Relevos de uma operação narrativa
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O regresso pela porta de marfim reúne textos em cuja leitura, talvez, se deva empreender um afastamento das expectativas suscitadas pela prosa mais convencional. Aqui, os personagens não se prestam a instigar ocupações com assertivas ou equívocos, verossimilhanças ou improbabilidades de seus movimentos – e, paralisias. Perfazendo-se na transitoriedade, as figuras mal se compõem para tais apreciações. Antes, o leitor se servirá do próprio compósito não levado a efeito para, a partir daí, arranjar os significados específicos à cada leitura, que, por conseguinte, não será absoluta, mas sim transitiva.
Através de sua linguagem, o autor faz verter, em alguns momentos, dispositivos mais convencionalmente atribuídos aos domínios da poesia, dentre eles, a reiteração de sons no interior das frases e até mesmo a versificação de sentenças. Além disso, os diferentes elementos incorporados, ora na continuidade, ora em seu oposto, formulam e diversificam ritmos à apreensão das narrativas. No entanto, trata-se de um gotejo singular, esse levado a efeito, das funções de linguagem da poesia no campo da prosa. Sua singularidade reside, principalmente, na parcimônia com que os apoios fonéticos e espaciais são empreendidos pelo autor, chegando mesmo a instigar as intersecções entre essas duas formas literárias.
A disposição dos elementos que utiliza contribui, em certa medida, aos estranhamentos necessários à atenção – e por que não dizer – ao prazer do leitor. O mais se deve ao inusitado; nas narrativas apresentadas encontramos ironia, interrupções e desvios interpostos à fruição. Estabelecendo texturas em planos mais afeitos à rugosidade, Ronald Augusto faz com que operem, através do enigma, da economia e/ou da incongruência com que intencionalmente permeia certas circunstâncias de sua narrativa, ora a aderência e a gravidade, ora a frouxidão e a leveza das quais se servirá o leitor para a composição dos sentidos específicos à cada interpretação.
Entre tantos estímulos, parece utilizar-se da inserção de imagens ou situações reconhecidamente sólitas numa espécie de sugestão de familiaridade ao texto; algo semelhante – em função – a um respiradouro por onde não seja o ar a nos escapar, mas o que possa haver de sobra na medida da estranheza e do desentendimento, já sugeridos por José Paulo Paes, na obra Gaveta de Tradutor, como uma das funções contraditórias da linguagem, e muito bem experimentada por Ronald Augusto em O regresso pela porta de marfim.
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Denise Freitas (Rio Grande, 1980) é escritora e professora. Autora dos livros O gesto sensível do mundo (Class/Bestiário, 2020), Percurso onde não há (Artes &Ecos e Editora Bestiário, 2017); Veio (Butecanis Editora Cabocla, 2014); Mares inversos (Casa Aberta Editora, 2010) e Misturando memórias (Editora Maria do Cais, 2007). Possui publicações em coletâneas e revistas de poesia e crítica literária como Sibila, Germina Literatura, Musa Rara, Modo de Usar, InComunidade, entre outras.
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Conversa lateral durante o banquete
Meu pai? Ah, sim. Meu pai, durante um breve tempo, fez versos e às vezes até pedia a nossa atenção para as coisas que lograva realizar e depois recitava. Meus irmãos zombavam. Mas foi uma afecção passageira. Não me lembro de ver livros na minha casa. Cresci no Rio de Janeiro, isto é, em São Gonçalo. A literatura como uma forma mediana de vaidade só foi acontecer na minha vida bem mais tarde. Na infância e adolescência, satisfação mesmo era a praia, o mar, o cheiro das jacas que rebentavam imensas no chão, mais podres do que maduras, o vidro moído misturado com cola que esfregávamos na linha das pipas e as festinhas onde dançávamos coladinhos com as meninas. O resto era o mundo adulto das letras e das canseiras; esse mundo feito para acabar num livro. Não, não dou conselhos. Suporto com resignação a cólica do próximo. Quem sou eu para transmitir conselhos? A dúvida é o motor. Vá lá, cito, então, uma anotação de E. P. que é uma espécie de aforismo quase confuciano, diz assim: “curiosidade – conselho aos jovens – curiosidade”. Naturalmente, não serve só aos mancebos, vale também para quem (velho que nem você e eu) não quer se deixar apanhar pelos estados frouxos da maturidade amortecida. Como é que é? Cinema? Cinema é tudo, meu caro. Faz a gente cagar duro.
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A ilusão e sua azulada calma
Já bastante além do meio do caminho de minha estreita vida, e, a contragosto recém-chegado à morada de Hades, reparei à esquerda da entrada principal a fonte ao pé do cipreste branco, era a fonte do esquecimento. Imaginava-a menos tolerável. Precavido não bebi de sua água. Um pouco mais à frente, conforme consta em todos os demais relatos, topei a outra água clara e circunfluente, minando do manancial da memória. Acerquei-me dos meganhas do átrio (felizmente mais solícitos do que o descomunal subalterno, a postos, diante da Lei, e por quem passara apurado, séculos antes, sem levantar os olhos) e lhes dirigi essas palavras aladas: “sou filho da terra e do céu, porém em mim mais se projeta a matriz relativa aos céus sem margens”. Então, eles ministraram essa água na concha das minhas mãos e deram-ma de beber. Deste ponto em diante, feito do mesmo estofo de que são feitos os sonhos sigo sempiterno entre os heróis.
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Saiba mais sobre o livro aqui, Editora Ogum’s Toques Negros.
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Ronald Augusto é poeta, professor, ensaísta e crítico de poesia. Licenciado em Filosofia (UFRGS), Mestre em Letras: Teoria, Crítica e Comparatismo (UFRGS). É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2021), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), A Contragosto do Solo (2020), O Leitor Desobediente (2020), Tornaviagem (2020), Crítica Parcial (2022), E mais não digo (2023). Em 2022, em parceria com o Instituto Estado do Livro (IEL), organizou a edição especial de Oliveira Silveira: obra reunida, que celebra um dos mais importantes nomes da literatura afro-brasileira.

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