milionário respondendo sobre vida e obra de Wolfgang Amadeus Mozart. Entretanto não era esse meu objetivo; fascinava-me, mais do que tudo, entender a música do grande mestre, e, entendendo-a, desfrutá-la com maior rigor.

Seguindo no trabalho de afastar a síndrome: pensei na minha experiência pessoal dos espaços mozartianos. Eu conhecia todos, especialmente Salzburg. Claro, antes eram visitas turísticas, mas, mesmo assim, sempre procurei descobrir todos os lugares em que Mozart estivera, ainda que menos famosos. Conhecia e anotava, apenas pelo prazer: “Aqui ele esteve, isto ele olhou”. E, na maioria das vezes, acompanhado por seu pai, que, até aquele momento, era um coadjuvante necessário e quase sempre, incômodo.

Depois de que me decidi a escrever a novela tendo Leopold Mozart como personagem, dirigi toda a minha capacidade intelectual para instruir-me do muito que me faltava, e então consultei centenas de fontes primárias – minha opção foi tratar preferentemente com fontes primárias, para guardar a originalidade da minha interpretação. Só as cartas da família Mozart, no período, são mais de 500. As poucas fontes secundárias, algumas excelentes, foram mais úteis pelas preciosas referências factuais que traziam. Empreendi novas viagens, agora com intenção específica, com duas estadas em Salzburg, onde pesquisei em arquivos e, por puro amor às minúcias, tive gestos de maníaco: contei os 437 passos que ligam a Residenz à primeira morada dos Mozart na Getreidegasse, gravei o exato timbre dos sinos da Nova Residenz, fiz soar minha voz em igrejas vazias, andei no meio da neve, vencendo os caminhos lúgubres do cemitério de São Sebastião, onde está o túmulo de Leopold. Tive à minha frente e examinei por horas os pormenores do famoso forte-piano de Mozart, agora sem sua pedaleira, comi o famoso Nockerl com calda de mirtilos e, na cripta da catedral, parei-me perante o túmulo do Arcebispo von Colloredo, a Nêmesis dos Mozart, desejando-lhe um bom – e eterno – repouso.

Que mais fiz na busca pela família Mozart? Escrevi e-mails para especialistas mozartianos de todo o mundo, li inúmeras teses acadêmicas. Não estive apenas à busca de textos sobre música relativos a Mozart e seu pai, mas também de obras filosóficas, compêndios de política e história das ideias do século XVIII. Foi providencial meu domínio, ainda que pouco entusiasmante, do idioma alemão. Sem isso, seria impossível progredir na pesquisa. E mil vezes agradeço aos meios digitais, que me possibilitaram fazer o download de dezenas de livros e documentos de bibliotecas e arquivos públicos. Seria pouco para uma biografia, mas o suficiente para uma novela.

Então, considerei tudo isso e, mesmo sendo um possível outsider geográfico e cultural, pensei, com todas as ressalvas, ter acumulado o conhecimento e as vivências necessárias para me lançar, com promessa de boa realização, à escrita deste livro.

Encarei, então, Leopold, a quem, familiarmente, costumava chamar de o velho Leopold, esquecendo que ele era mais moço do que eu quando ocorreram os fatos da novela. A grande pergunta com que me deparei foi: “Quem poderia ter sido esse homem?” Eu teria de livrar-me de todos os estereótipos que cercam um homem velho, rabugento e sentencioso. Inevitável: eu precisava inventá-lo como ser humano; eu deveria dar a essa personagem um desejo vital, uma história de suas emoções, até pensar na intensidade e na qualidade de seu erotismo. Nesse aspecto, as fontes primárias me ajudaram, mas pouco. Em suas cartas, nas quais ele se oculta sob uma feroz capa de pudor, consegui decifrar vários gaps que permitem fazer ilações acerca de seus dramas pessoais, o que me abstenho de dizê-los expressamente no livro, deixando para o leitor a livre fruição da descoberta.

O grande desafio, sob o aspecto narrativo, foi a escolha da focalização: a coragem pela primeira pessoa, isto é, Leopoldo falando, implicava um primeiro problema, o da linguagem. Esta novela foi escrita na língua portuguesa e, portanto, com palavras e construções sintáticas que não eram as de Leopold; isso significava uma tradução. Mas tradução de quê? Do alemão-austríaco do século XVIII? Por outro lado, como se expressaria oralmente Leopold, quais as nuances léxicas e idioletos que usava em sua língua materna? Nesse ponto, e por exemplo, as cartas auxiliaram, com suas frequentes obscenidades, e que vieram em pinças e dúvidas para alguns momentos da novela, mas… ele as usaria perante interlocutores de fora do círculo familiar? Essas perguntas não tinham respostas e, então, fui levado a usar, na língua portuguesa, algo que evocasse o possível falar do pai de Wolfgang, mas que fosse inteligível para o leitor de hoje. As estratégias foram muitas, e uma dessas foi a substituição do gerúndio pela forma infinitiva [assim: a dizer, em vez de dizendo, de preferente uso em Portugal continental e no Brasil do século XIX]. Os arcaísmos aqui presentes e usados na medida, por certo, serão perdoados pelo leitor. Servem para dar o ar do tempo.

O uso do eu não levou a consequências de natureza apenas linguísticas mas, principalmente, correspondeu à necessidade de expor a interioridade mais profunda de Leopold. Um dado, desde logo, se impôs: ele, como qualquer ser humano, era capaz de mentir a si mesmo, e, portanto, de mentir aos outros. Impossível ignorar, contudo, que ele estava numa situação de ajuste de contas quase in extremis, quando as pessoas costumam falar com relativa sinceridade. Nessa equação, por si só complexa, entra mais um elemento peculiar da personagem e das circunstâncias: como o próprio Leopold explica, ele precisava contar sua história para alguém, a fim de que tivesse de organizar suas ideias, e o faz tendo, como destinatário de sua fala, o casal que, na diligência, dorme no banco à frente. Assim, impunha-se certa organização frasal que levasse à compreensibilidade. Todos esses fatores imbricados, alguns contraditórios entre si, obrigaram-me a decisões ficcionais que operaram no limite das possibilidades que a língua literária permite. Sei que nem todas as soluções parecerão naturais ao leitor, e é o risco que devo assumir.

Já adentrando na relação entre pai e filho, unidos pela vírgula do título desta novela: aqui temos um assunto nebuloso, mas se pode perceber, por suas cartas, que Leopold foi quase sempre severo, quando não, áspero, intrometendo-se de contínuo na vida de Wolfgang, uma conduta não incomum na sociedade europeia e patriarcal do período. A diferença estava no domínio da música, o que os unia e, a partir de certo

momento, foi objeto de desagrados. Esse foi meu escolhido âmbito: saber, ou criar com bases legítimas, como se deu essa relação, recuperada depois da histórica e documentada frase de Joseph Haydn acerca da genialidade de Wolfgang, da qual extraí todas suas possíveis consequências morais e emocionais.

Neste trabalho, não me faltou o interesse de saber melhor acerca da atitude e da competência musical de sua irmã Nannerl, bem como do papel desempenhado pela fiel Anna Maria Pertl, a mãe. Oh, sim, tive de reformular muitas ideias prontas que se referem a ambas.

Por fim, deixo claro que, na escrita de MOZART, Leopold, procurei dar primazia à ficção em relação à pesquisa. Aliás, essa proposta está no subtítulo, que não pode enganar a ninguém: Uma novela. O que apenas peço aos meus poucos leitores de Stendhal é que a leiam com o espírito de quem lê uma história inventada, sem se perguntarem o quanto há, nela, de verdade. Assim fiz quando, em 1985, assisti ao hiperbólico, surrealista e delirante – mas belíssimo – filme Amadeus, de Milos Forman.

Desde já, entretanto, eu adianto: nesta novela há muito mais verdade do que se possa imaginar.

 

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……………..[Túmulo da família Mozart – Salzburg]

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Trecho da novela:

 

O salão de Wolferl logo estava cheio. Eu escutava os elogios ao concerto estreado no Mehlgrube, e a que os barões Tinti haviam comparecido, e falavam a Haydn do quanto era novo o concerto, e então Haydn pediu a Wolferl para que tocasse alguma coisa desse concerto, e Wolferl não se negou, executando o início do segundo movimento, Essa, essa, dizia o Tinti mais velho, a apontar para o teclado, estou ainda com essa frase na cabeça, é muito linda, e Haydn pediu a Wolferl que lhe conseguisse a partitura completa do concerto, queria estudá-la, e depois falou no sucesso que ainda é a ópera turca O rapto do serralho, que eu já havia assistido em Salzburg, uma peça de grande espírito humorístico e, para o agrado e espanto de todos, foi ao forte-piano e assim, mesmo de pé, acompanhou-se cantando a tão célebre ária quanto a do tosco Osmin, o turco, que começa com aqueles seis compassos martelados e sua famosa sucessão de colcheias em staccato, Oh, como eu quero triunfar!, e fez isso a imitar os trejeitos cômicos do cantor Ludwig Fischer, que atuou na estreia, e todos admiraram o espírito leve de Haydn, que nos honrava com seu riso, e eu sabia o quanto aquilo significava na minha história com Wolferl, falarei no momento certo. Vejo que Wolferl captou bem a moda turca da sociedade vienense, e agora que os turcos não oferecem mais perigo ao Império, as famílias ricas, por diversão e moda, têm criados turcos, a que obrigam a se vestirem de turcos e assim vestidos de turcos os criados servem à mesa, Wolferl sempre teve tino para captar o que acontece ao redor dele. Percebo que estou divagando e daqui a pouco acabo no rinoceronte de Dürer, e estou divagando, agora de propósito, a emendar um assunto inútil no outro porque é tremenda a coisa que quero contar e me custa todo o sangue do meu corpo, mas não tenho como adiar mais, e aí vai.

Wolferl, porque desejava o melhor naquela noite de homenagem a Haydn, pediu-me que tocasse a parte do segundo-violino dos quartetos, enquanto ele se encarregaria do primeiro. Os barões Tinti ficavam com a viola e o violoncelo. Tivéramos um contratempo, o copista havia atrasado a entrega das cópias, Wolferl caminhava irrequieto, ele sempre foi irrequieto desde criança, caminhava para lá e para cá, olhava pela janela a ver se chegavam as cópias, enfim as cópias chegaram no meio da tarde, o copista, reclamando do pouco tempo que ele e dois colegas tiveram para realizar o trabalho, cobrou mais 5 Gulden por causa disso, e mal tivemos tempo de fazer um ensaio, o que me deixava um pouco inseguro pelo resultado do conjunto, e mais ainda os barões Tinti, pouco competentes para leituras de primeira vista, músicos amadores são sempre meio palermas, porque, para eles, cada nota é o terror de um mistério, e enfim, o resultado do ensaio resultou bastante aceitável. Não foi espanto para mim que cada quarteto revelou-se melhor do que o outro, dotados todos de uma sonoridade amadurecida, em que são exploradas as possibilidades de cada instrumento, esses últimos quartetos iam além dos outros, apresentando ainda mais complexidade e graça, com segundos movimentos cheios de circunspecta melancolia, alguns outros porém entregues à emoção, a emoção que caiu no gosto dos atuais compositores e ouvintes, e nenhum com a força de Wolferl, mas não quero fazer disso um casus belli, mas um desses quartetos, em Dó maior, inicia com 22 compassos dissonantes. No ensaio, nas primeiras arcadas, pensei tratar-se de erro derivado da pressa do copista, e o olhar de Wolferl me disse que era assim mesmo, e escutei a rilhar os dentes aquela dissonância, enquanto um tremor me atravessava os ossos, tal como acontece quando as unhas de um gato arranham uma folha de flandres, e já de noite, no nosso recital, e esse quarteto da dissonância era o último a ser executado, e enquanto tocávamos, olhei num relance para Haydn, e ele tinha um sorriso tão beatífico como se escutasse as harpas dos Campos Elísios, mas, para mim, música é melodia, ritmo e harmonia, e harmonia é lógica e razão. Aliás, foi o motivo que me levou para música, e isso devo ao ensinamento deste século no qual tenho a sorte de ter nascido e no qual talvez morrerei, e não me espanta que Wolferl tenha incluído aquela passagem estranha, e me aliviei quando me dei conta de que a dissonância não viera de um arrebatamento inconsequente, mas de uma pensada decisão, tanto que, logo a seguir à dissonância, inicia o verdadeiro movimento, cheio de brilho, como se a dissonância ali estivesse para inquietar os ouvintes e dizer, Não se enganem, nem tudo nesta vida é harmonia.

Tocamos os três quartetos, um após o outro, mais de uma hora no total, e quando eu imaginava que tinha escutado algo de divino, o seguinte o superava em invenções melódicas, e era música pura, não se referia a nada, não representava nada, não sugeria nada, falava ao sentimento, e às vezes derrapavam para a emoção, e nem se escutavam as notas imperfeitas dos amigos amadores. Com a passagem do tempo, eu pensava, ele só iria aperfeiçoar a técnica do quarteto de cordas, não lhe faltavam dedicação e conhecimento para isso, e, o principal, eu pensava, tinha seu pai para ensiná-lo. Terminado o último, os músicos baixaram seus instrumentos, os convidados mal respiravam, e como já era noite adiantada, a rua estava quieta, apenas interrompida pelo rodar macio de um fiacre a passo. Haydn se ergueu, todos se ergueram, e ele, depois de cumprimentar e agradecer a Wolferl pela dedicatória, uma honra imerecida, assim o disse, e depois de cumprimentar os barões Tinti, ele com pausa se voltou para mim, todos ficaram atentos, Wolferl mais do que todos, algo importante iria acontecer, então Haydn pousou a mão trêmula sobre meu ombro, fixou-me os olhos negros, lustrosos de sentimento e verdade, de lágrimas, então ele disse, Herr Mozart, afirmo ao senhor, perante Deus e como homem honrado, seu filho é o maior compositor que eu conheço, tanto em pessoa como de nome.

Um calor instantâneo me queimou o pescoço e subiu pelo rosto, eu olhava para Haydn, seguia a olhar para ele, para os olhos negros de Haydn, eu não compreendia, e logo que alcancei o sentido de sua sentença, ela retumbou dentro de mim com a ressonância do acorde de um órgão em meio ao silêncio de uma catedral vazia, e logo foi uma exultação pelo que eu escutara, misto de surpresa, e eu desviei da mirada de Haydn e olhei abismado para o chão, eu olhava para o caro tapete turco do meu filho sobre qual se firmavam os sapatos rasos de Haydn, de verniz negro com fivela retangular de prata fosca, e eu aturdido, eu me fixava nos joanetes de Haydn, e Haydn e Wolferl e todos os outros aguardavam que acontecesse alguma coisa e eu me refazendo aparentei modéstia, murmurei algumas palavras que tiveram o dom de aliviar Haydn e os circunstantes, e então, depois do acorde do órgão, eu voltei a escutar, dominantes, fortes, os sons de meus ouvidos interiores, essa balbúrdia que não vem de lugar algum, ora o ruído de uma mó triturando trigo, ora um chiado de cigarra numa tarde de verão, e naquela noite, naquele instante, escutei algo intenso e novo, um formigamento na cabeça, depois o choro abafado de uma criança fechada num quarto, e nessa aflição nem me apercebi de que meu filho, ele mesmo, se encarregara de desfazer aquela cena já embaraçosa e convidara Haydn para juntar-se às esposas dos barões, que queriam convidá-lo a atuar num concerto beneficente para as viúvas dos músicos.

Hirto, eu segurava um cálice do vinho do Reno, e repetia a mim mesmo a sentença de Haydn, que não saía da minha cabeça e não saiu até hoje, palavra por palavra, repito-a mil vezes para mim mesmo, vejo o rosto de Haydn, ouço e repito e com o exato tom com que ele a proferiu, o músico mais célebre da Europa, a afirmar que meu filho é o maior de todos os compositores, portanto maior do que ele mesmo, maior que Paisiello, Gluck, Händel, maior do que Palestrina, Vivaldi, Buxtehude, o velho Bach e seus filhos, todos esse compositores de quem eu apresentei as músicas ao meu filho para que ele aprendesse, e eu, eu não sabia onde incluir a grandiosa sentença de Haydn no meu organizado mundo interior, e era aquele choro abafado de uma criança, e o súbito e irremediável vazio que só vim a entender quando me veio à garganta uma terrível pergunta, a primeira vez que eu a dizia, E agora, o que faço da minha vida?

 

 

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GLOSSÁRIO
por Luiz Antonio de Assis Brasil

 

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4/4.  simplificação de “compasso 4/4”, em que há 4 batidas em cada compasso. Também chamado de compasso simples.

A

abertura. Peça musical prévia a uma ópera e que, normalmente, traz os temas das árias que a constituem. W. A. Mozart era conhecido por compor suas aberturas de última hora, causando o desespero dos diretores e empresários musicais.

ária.  Peça musical a ser cantada por apenas uma voz e integrante de um contexto maior, como o de uma ópera ou oratório. Por vezes ganharam autonomia, e eram prestigiadas por si mesmas, o que se tornou numa prática bem comum no período. Isso acabou por gerar a ideia equivocada do público nosso contemporâneo, que as escuta e vê na TV pensando de que se trata de uma canção avulsa, o que significa uma grande perda cultural.

acorde. Entoação simultânea de um conjunto de sons, em geral 3 ou mais.

allegro moderatoV. andamento.

Amati. Os violinos são designados pelos nomes de seus fabricantes. Amati, junto com Stradivarius e Guarnieri eram, e ainda são considerados, os melhores de seu tempo, com preços às vezes astronômicos, mesmo no período de Leopold. Os Mozarts pai e filho, praticavam em instrumentos mais modestos, alemães ou austríacos, mas de excelente qualidade.

andamento. Principalmente, significa o grau de velocidade [e, às vezes, de intenção] com que são executadas as músicas. São citados nesta novela: adagio [Em português, “adágio”], que significa um andamento muito vagaroso, que possui conotações reflexivas, e quando não, dolorosas. Um exemplo bastante conhecido do grande público é o adágio em Sol menor do mestre barroco italiano Tomaso Albinoni; scherzo – Em português, “brincadeira”. A contar da época de W. A. Mozart, passou a ser o nome de um movimento de sinfonia, sonata ou quarteto, muitas vezes substituindo o minueto. Caracteriza-se por ser leve, agitado e alegre, fazendo jus a seu nome.

antifonário. V. antífona.

antífona. Versículo em latim cantado ou entoado pelo celebrante católico romano antes de um salmo ou canto bíblico; logo os fiéis o repetem. O conjunto de antífonas leva o nome de antifonário.  W. A. Mozart escreveu antífonas desde muito cedo.  Um bom antifonista foi o mestre brasileiro da época colonial, Emérico Lobo de Mesquita [1746-1805].

arco. Acessório de alguns instrumentos de corda, que fazem vibrá-las e, assim, produzindo as notas. Consiste numa vara de madeira dura, a que aplica um retesado feixe de crinas de cavalo. Em seu Método de violino, Leopold dedica-lhe vários momentos, em especial nas partes 4, 5, 6 e 7, fazendo-lhes acompanhar de bonitos desenhos que ilustram o modo correto [“regras”] de como segurar o arco.

 

 

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LISTA DE PESSOAS
por Rafael Godoi
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A

B

Bach, Carl Philipp Emanuel. [1714 – 1788]. Compositor alemão do período barroco tardio e clássico inicial, nasceu em Weimar, Alemanha, sendo o segundo filho de Johann Sebastian Bach. Fez seus estudos com seu pai, figura que sempre admirou e ressaltou sua influência. C. P. E. Bach trabalhou como músico da corte em Berlim e em Hamburgo, onde se tornou o maestro da orquestra da cidade em 1768. É conhecido por suas sonatas para teclado, concertos para instrumentos de sopro e cordas, e suas obras para órgão, para além de ter desenvolvido uma estética própria que apontou para o estilo clássico que seria consagrado até o fim do século XVIII. Faleceu em Hamburgo, aos 74 anos.

Bach, Johann Christian. [1735 – 1782]. V. “Bach Inglês”

Bach, Johann Sebastian. [1685 – 1750]. No contexto desta novela, às vezes chamado de “o velho Bach”. Figura central da história da música, proveniente de uma família de músicos e ele próprio pai de vários músicos, dentre os quais Johann Christian, o Bach Inglês, relevante para a formação de W. A. Mozart. Trabalhou como organista e músico da corte em várias cidades alemãs, incluindo Weimar, Köthen e Leipzig. Esta última foi sua residência até sua morte, tendo ocupado o cargo de mestre de capela da igreja de São Tomás.

“Bach Inglês”. Assim era chamado informalmente, nos círculos musicais, Johan Christian Bach [1735 – 1782], último filho do mestre Johann Sebastian Bach [o “velho Bach”]. A alcunha de Johann Cristian derivou do fato de haver-se mudado para Londres em 1762, a convite da corte inglesa. Sua influência sobre o menino W. A. Mozart, ensinando-lhe técnicas que se incorporariam definitivamente à bagagem musical de Wolfgang.

“Bäsle”. “Priminha”. Maria Anna Thekla Mozart, filha de um irmão de Leopold [1758 – 1841]. Conheceu Wolfgang em Augsburg. Seu relacionamento foi certamente íntimo, pelo teor das dez cartas que escreveu à prima, cheias de alusões escatológicas, pornográficas e libertinas, inclusive com desenhos. É possível dizer que era bonita, inteligente, ilustrada, brilhante na conversação. Seu destino, depois do término da relação com Wolferl, foi mais obscuro: teve uma filha com o cônego Dr. Theodor Franz de Paula Maria, barão Von Reibeld, que assumiu a paternidade. Permaneceu sempre solteira. Os últimos 27 anos de sua vida viveu em Bayreuth, ali morrendo aos 82 anos. No cemitério local há uma ornamentada placa em bronze que a homenageia. Não procure pela localização de seu túmulo: é desconhecido. Pelo que prezava de sua liberdade, inclusive a amorosa, pode ser considerada uma mulher que antecipava o espírito do atual século.

Buxtehude, Dieterich. [1637/39 – 1707]. Compositor, organista e violinista alemão, nascido provavelmente em 1637 ou 1639 em Helsingborg, na atual Suécia, e falecido em 1707 em Lübeck, Alemanha. É conhecido por suas obras sacras, em especial as cantatas e oratórios. Sua fama como músico levou Johann Sebastian Bach a caminhar cerca de 400 km para assisti-lo tocar o órgão em Lübeck. Buxtehude trabalhou a maior parte de sua vida na catedral de Lübeck, onde foi organista e compositor principal.

[…]

 

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PLAYLIST: para ouvir as obras citadas

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Concerto para piano n. 20 em Ré menor (KV 466)   (p. 24)

Serenata n. 10 em Si bemol maior (KV 361/370a) – “Gran Partita”  (p. 32)

Andante em Dó maior (KV 1a)  (p. 35)

Concerto para piano n. 18 em Si bemol maior (KV 456) (p. 48)

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Para adquirir o livro: http://editorazain.com.br/catalogo-livros/leopold/

 

 

 




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