Touro Medusa
Não é de hoje que a poesia de Donny Correia se destaca por sua dicção aferrada à estranheza, ao grotesco e a uma voz visceral em alto volume, mas que ressoa em ambientes de baixíssima luminosidade. E neste Touro Medusa, seu eloquente expressionismo se mantêm, é claro, mas agora na abordagem de um mundo – o de fora e o de dentro – que desmorona.
E já de início, o título do livro coloca questões importantes para realizar a jornada em três partes (ou seriam atos?) pelos poemas. Podemos ler “Touro Medusa” como uma unidade imagética um tanto monstruosa de um touro com a cabeça repleta de cobras ou ainda entender como uma divisão em “Touro/Medusa”, formando um duplo entre um animal de chifres e uma mulher com serpentes na cabeça.
Seguindo o caminho do duplo, lembro que muitos seres mitológicos são híbridos, metade humano, metade animal. Centauros (corpo cavalo e tronco e cabeça de homem), sereias (calda de peixe, tronco e cabeça de mulher), Minotauro (cabeça de touro e corpo de homem), Esfinge (corpo de leão, tronco e cabeça de mulher), Medusa (mulher com cabelos de serpentes)… Então, me retenho na porta antes de entrar e leio em uma das epígrafes o aviso de Ruy Proença: “Por isso /Me digo /Monstro”.
Os poemas, escritos sob uma luz penumbrosa e provocadora, parecem ir, então, se metamorfoseando mais em bicho, mais em mostro, perdendo aos poucos a claridade da vida humana. Naquele que abre o livro, somos levados a descer cada vez mais abaixo da terra, “no chão debaixo do/ chão debaixo do chão”. Fica bem escuro. E o que restou do humano é compelido a lidar com a morte o tempo todo, pegá-la pelos chifres ou afagá-la ou provocá-la. Pudera, no contexto do Brasil dos anos 2020, a morte rege não apenas a pandemia de covid-19, mas muitas coisas à volta. E Donny descreve precisamente esse cenário: “como se o sangue da vítima me banhasse no olor de carne morta;/ humana e morta; / talvez, menos humana que morta”.
E o jorro de imagens densas vão cumprindo o objetivo de causar incômodo, movimentar o leitor, provocar arrepios. O inquietante enunciador dos poemas parece dizer: agora o que tem poder de mudar as coisas não tem nada a ver com câmera na mão e ideia na cabeça, mas sim com “uma Glock na mão / uma bala na cabeça”. E o poeta continua a explodir imagens como granadas nos poemas, como se fossem sonhos, como se fossem realidade, como se fossem símbolo: “a hora decrépita em que/ tudo se arrasta; /tudo definha /tomba e morre /o ano estancou no mausoléu /dos desvalidos, /na cama dos insones /no tremor do pânico”.
Sobrou até para os seres mitológicos, que são um “Cronos abjeto”, a “sereia sonâmbula” e a “ninfa zumbi” – observe também, para além do significado, as surpreendentes sonoridades encontradas. Os deuses/semideuses não vão salvar nem a si mesmos, quanto menos o ser humano: “anjo degenerado que /degola salivando / a jugular de Pandora /quando a caixa se encerra”. Não resta muita esperança quando o derruimento do mundo anda a galope.
O ar é tóxico, os dias repletos de cinza, a decomposição está em curso. E Donny faz um uso preciso dos recursos da linguagem para ampliar sensações de cheiro, visão, toque, por meio da aproximação em close de olhos, garganta, narinas – grotescos, deformados, mutilados. A miséria humana nas minúcias, seus rancores, egoísmos, friezas, traições. Podridão e lama. E por isso só há um epílogo possível: morrer, ser comido por larvas e se decompor – tornar-se crânio de touro e serpentes silenciosas debaixo da pele.
Sendo a morte em Touro Medusa tema, personagem e tempo, ela é também vida. Porque, evidentemente, para que a morte exista, a vida é obrigatória. É essa a dualidade subterrânea e velada que o poeta, talvez sem querer, acaba trazendo a lume. Morte como adubo.
Lilian Aquino, poeta.
***
Do livro TOURO MEDUSA, de Donny Correia
Editora Desconcertos (lançamento em 13 de agosto, a partir das 15h, no Patuscada)
HEMISTÍQUIO
.
de ambos os lados
há pontes perfeitas,
métricas áureas,
ao vão da queda
que graça ao meio
de tudo que urge,
de um lado e do outro
das bordas ao meio
há hiatos silentes
do primo dos choros
ao cabo da vida
há pena e apenas
o escuro uterino
A CIÊNCIA MANIPULA AS COISAS E RENUNCIA HABITÁ-LAS
.
o pintor:
um espírito,
aquele que não é uma porção do espaço
trançado de visão e movimento
o mundo visível
e de meus projetos motores:
partes totais
de um mesmo ser
o enigma consiste em:
meu corpo
/ao mesmo tempo/
vidente e
visível
PICA-PAU FURANDO O TRONCO DA NOITE
.
anjo degenerado que
degola /salivando/
a jugular de Pandora
quando a caixa se encerra
rasgo-me,
urrando o hálito do esquife
lacrado
sou medula e vértebras
soltas num mundo escaldado,
um vulcão de nove peles
tatuadas com o rosto
da virtude fácil
FOIE GRAS
.
FOIE GRAS! gritam ao ganso
e ao ganso forçam-lhe grãos ao bucho
o ganso cambaleia, gira, cisca e geme
e FOIE GRAS!, grasnam chefs
FOIE GRAS! gritam e cortam
o peito do ganso
cortam-se as tripas do cimo
ao fim
extraem a peça brilhante
de bílis
FOIE GRAS! brindam banqueiros, boleiros e rancheiros:
cães.
gordos, serelepes
vermelhos, vesgos, ébrios
bebem o morto
e morrem também.
.
Donny Correia é poeta e ensaísta, mestre e doutor em Estética e História da Arte pela USP, membro da ABCA e da Abraccine. Touro Medusa é seu quinto de livro de poesia.
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