Uma obra feita de fragmentos e citações
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A Kafka Edições, de Curitiba, vem publicando há algum tempo a obra do escritor e jornalista catarinense, radicado no Paraná, Manoel Carlos Karam (1947-2007). Em 2011, lançou Meia dúzia de criaturas gritando no palco, uma coletânea de peças, algumas inéditas e outras reeditadas, do autor. Como dramaturgo, Karam trabalha com o absurdo e o nonsense, bebendo de fontes variadas que vão de Eugène Ionesco a Karl Valentin. Uma característica de sua dramaturgia é a de se deter num detalhe, deixando de lado o “tema principal”, como o fez, por exemplo, Anton Tchekhov em seu humorado Os males do tabaco.
Karam não é apenas dramaturgo, também escreveu romances, ensaios, contos, etc., que sempre trazem à tona o inusitado.
No final de 2015, a Kafka Edições publicou Godot é uma árvore, um livro composto de 471 fragmentos sem gênero específico.
Numa mesma página do livro, lê-se o perfil de um “tipo” teatral (“432. Tipos teatrais: pessimista só sossega quando pisa em casca de banana.”); a descrição da personagem de uma crônica (“436. Um cronista inventou um personagem com uma tampa de vidro na cabeça. Mas confundiu-se no meio de um parágrafo e trocou vidro por espelho.”); e também o fragmento de um conto (“435. Então ele teve certeza: usam-se luvas quando se desce a escada pelo corrimão. (Serafim Barth fez faltar o começo e o meio do conto).”).
Nos brevíssimos fragmentos que compõem o livro, o leitor encontrará ainda fábulas, provérbios, adivinhações, anedotas, filosofia e uma reflexão sobre a arte contemporânea, mais especificamente. Numa alusão à obra “O grande vidro”, de Marcel Duchamp, lemos no fragmento 205: “‘O grande Vrido (sic)’, diz a inscrição sob a obra após o acidente que causou alguma nova assimetria”.
Karam faz uma série de citações a artistas, a filósofos e dialoga com obras de outros escritores, como já aponta o título do livro: Godot, a famosa personagem de Samuel Beckett, que nunca aparece na peça Esperando Godot, é, para Karam, uma árvore, talvez a árvore seca que serve de adorno ao cenário beckettiano. Karam proporia, portanto, uma nova leitura da obra de Beckett.
Os fragmentos de Karam lançam ideias, as quais, como afirma o filósofo alemão Friedrich Schlegel, “são pensamentos infinitos, autônomos, sempre móveis em si, divinos”. Com seus fragmentos, Karam compartilha com o leitor a tarefa de seguir com a reflexão.
A propósito do fragmento, caberia aqui a definição de Schlegel: “um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um porco-espinho”.
No fragmento 42, Karam se vale de metalinguagem para conceituar a sua própria obra: “Retalhos, colcha de. Os retalhos tiram a imagem de unidade da colcha, a colcha apaga dos retalhos a ideia de fração”.
Aliás, diz Schlegel, “muitas obras apreciadas pelo belo encadeamento têm menos unidade que uma diversificada porção de achados que, animados apenas pelo espírito de um espírito, apontam para uma meta única”. Prossegue o filósofo: “O impulso de unidade é, porém, tão poderoso no homem, que frequentemente, já durante a composição, o próprio criador complemente aquilo que não pode absolutamente perfazer ou unificar; e frequentemente o faz com grande riqueza de sentido, mas de modo inteiramente antinatural”.
Em Godot é uma árvore, Karam não cede ao impulso da unidade, ele parece ter consciência de que dissecar uma ideia é orná-la de remendos coloridos, como diria Schlegel. Além disso, a dissecação, por mais rápida que seja, aniquilaria o frescor da primeira impressão.
De fato, a máxima de Karam parece ser a seguinte, descrita no fragmento de número 89: “‘Ele me contou a história, eu não acreditei. Mas a história era boa, então eu acreditei’. O narrador considerou as duas frases suficientes, a história não era necessária.”
Godot é uma árvore é, por tudo isso, um livro ágil, sem história, mas cheio de provocações, de fios soltos que instigam e inquietam o leitor.
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Dirce Waltrick do Amarante é professora do Curso de Artes Cênicas da UFSC, autora, entre outros, de James Joyce e seus tradutores (Iluminuras, 2015). E-mail: dwa@matrix.com.br
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