Repleta ausência


 

Entre a saturação e a falta, nosso olhar fica capturado no hiato que este título produz. Repleta Ausência. Duas palavras que nos lançam num movimento equívoco, em que o estranhamento nos seduz pelo jogo da língua na contradição.

Este título é a via de entrada para um trajeto de poesia construído entre muitas derivas, forjado pela busca que a arte poética permite no desencontro dos desvios.

Ninil Gonçalves, um mestre de muitas artes, nos apresenta, neste livro, um exercício agudo de sensibilidade. Sua poesia vai tomando forma na plasticidade significante das palavras, tecendo trajetos para os sentidos e abrindo possibilidades para a interpretação. O cuidado que marca seu trabalho é o de um artesão que vive sua arte nos detalhes, sem deixar de olhar para o conjunto que vai sendo desenhado. Cada poema se ancora no singular e ecoa na diferença. Este contraponto vai trançando as palavras e os sentidos, pedindo ao leitor que se lance na ousadia do imprevisível, sem amarras. As relações em aberto, as associações surpreendentes, a interpretação em mergulho. Este livro merece ser lido com a irreverência que a poesia de Ninil Gonçalves pede.

Noventa e dois poemas. Alguns títulos brincam, outros incitam, muitos inquietam. No ir e vir do sumário, que imaginariamente ordena o trabalho revolucionário do poético, as escolhas vão me demandando. Entre tantos títulos, o que dá nome ao livro se repete nomeando também um dos poemas. Repleta ausência (d)enuncia o “esvaziamento da vida”. No tecer da poesia, a arte pede diálogo e a luta é instada a incendiar “o oco do peito”. Destacado em meio ao poema, um verso agudiza a denúncia: “uma repleta ausência nos sufoca”. Os sentimentos transbordam a falta que pede para respirar.

Em Pano de Chão, a força da poesia de Ninil encarna a vida. “Lambendo cada vinco de tempo esquecido ou vivido… espalhado pelo chão deslizando sobre momentos fugidios ou abraçados… Língua roçando cada fresta disposta em geometria vã”. O corpo é chamado nos versos que vão nos fazendo sentir o gosto do que escapa pelo “ralo dos dias” frente aos “novos resquícios” que insistem na superfície.

Novos tempos abre o trajeto de poesia deste livro trazendo a contundência de paradoxos que radicalizam a contradição: “Falta pouco para muito nada… Lá fora ainda está dentro de algo que esvazia tudo… O corpo almeja perder-se de vez no silêncio das ruas”. O vazio faz retorno no corpo e o silêncio ecoa o que já não está.

Difícil não fazer paragem em cada página deste livro. A poesia de Ninil Gonçalves vai arrebatando a nossa escuta na delicadeza de composições que retêm nosso olhar por laços em que brincam significantes e significados: “Nos vincos do rosto afinco de estar viva” (Monalisa da rua); “Este som equilibra o nada em silêncio” (Silêncio); “A fala percorrendo as paredes da sala… O coração saltando antecipando a fala” (Balbúrdia); “A simetria retilínea que impossibilitava desvendar esquinas… A pausa prevista… surgiu no instante em que a dança se descobria no movimento” (Passo marcado); “Tempo gritando à flor da pele” (Rugas); “As posições improvisando temas… O caminho desenvolvendo-se a cada passo” (Releitura); “desfez o laço que sufocava a voz…sorveu num único gole o ganho da perda” (Perdas e danos); “vestir o olhar do outro vestido em mim” (Pacto); “daquilo que grita no peito surdinando o alarido do corpo” (Sussurro); “esse som que ousou frequentar a mesma breve melodia da vida” (Escrita na Voz); “O laço rompeu-se derramando sobre os dias um oceano de mágoas acumuladas” (Rompiment…); “Os pombos que arrulhavam no forro que não tenho” (Casa); “despido da solidez entendo a imensidão” (Cadaveroso); “duplo bailado em corpo único… sua minha nuca nossa” (Nós).

Escolhas que me escolheram. Os versos acima recortados são apenas o vislumbre de um percurso contundente e extremamente consequente, em que Ninil Gonçalves se diz pela poesia e nos diz do mundo que o mobiliza em seu fazer poético. A escuta de Ninil não abre mão de apontar, no social, as fragilidades que reiteram os fossos intransponíveis, não abre mão de buscar relações que o acolham na acolhida do outro em suas diferenças. Para Ninil, “a poesia se mostra no invisível ato da visão… esconde-se no visível desacato de ser… mostra-se na invisibilidade ignorada do ver… opõe-se a favor do que não É…” (Ei-la!). Em seu poema Alimento, Ninil complementa: “Aprendi com todos eles [Silesius, Baudelaire, Williams, Manoel de Barros] a entender que a poesia arrasta pra dentro de mim todas as coisas do mundo num lance de dados pela flauta da vértebra”.

Ninil Gonçalvez arrastou pra dentro de mim sua escuta atenta e seu olhar sensível. Um mestre de muitas artes, um poeta da palavra e da fotografia.

Encerro esta minha retomada pelas palavras de Ninil, em seu belíssimo poema:

 

Fotografia

 

O instante submetido

à eternidade do agora.

O disparo

estagnando o tempo

dentro da composição

enquadrando o espaço

onde

o ser inaugura

seu mundo de diálogo

com o fugidio da estrutura

capturando

matéria e alma

presença e ausência

concretizadas

na infinitude do instante

que se e

                s

                   v

                      a

                         i

                           u…

 

 

 

 

 

 

Suzy Lagazzi é formada em Letras pela Unicamp, fez mestrado e doutorado em Linguística pelo IEL/Unicamp. É professora colaboradora do DL/IEL/Unicamp, onde integra o Centro de Pesquisa PoEHMaS. Trabalha na área de Análise do Discurso, tendo como foco de sua pesquisa a resistência do sujeito em sua contradição, a alteridade do político no social, e a poesia do significante em derivas. Autora dos livros O desafio de dizer não, Introdução às ciências da linguagem, Estudos do Texto e do Discurso: O discurso em contrapontos – Foucault, Maingueneau, Pêcheux, entre outros.




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