Os sonhos nunca são velhos



Da coragem de sonhar
por Anelito de Oliveira

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Atenhamo-nos ao “tonus” destemido que caracteriza esta coletânea de poemas. Sem dúvida que o título já o sugere: o sonho se tornou uma espécie de senha de velhice num mundo movido a novidades instantâneas, eletrônicas, “algorítmicas”. O sonhador se tornou uma espécie de monstro, de minotauro, que deve ficar recalcado para que a história social se desenrole normalmente. Mesmo quando não resta dúvida sobre o caráter distópico dessa história por toda parte, sonhadores não são bem vindos. Chega-se mesmo a se lhes atribuir responsabilidade parcial ou total pelo caráter distópico deste século – coisa deles, lá do século XX, dos utópicos.  Os ditos pragmatistas, que ostentam e operam mercados, inclusive editorial, a partir desse horizonte de uma razão evidentemente cínica, provocam temor até a artistas outrora ícones de radicalismo, que encantavam multidões porque ousavam sonhar alto. Menos ao poeta que aqui temos: o angolano João Melo. Seu destemor, sua coragem de não renunciar aos sonhos, tem fundamento histórico, na experiência coletiva, não apenas individual. Está fora de cogitação desde já, leitora e leitor, qualquer possibilidade de sentido ingênuo a envolver a poesia que aqui temos.

Os sonhos nunca são  velhos nos traz a produção mais recente no âmbito da lírica de um dos principais nomes da cena literária angolana dos últimos 50 anos. Sua caminhada começa precocemente no início da década de 1970. Ali publica em periódicos e participa intensamente do movimento de renovação do espaço cultural luandense. Faz  parte de uma geração de escritores que nasceu e cresceu durante o recrudescimento da luta pela libertação de Angola das garras do colonialimo português. Ao lado de nomes como João Maimona, Ana Paula Tavares e José Luís Mendonça, João Melo foi testemunha participante de um processo histórico altamente complexo, cujas fraturas ainda estão muito expostas. Sua contribuição se deu e continua se dando em frentes diversas: como poeta, ficcionista, jornalista, publicitário, deputado, ministro de comunicação e empresário. Trata-se, portanto, de um eminente homem de ação, com uma vida marcada pelo trabalho em prol do desenvolvimento das potencialiades do seu país, bem como do continente africano. Por isso mesmo sua obra literária, que começa a ser enfeixada em livro em 1986, é atravessada não só por um sentimento vivo da história  movente, “in progress”, mas por uma intervenção clínica, corrosiva, no interior desta.

O poeta aqui fala em voz alta, abertamente, a partir de sua experiência mais próxima e mais distante no tempo e no espaço, que é sempre uma experiência mediada por preceitos humanitários. O sonho se revela recorrentemente como referência de humanidade em contraponto aos pesadelos tantos a sacrficar africanos, asiáticos e latino-americanos, angolanos, palestinos e brasileiros. Os pesadelos se revelam tantas vezes como corrupções, adulterações, de sonhos coletivos, ideais sonhados juntos e depois pervertidos por alguns na dinâmica bruta de processos políticos, de jogos de poder. De todo modo, são os sonhos que nos movem, que moveram o pai do poeta em sua luta por justiça social:  “apenas seis dias depois /  de veres içado o sonho pelo qual abandonaste tudo / e partiste / sem saber se regressarias, mas certo / que o sonho coletivo seria alcançado” (Pai, este é o último poema). São os sonhos – sombrios, grandiloquentes, estúpidos, espúrios, insensatos como figurados ao longo deste livro  – que alimentam a história da humanidade inicida na África. Aos sonhos, velhos que não envelhecem, o poeta recorre para se manter humanamente vivo, para não renunciar a si mesmo:  “Eis a minha técnica para sobreviver a estes dias: / renovar os nossos velhos sonhos / sem alarido nem alarde” (Os sonhos nunca são velhos). Eis um estímulo à nossa sobrevivência.

 

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POEMAS DE JOÃO MELO
(In “Os Sonhos Nunca São Velhos”)

 

 

PESSOA, CAETANO E EU

a minha pátria não é
a língua portuguesa

mas a minha pátria eu canto-a
na língua portuguesa

(a língua portuguesa
da minha pátria)

pessoa que descanse em paz
e caetano faça outra canção

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ELOGIO DE CERTAS PALAVRAS

Só pode habitar para sempre o território das palavras
quem as venerar, como se venera, por exemplo,
o ar que respiramos, o alimento que nos sacia,
o fogo que nos aquece quando temos frio,
a voz que nos afaga quando estamos sós.

Ou então: a raiva que nos sufoca,
tanto que precisamos de expulsá-la
do nosso coração, o grito alimentado
por séculos e séculos de dor,
a irrevogável decisão de mudar o nosso destino.

Essas as palavras que é justo venerar.

Essas as palavras cujo sangue habitaremos
até ao fim.

 

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OS SONHOS NUNCA SÃO VELHOS

Eu vivo apenas.
E sonho.
Mas não tenho técnicas para voar,
como certos poetas
e amantes.

Neste estranho momento da minha vida, por exemplo,
tenho praticado o sedentarismo com irrepreensível afinco.

Os meus próprios sonhos
são velhos.

Tão velhos que não preciso de nomeá-los.

Mas todos os dias, em silêncio,
insisto neles.

Eis a minha técnica para sobreviver a estes dias:
renovar os nossos velhos sonhos
sem alarido nem alarde.

 

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TODO O POEMA É ÉPICO

Não sei se o tempo definha
ou floresce
quando o vejo do meu observatório
onde medram as palavras como pequenos sinais eternamente agonizantes,
luzinhas que hesitam antes de se fixarem no ar do quarto,
simulacro do vasto universo que alguém
nos colocou nas mãos como um presente irremediável,
mostrando aos transeuntes
os impossíveis caminhos da esperança, do amor,
da empatia e da humanidade. Ainda ontem
sonhámos que a manhã acordaria jubilosa e feliz,
como uma grande reinvenção,
mas hoje os monstros voltaram a mostrar a sua cara.
Será o tempo um imenso buraco branco,
no qual entramos resolutos e do qual saímos pateticamente, amaldiçoando-o,
vomitando palavras inúteis, embora
gongóricas e fosforescentes (ridículas
tautologias)?
Na verdade,
nada sei.
Mas continuo aqui, quieto,
em busca das sábias, argutas e necessárias palavras
para
epicamente
tentar decifrar o tempo.

 

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O QUE FAZER COM ESTA CULPA?

Sim, há muito sabemos que a utopia
que traziam na mão quando chegaram
se esfarelou entre os seus dedos, como poeira
vã. Sabemos
também
que enquanto nós lutávamos
em seu nome
contra imperiosas
e assustadoras urgências,
eles tinham começado a encher a bolsa vazia
com que partiram um dia para a luta.

Chamávamos a tais urgências: prioridades.

E dizíamos:
tratemos primeiro destas prioridades,
para que o futuro não se extinga
antes do passado.

Estávamos tão ocupados com o futuro,
que não vimos o passado crescer
como uma sombra de dentes ocultos,
tomando conta dos nossos próprios corpos
e do nosso espírito.

Não sentimos a nossa carne apodrecer,
nem a nossa alma gelar
como um vasto inverno eterno.

Por que razão, portanto,
condenamos hoje os antigos espíritos,
que não nos avisaram que tudo aquilo que vemos
já vem desse passado que pensávamos glorioso?

A culpa é toda nossa.

Cabe-nos descobrir o que fazer com ela.

 

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LUANDA BLUES

Hoje subi o vidro que me separava do menino triste
que andava de mão estendida na rua
esperando que alguma migalha assomasse
das luzidias janelas circulantes

Hoje virei a cara ao menino desesperado
que batia com uma moeda na vidraça fechada
com os seus olhos que pareciam não ver
mas que tudo já viram na sua curta vida
inclusive o que não deveriam ver

Hoje fechei os olhos para não ver
o menino raivoso incapaz de compreender
a minha cobardia e o meu silêncio

Quando ele
inevitavelmente
fizer tombar a sua espada sobre a minha cabeça
não há de querer saber
que um dia eu escrevi este poema
inútil e pueril

 

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DENÚNCIA DOS HOMENS QUE ODEIAM GRAMÁTICAS

Eles não leram a lição de gramática de Berta Piñan.
Eles odeiam gramática
e, portanto, também odeiam
Berta Piñan,
embora não saibam de quem se trata.
Também não sabem
o que significa gramática,
mas o conceito perturba-os inexplicavelmente.
Eles sentem-se bem com o seu ofício, cujo exercício diário
jamais lhes suscita dúvidas:
matar.
Matar índios, matar negros,
matar curdos, matar arménios,
matar vietnamitas, matar palestinos.
Se fosse possível, matariam a própria gramática.
Todas
as gramáticas.

 

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QUE GRITOS SÃO ESTES?

De aqui, de dentro da guerra,

                                               eu grito para ser ouvida.

                                                                                              Dinha

 

Que gritos são estes
que chegam do outro lado do rio?

Há muito tempo
este rio de sangue levou os nossos irmãos
para o lado de lá.

Desde então uma guerra sem fim
começou,
uma guerra tenaz,
que todo o silêncio do tempo
não consegue ocultar.

Uma noite imensa
desceu sobre os nossos irmãos
levados para o lado de lá por este rio de sangue.
Pensava ser eterna, mas ó
ledo engano,
há muito os poetas sabem
que não há noites eternas.

De dentro da guerra,
elevam-se cada vez mais
os gritos dos nossos irmãos
e os cânticos dos seus poetas.

 

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CONVERSA COM MAHMOUD DARWISH

Não, poeta, a terra dos homens
não é de todos os homens,
pois pertence aos eleitos, aos que sabem
encantar o fósforo e usá-lo
para triturar por dentro, lentamente, a cabeça das crianças
que jamais serão assunto
para os seus benevolentes discursos, com os quais
empurram pela vossa garganta ferida a liberdade e a democracia
junto com os vossos milhões de mortos desconhecidos,
enquanto sois forçados a marchar como mortos-vivos
rumo ao nada.

Desde que a História entrou pela vossa porta
como um ladrão ousado, poeta,
estais condenados a um abismo atrás do outro. Os que usurparam
as vossas oliveiras
dizem: não existirá amanhã para vocês; sereis culpados
se tentardes tirar água dos nossos poços
ou disparar obuses.

Eles prometeram e cumpriram:
o vosso futuro voou pelas janelas estilhaçadas,
está confinado na cerca onde estais amontoados
como cabras que conhecem o seu destino,
aguarda-vos, traiçoeiro,
nos poços selados à luz do dia.

O teu sonho de pedra, poeta,
foi engolido pela boca suja de sangue dos usurpadores
do nome de Deus
e daqueles que os veneram e exaltam. Jamais regressareis
aos vossos casebres,
as galinhas e os cavalos da vossa infância
já desistiram de aguardar pela vossa inesperada chegada
(de tanto marcharem sem rumo),
mas jubilosa.

Não há nenhum jardim celestial
em que tu, poeta, e Rita,
o teu improvável amor,
possam festejar a aparição de um novo outono
no deserto onde continuam a amontar-se
os vossos corpos carbonizados.

Mas continuais a ter o direito
de morrer como quiserdes.

 

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PARA QUE SERVEM OS OLHOS

                                              Para Mohamed Salem

A tua foto não tem olhos.

 

Para quê – não é
mesmo? –
se nós,
que os temos,
insistimos em cerrá-los
para não vermos a ignomínia?

E no entanto
os teus olhos,
que protegeste com o teu véu
para não veres os olhos do teu filho
cobertos pela branca e pura mortalha,
olhar-nos-ão para todo o sempre,
até ao âmago insuportável da vergonha.

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***

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João Melo, escritor, jornalista e consultor de comunicação, nasceu em 1955, em Luanda (Angola). Fez os estudos primários e secundários na referida cidade. Estudou Direito em Coimbra (Portugal), licenciou-se em Jornalismo em Niterói (Brasil) e fez o mestrado em Comunicação em Cultura no Rio de Janeiro (Brasil). Foi publicitário, professor universitário, parlamentar (1992-2017) e ministro (2017-2019). Membro fundador da União de Escritores Angolanos e da Academia Angola de Literatura e Ciências Sociais. Atualmente dedica-se exclusivamente à escrita e à consultoria, dividindo o seu tempo entre Luanda, Lisboa e Houston.

Como jornalista, trabalhou e dirigiu vários órgãos de comunicação angolanos, públicos e privados. Foi correspondente de imprensa no Brasil de 1984 a 1992. Em 1992, após a abertura política e económica em Angola, foi um dos fundadores do primeiro jornal angolano independente, o Correio da Semana. Em 2006, criou e dirigiu a revista África 21, especializada em temas africanos. Em 2008, recebeu o Prémio Maboque de Jornalismo, na época a mais importante distinção jornalística do país. Colaborou com vários jornais em todos os países de língua portuguesa. Presentemente, mantém uma coluna regular no Jornal de Angola, Diário de Notícias (Portugal), Sinal Aberto, jornal online português, e no jornal literário Rascunho (Curitiba, Brasil).

Como escritor, publicou até agora 21 livros, entre poesia, contos e ensaios. Editado habitualmente em Angola e Portugal, tem obras publicadas igualmente no Brasil, Cuba e Itália. Tem contos e poemas traduzidos em inglês, francês, alemão, árabe e mandarim, publicados em antologias, revistas e sites literários internacionais, como Words Without Borders (USA), Catamaran Literary Reader (USA), Chicago Quarterly Review (USA),  Ellery Queen Mystery (USA), Gávea-Brown (USA), Olongo Africa (Nigéria), The Shallow Tales Review (Nigéria) e Lolwe (Quénia). Em 2009, foi-lhe atribuído o Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola, categoria de literatura.




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