Uma Partida de Xadrez
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O psicólogo e pedagogo francês Alfred Binet, em fins do século XIX, por meio da psicometria, realizou um dos primeiros estudos acerca do xadrez. Investigando o comportamento de mestres enxadristas, concluiu que são elementos essenciais no processo cognitivo da mente destes jogadores a experiência, imaginação e memória. Afirmou, ainda, que o xadrez contém poder de concentração, nível de instrução, memória visual, talento estratégico, além de paciência e coragem.
A literatura parece ser um lugar apropriado para reunir tantos quantos necessários personagens sob o manto dos elementos da mente dos mestres enxadristas. Respeitadas as características intrínsecas, não é de hoje que o xadrez é referido na literatura, mas nem sempre se buscou o rigor de transformá-lo em matéria-prima de uma obra; ou, pelo menos, em parte. Em “Concentração e outros contos”, que não é um livro sobre xadrez, Ricardo Lísias harmonizou com maestria personagens frágeis, penitentes, desestruturados e desencontrados, ainda que sem identidades, em ambientes às vezes inofensivos, outras nem tanto, como quem desloca com destreza e coragem as peças em um tabuleiro.
Neste livro, que reúne seus principais contos, percebe-se claramente que a escrita de Ricardo Lísias é tão precisa quanto um shan mat. Após o enfrentamento por 64 casas, necessário reformular algumas jogadas, manter a concentração na peça adversária, respeitar as dores provocadas pela lógica e duvidar sempre do quão se é capaz de prever a vitória (ou a derrota) para o mate literário. Mesmo que os textos tenham sido escritos em épocas distintas, eles compõem, de certa forma, uma unidade, em razão da perspectiva de cada personagem.
O desconcertante conto “Dos nervos” cadencia-se por uma linguagem que sofre verdadeiras mutações, haja vista as diferentes repetições, se assim podemos dizer, além de cortes “civilizados e inteligentes”. Vê-se alguém aturdido em face da solidão, enquanto, em paralelo, joga-se uma nervosa partida de xadrez em “um dia crucial para a continuidade das reformas de Gorbatchov”. O título é capaz de, desde já, muito explicar, mas se engana quem pensa que a literatura de Ricardo Lísias é previsível.
O conto “Fisiologia da solidão” se amolda na necessidade de repetição; aliás, de uma verdadeira obsessão! Esta indiscutível característica do mestre é também do narrador – um escritor solitário –, para o qual “a técnica, portanto, é uma obsessão: é a mesma coisa repetida incontáveis vezes com algumas variações mínimas”. Isto porque à personagem resta escrever, mesmo que seja difícil se expressar exatamente como se quer, pois “a literatura ameniza a solidão”.
Já no saboroso conto “Evo Morales” – sim, o presidente da Bolívia! –, o narrador é um jogador profissional de xadrez que se encontra algumas vezes com o bochechudo Evo Morales em aeroportos, enquanto embarca e desembarca para campeonatos, e que constrói com ele uma sensação de amizade. O narrador busca algo nesta relação: “notei como me sinto bem na presença dele e fiquei um pouco triste”, exaltando uma qualidade de Evo Morales que é um pré-requisito para um bom enxadrista: a memória, tema este que é também trazido no conto “Fisiologia da memória”.
Aliás, os outros contos que fazem parte das chamadas “Fisiologias” são particularmente dotados de muita força, pois não se eximem de tratar de sentimentos caros ao homem. Em “Fisiologia da infância” e “Fisiologia da família” os narradores, por meio de lembranças familiares, confrontam-se com a expressão de uma palavra não dita, enquanto que no conto “Fisiologia do medo” a culpa se mistura ao drama do suicídio de um grande amigo, que se integra ao “Fisiologia da dor”, dizendo-nos o narrador: “atendi ao telefone e soube que a polícia havia achado o corpo do André enforcado algumas horas antes. No início, agi com uma serenidade que só pioraria as coisas”.
Para Ricardo Lísias, parece pouco importar o nome dos narradores, mas às vezes faz disto uma “obsessão”, como em “Concentração”, o conto que dá título ao livro. O narrador chama-se Damião, enquanto que todos os outros personagens são variações: Dani e Damian. Neste curioso conto, Damião, para arrefecer suas crises de solidão, barbeia-se compulsivamente, chegando ao ponto de se cortar, enquanto procura em Buenos Aires – país em que ninguém mais sabe dançar tango e jogar xadrez – por dois jogadores de xadrez e um casal de bailarinos de tango. Com uma sensação vertiginosa, o narrador passeia por uma cidade que não enterrou seus problemas políticos.
O autor já declarou ter interesse no tema da política na literatura, em especial a latina, e geopolítica. Consegue-se enxergar isto em seus textos; às vezes, de modo expresso, quando em “Fisiologia da solidão” o narrador diz que escreve por dois motivos, sendo um deles a política. É natural, portanto, acharmos que o personagem – digamos – de “Concentração e outros contos” seja o alter ego de Ricardo Lísias, principalmente com “Autoficção”, conto cujo narrador tem o nome do autor, que desiste da literatura para se dedicar às artes plásticas. Mas, a bem da verdade, trata-se de ficção – uma ficção escrita com talento e estratégia, como se houvesse um projeto por trás da exploração da linguagem.
No livro “El Hacedor”, de 1960, Jorge Luis Borges dedicou um poema à arte de reger as peças no tabuleiro, chamado “Xadrez”, através do qual riscou com magia a sentença:
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“Em seu austero canto, os jogadores
Regem as lentas peças. O tabuleiro
Os demora até o alvorecer nesse severo
Espaço em que se odeiam duas cores.
(…)
Também o jogador é prisioneiro
(A máxima é de Omar) de um tabuleiro
De negras e de brancos dias” [1].
Pois bem, o enxadrista Ricardo Lísias conduz sua obra com extrema competência literária, reorganizando palavras com a obsessão dos mestres. Através da concentração e imaginação apuradas, o prisioneiro da linguagem sabe como ninguém estabelecer a dança de suas peças, que vez em quando são obrigadas a serem engolidas por outra estrategicamente mais forte. E, para este incisivo jogador de xadrez, como quer Borges, o rito nunca acaba.
[1] BORGES, Jorge Luis. Obras Completas II. 1ª ed. São Paulo: Globo, V. 2, p. 211, 1999.
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Mendes Júnior, cearense, é contista, cronista e, nas horas vagas, advogado. Publicou O engraxate e outros suicidas (Expressão Gráfica). E-mail: mendesjus@yahoo.com.br Blog:http://literaturaecultura-mendesjunior.blogspot.com
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