Uma repórter no meio do caminho
Em 1977, Carlos Drummond de Andrade completava 75 anos sem nunca ter dado uma entrevista sequer: toda vida ele fugiu de jornalistas. Com toda a grande imprensa à sua procura, só uma jovem repórter de um pequeno jornal paulistano foi recebida por ele – e em seu apartamento, no Rio de Janeiro, aonde nem os amigos tinham acesso. Quase 40 anos depois, a escritora e jornalista Nanete Neves resolveu contar essa história no livro O Poeta e a foca (Editora Pasavento), que será lançado dia 26 de setembro, na A Casa Tombada, um novo espaço para as artes da capital paulista.
No livro, Nanete Neves conta como foi esse encontro que rendeu boa matéria no Shopping-City News, um perfil do Poeta na revista Nova e, principalmente, uma doce amizade, com troca de telefonemas e cartas por vários anos. A autora relata também as conversas com intelectuais que lhe falaram do jeito de ser do Poeta, suas esquisitices, sua visão de mundo e idiossincrasias pessoais, preparando-a para conhecer o mito: Antônio Houaiss, Nélida Piñon, Ferreira Gullar, Affonso Romano de San’Ana, Antônio Callado, Pedro Nava entre outros.
“O encanto de um grande encontro, como este entre o Poeta e a foca, é atemporal, transcende a nossa superficial forma de sentir a vida e tratar da existência. (Leandro Garcia, professor pós-doutor em Literatura pela PUC-Rio).
“Uma aula de jornalismo e de seus bastidores. Ou de certo jornalismo, talvez já esfumaçado pelo tempo e pelas novas tecnologias. Todos somos tocados pelo duende da sensibilidade e da inteligência com este relato.” (Edson Cruz, poeta, editor, criador e editor do site literário Musa Rara).
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Prefácio
No Meio do Caminho Tinha uma Repórter
Não sou bom para escrever prefácios, confesso e reconheço esta minha dificuldade. Como professor de Teoria Literária, sei que os prefácios são textos extremamente híbridos, vagando entre a crítica e a resenha, entre o depoimento e o impressionismo. E tal fato me deixa preocupado: o que escrever? Como não ser chato? Como não ser elogioso demais?
Por isso que, no geral, não escrevo prefácios.
Mas eis que vem Nanete Neves com uma conversa doce e um pedido carinhoso, ou seja, não pude negar em prefaciar O Poeta e a Foca, cujo título me atordoou desde o início, impelindo-me a tentar entender e descobrir o que o bicho estranho e que se arrasta tinha para se comparado e associado ao poeta de Itabira. Então decidi começar esta apresentação.
I – A Viagem da Foca
Em geral, os dicionários de mitologia definem o termo catábase para se referir à descida ao inferno (o mundo dos mortos). Vários personagens na literatura baixaram (visitaram) aos infernos como Orfeu, Odisseu, Aquiles, Eneias e mesmo Dante, na Divina Comédia. Em geral, o herói descia ao mundo dos mortos com o propósito de consultá-los em questões cruciais e estratégicas, a fim de obter algum conhecimento existencial a respeito de si próprio e/ou uma solução para as suas dúvidas e desejos.
Não apenas do ponto de vista geográfico, já que São Paulo está muito acima do Rio em nível de localização, mas vejo a viagem de Nanete às terras cariocas como uma espécie de catábase pessoal e profissional, que lhe fora proposta como um grande furo de reportagem, um happening editorial e cultural naquele ano de importante boda do poeta.
E a Foca desceu ao Rio de Janeiro…
Aqui me parece residir o mais importante desta aventura da jovem repórter: os seus encontros, suas entrevistas que prepararam o seu encontro com Carlos Drummond de Andrade. Neste sentido, a narrativa de Nanete Neves é um presente aos estudiosos do processo literário brasileiro, particularmente do Modernismo. Acho, com sinceridade, que toda esta história não poderia ficar guardada apenas na lembrança da autora, é individualismo demais, precisava ser compartilhada, como agora está sendo em O Poeta e a Foca.
Fiquei abismado com os encontros que Nanete teve ao longo da sua catábase carioca: José Louzeiro (de quem pouco se fala hoje em dia), Nélida Piñon, Antônio Callado, Affonso Romano de Sant’Anna e Antônio Houaiss – nomes de grande importância na cultura brasileira e que, de um jeito ou outro, ajudaram a nossa repórter a chegar um pouquinho mais perto do poeta transfigurado em mito. E não foram só estes, outros também apareceram: Mário Camarinha, Ferreira Gullar, Pedro Nava e Carlos Eduardo Novaes. Só estes encontros fornecem material para um próximo livro, um projeto que vejo como necessário.
O crítico Silviano Santiago sempre insiste em afirmar que a amizade e o contato pessoal são fundamentais para se compreender uma história literária, sempre complexa e múltipla em relação aos envolvidos. Neste sentido, os encontros e as conversas que Nanete estabeleceu são imprescindíveis: depoimentos sobre Drummond, seu jeito de ser, suas esquisitices, sua visão de mundo e idiossincrasias pessoais.
Isto é fundamental para compreendermos o intenso mosaico biográfico de Carlos Drummond de Andrade: sua atuação no MEC (junto a Gustavo Capanema) e depois no IPHAN, seu namoro ideológico com o PCB, sua relação com a família e os amigos mais próximos – tudo isso revelado de forma muito natural por aqueles que o conheceram e conviveram diretamente com ele. Vejo tais relatos como preciosidades que precisam ser incorporadas à história do nosso Modernismo. E tudo isso revelado ao longo de poucos dias de uma grande viagem.
Só por estes contatos, já se justificaria este livro. Mas ele traz mais coisas.
II – A Memória da Foca
Uma das maiores armadilhas do universo literário é a escrita autobiográfica. Já fui a vários congressos, seminários, já assisti inúmeras aulas (e dei outras), já li uma quantidade absurda de textos críticos a respeito de teorias e práticas autobiográficas, como esta bela narrativa escrita por Nanete. Acredito que narrar uma vida se constitui uma ficção, já que o narrar é literário, no qual o narrador autobiográfico pode girar e se perder em torno de si mesmo. Ora, sabemos que esse tipo de gênero textual – bem como as cartas, diários, biografias e outras formas de “escritas do eu” – sempre foi visto com uma certa desconfiança por certos meios acadêmicos, especialmente os mais conservadores.
Durante muito tempo, as escritas do eu foram consideradas sub-literatura, produção textual feita sem qualquer comprometimento teórico ou artístico, algo como um “primo pobre” da alta literatura, das Belles Léttres. Isto é, a escrita na primeira pessoa do singular era vista com certa reserva, considerada não muito séria, acadêmica, sistematizada. Felizmente, a própria produção literária contemporânea tem contribuído, e muito, para reavaliarmos esta situação. São várias as ficções que problematizam o eu do sujeito e se posicionam na sempre complexa primeira pessoa.
Neste difícil embaraço estilístico, a memória é um recurso sempre perigoso, ardiloso, traiçoeiro. E por quê? Porque escolhemos o que queremos narrar e apresentar ao nosso receptor, ou seja, a escolha nunca é ingênua, a seleção é sempre arbitrária.
Assim dito, acho que a narrativa de Nanete Neves é deveras interessante, flui muito bem, carregada de lembranças, muito bem contada e organizada (não nos esqueçamos que ela é uma experiente jornalista!) em relação aos fatos lembrados, às seleções memorialísticas que foram feitas.
Começando didático e diacronicamente, falando de sua infância e mocidade no bairro paulistano da Mooca, a autora nos fornece um interessante quadro cultural da capital paulista nos anos 70 – algumas particularidades, as tribos, a imprensa alternativa, os points mais frequentados, enfim, a cidade.
Criticamente, vejo este recurso com muitos bons olhos, pois foi a partir dele que a curiosa viajante desembarcou, no Rio de Janeiro, em 1977, a fim de encontrar-se com o grande poeta da pedra no meio do caminho. E se encontrou com ele, contra todos os presságios e certezas contrárias, pois Drummond era realmente avesso à mídia e aos seus aparatos, mudando um pouco nos últimos anos de vida, que o digam as belas entrevistas dadas a alguns programas da antiga TV Manchete, mas isso já em 1986 e 1987, ano de sua viagem definitiva.
Os encontros mudam as pessoas, transformam a nossa experiência, e isso já foi percebido nos contatos prévios com os amigos do poeta, nos quais a jovem repórter foi obtendo material para se “armar” frente ao mito.
E assim como as madeleines estão para Proust, as rosquinhas estão para Nanete no apartamento de Drummond, servidas com café e suco e tendo o grande encontro como a liturgia que os envolve.
Pelas respostas dadas por Drummond, não percebemos muita novidade – mas isto nos dias de hoje – quando já existe uma imensa fortuna crítico-biográfica em relação ao poeta. Mas naqueles idos de 1977 não, o poeta ainda possuía muitas incógnitas ao seu respeito, ainda pairavam diversas mitologias em relação à sua vida e ao seu jeito estranho de comportar-se, especialmente com o seu público leitor, que o diga a sua já muito conhecida recusa em candidatar-se a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, cargo este que lhe causava arrepios só de cogitar a mais remota possibilidade.
Por isso, aquele encontro dele com a autora deste belo livro, à época uma “foca”, na linguagem do jornalismo, foi algo tão único e inédito. Por isso deve vir à luz, como agora. E não entendo, sinceramente, como não o veio há mais tempo! Histórias assim não devem ficar guardadas na memória de uma ou duas pessoas, devem se tornar públicas, alcançar o maior público possível, cruzar os quatro ventos…
III – Este livro
Considero esta obra de grande valia para os nossos estudos críticos acerca da Literatura Brasileira. Os motivos são vários, os principais esbocei-os ao longo deste prefácio. Os outros deixo-os para que os leitores os descubram, pois acho necessário que o leitor também perceba a riqueza de uma história como esta. E não apenas os leitores especializados, estudiosos do nosso processo literário, especialistas na obra de Carlos Drummond de Andrade, mas também do leitor comum, já que a narrativa de O Poeta e a Foca é de excelente leitura, num tom híbrido entre o jornalístico e o memorialístico, ou os dois juntos, acrescentado de uma emoção pessoal própria de quem se lembra de algo muito importante.
Creio que o livro de Nanete fala por si só, tem poder e importância pelo conteúdo inédito que (se)revela, pelas novidades que traz, pelas revelações que conta. Uma pena ele não ter saído há mais tempo… mas dizem que há um tempo para tudo nesta vida.
Realmente, a definição literária para o termo catábase nunca foi tão atual, já que a autora foi virada pelo avesso quando desta viagem, deste deslocamento rumo a um encontro que, desde o início, se mostrava mais como uma hipótese do que como uma certeza.
Mas o encanto de um grande encontro, como este entre o poeta e a foca, é atemporal, transcende a nossa superficial forma de sentir a vida e tratar da existência.
Leandro Garcia Rodrigues
[Pós-doutor em Literatura pela PUC-Rio]
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Nanete Neves é graduada em jornalismo, pós-graduada em técnicas literárias e depois de uma longa carreira na imprensa, há mais de 10 anos vem se dedicando unicamente à escrita, trabalhando para o mercado editorial como editora, coach de autores e ministrando oficinas literárias. É autora de Lavoura dourada (Editora Évora, 2010), Batendo ponto: uma colherada de humor na hora do cafezinho, ao lado de Nelson de Oliveira e Marcelino Freire (Editora Novo Século, 2013). Participou de diversas antologias de contos.
24 setembro, 2015 as 21:50
24 setembro, 2015 as 21:54