Uma nova tradução de Ulysses
Não pensei que viveria para ver uma terceira tradução de Ulysses e pouquíssimos anos após a segunda (a de Bernardina da Silveira Pinheiro, lançada em 2005, passados 40 anos da primeira, a de Antônio Houaiss). O autor dessa façanha, que acontece no 90º. aniversário do romance de James Joyce, é um jovem curitibano (nasceu em 1973), Caetano W. Galindo, que consegue transpor para a nossa língua um livro exigente sem torná-lo quase intragável (como fez Houaiss, respeitando-se o seu tour-de-force) nem enfraquecê-lo fugindo das soluções mais difíceis (como fez Bernardina, idem). A meu ver, finalmente Ulysses e o leitor brasileiro encontram-se de fato.
Ao publicá-lo em 1922, aos 40 anos, Joyce e a Europa tinham passado por uma guerra mundial e seus efeitos desagregadores estão presentes, mesmo que anacronicamente, na narração do dia 16 de junho de 1904, o bloomsday (que virou uma data comemorativa): nãoo são poucas as alusões, no texto, denegrindo as práticas bélicas, a destruição de uma geração, e também o enfraquecimento do Império Britânico.
Tomando como modelo para seu esquema narrativo, a Odisseia de Homero (todos os dezoito episódios do livro são calcados em episódios das aventuras de Ulisses em retorno ao lar após a Guerra de Troia), Ulysses contraria e parodia o figurino épico e seus arquétipos de virilidade agressiva e rivalidades guerreiras.
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Joyce radicaliza o registro da experiência humana ao vislumbrar que somos feitos não só de ação e decisão (mesmo que no romance realista-naturalista normalmente elas sejam obstadas), mas nossa mente circunavega Poe associações, auto-lembretes pueris, lembranças involuntárias, trechos de músicas, impacto de sensações, enfim, um mosaico fragmentário e muito particular (e é por isso que ele mexe nas palavras, na sua composição; um dos aspectos mais elogiáveis da versão de Galindo é não forçar a barra, como Houaiss tanto fez ao criar palavras horrorosas, e se basear na supressão do hífen e na junção cacofônica normal dos vocábulos, por exemplos “olhão destemanho”). E é assim que ele nos convida para entrar na mente dos três protagonistas, o casal Bloom (ele em perambulações pela cidade, ela recebendo um amante), já não tão mais jovem, embora ela seja uma mulher desejável, e Stephen Dedalus, que aos 22 anos, luta contra a paralisia da vontade, e do futuro, que se estende, aliás, à nação e a língua irlandesas, dominadas pelos ingleses. Stephen tem de se haver com seu lado Hamlet, embora o mundo de Joyce, assim como é anti-épico (embora Bloom, seu Ulisses moderno não deixe de apresentar as qualidades de astúcia e prudência do herói clássico) também é anti-trágico por natureza. Ele confia muito no fluxo da vida, e não é por acaso que instituiu como recurso modernista essencial o fluxo de consciência dos personagens. Nosso dia a dia é feito pelos nossos movimentos pelas ruas, pelo espaço-tempo, mas também pelas viagens da nossa mente.
E sua proeza maior foi ter amarrado essa característica proteica a uma rigorosíssima estrutura narrativa. Sem contar a teia de alusões atordoantes (vale a pena ler a extraordinária biografia de Richard Ellmann, uma obra-prima do gênero), a paródia de vários estilos literários, a escolha de um léxico apropriado para evocar cada episódio da Odisseia, cada momento do livro traz episódios e encontros que serão completados adiante, nada é jogado fora ou acidental. Quando Molly Bloom no célebre episódio final está na sua cama e ao mesmo tempo recapitula sua vida, fantasia, ressente-se do marido, ainda que com inequívoca admiração pela sua peculiaridade, todas as peças do quebra-cabeça colocaram-se em seus devidos lugares (“toda a galáxia de eventos, tudo contribuía para constituir um camafeu miniaturizado do mundo em que vivemos”, lemos na pág. 915) e demos a volta ao dia em oitenta mundos (“algo que escapasse do soído e costumeiro”). E Caetano W. Galindo nos propiciou o equivalente brasileiro mais pertinente, até hoje, dessa viagem fascinante.
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Serviço: Ulysses (1922), de James Joyce (1882-1941). Tradução de Caetano W. Galindo. Penguin/Companhia das Letras. 1.106 páginas.
Alfredo Monte, 46 anos, é natural da Baixada Santista, corinthiano, doutor em teoria literária e literatura comparada, professor apaixonado pelo ensino fundamental e crítico literário do jornal A TRIBUNA de Santos há 19 anos. Mantém o blog literário Monte de Leituras há três anos. E-mail: armonte2001@yahoo.com.br
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