Porque tudo acontece por escrito
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O leitor de Moça em blazer xadrez se surpreenderá com a pluralidade de eventos que povoa a imaginação dos narradores e personagens inseridos nessa coletânea de contos; parece não haver entrave espaciotemporal capaz de minar-lhes os sonhos e os desejos – aliás, algumas drogas à margem da legalidade (ervas para fumo, por exemplo) insurgem potencializando a fantasia e coadjuvando nas experiências eróticas e sexuais. Adicionem-se a isso as menções a faturas estéticas e a produções científico-acadêmicas que se assomam às páginas: faixas musicais, películas e roteiros cinematográficos, textos literários, afora escritos elaborados para a obtenção de grau na universidade. A profusão de dados e de acontecimentos aponta direta e indiretamente para o sintagma impresso na capa do livro: título remissivo à peça quadriculada do vestuário, com botões graúdos presos a caseados; agasalho que, uma vez sobreposto ao corpo, encobre a silhueta e acoberta a alma feminina.
As narrativas de Mauricio Vasconcelos recebem estrutura inovadora. Esse predicado se deve tanto ao repertório e modo como se encadeiam os incidentes quanto à forma nada previsível de fabulá-los. Com efeito, a força e a originalidade desta contística residem no teor das intrigas e na construção de escopo anárquico que rompe com a linearidade na soldagem e exposição dos conflitos. Existe integração entre uma história e outra; os fios que as perfazem e atam a sua costura amplificam vozes, facultando ressonâncias e dobras extraordinárias aos episódios.
Dado curioso: o borrão que enreda ações do mundo “real” a flashes do mundo “irreal” – interseção entre o concreto e o ilusório (no que este oferece de elíptico, de fragmentário e satisfatoriamente desarmônico) – confere aos nove relatos enfeixados no volume, por mais paradoxal que pareça, a sua coerência e verossimilhança. Assim materializados, os entrechos dinamizam um fuso horário sinalizador da pressa e fugacidade do pensamento, a culminar no aceno que reclama a atenção e a companhia constante do outro.
Ao retratar essa performance fluida, rizomática e não menos intervalar, considerada a fase transitória entre os séculos 20 e 21, Moça em blazer xadrez jamais expressa juízo nostálgico em relação ao passado, tampouco apocalíptico no tocante à contemporaneidade – período em que a tecnologia opera fervorosamente com os seus dispositivos e ferramentas digitais: e-mails, blogs, sites, downloads. Situados nesse cenário, os contos ratificam a interação midiática que eclode e se acentua na esfera também dos relacionamentos afetivos, instância cada vez mais híbrida e mixada.
A capital de São Paulo, com sua sintaxe urbana, torna-se o palco de Moça em blazer xadrez. A região do centro e os bairros periféricos da cidade ilustram o ritmo tresloucado de ruas e avenidas; atestam expedientes alucinantes ocorridos em recintos fechados e cauterizados pelo virtual. De fato, estes sujeitos encerrados nos seus apartamentos e casas, em quartos e salas de hotéis, dialogam em rede, imersos e plugados numa conexão on-line cuja troca de correspondências deriva do impulso do teclado e se efetua através de prosaicas configurações. Nesse sentido, as personae de Mauricio Salles Vasconcelos estão mergulhadas em suportes de onde saltam ícones que as envolvem plenamente, circunscritas a uma teia de simulacros capaz de fazê-las parecer outras: atraídas ora pela leitura ora pela possibilidade de protagonizar histórias roteirizadas à maneira dos thrillers policiais, engrenadas numa liquidez espacial constelada de ramificações.
Em “Savoy Hotel (Rádio-Café)”, a jovem recepcionista cujos pais faleceram em acidente aéreo (professores, inicialmente, de Literatura Portuguesa – pesquisadores, a seguir, dos africanos) tem o seu iPod como um parceiro, a embalá-la em vários momentos do dia: “é que sou movida por música, máquina móvel em meus ouvidos, só assim aguento o trabalho e logo o transformo numa pista íntima”. Rê, como ela é chamada, linka as tarefas no Savoy, bem como os encontros com Hélder na quitinete da Rua Augusta, a essa vibração sonora que a libera e dá cadência às crises involuntárias de riso.
No conto “Napa”, as mensagens simultâneas partilhadas entre Maura e Romero antecipam, no luminoso da tela, a chegada da remetente à casa ampla, em área suburbana, recentemente ocupada pelo rapaz que acaba de se transferir de certo quarto minúsculo dividido com o amigo estudante nas Perdizes. À porta da residência, que servira como “negócio e núcleo familiar”, consta uma placa na qual se inscreve uma “sobra” de palavra – a mesma que confia o título à narrativa. O letreiro que a rigor funcionaria como índice, referenciando a “oficina de Restauro” (estabelecimento reservado para “reformas” e “revestimento” de móveis), irrompe como registro de desorientação, já que o espaço ali hasteado se sugere febril e caótico. A entrada principal, com o seu “jardim selvagem – comigos-ninguém-pode emaranhados com arruda, espadas-de-são-jorge mais dama-da-noite -”, antevê a cena voluptuosa e a transa delirante do casal. Maura hesita em pernoitar no casarão, incomodada com o estado de decadência e impessoalidade da moradia (complexo arquitetônico em ruína).
Demais histórias capitulam traslados sui generis. No metrô de Nova York, em direção ao Lincoln Center, uma estudante de doutorado brasileira, bolsista decerto na área de Ciências Sociais, avista casualmente a passageira Perla, policial peruana com quem estabelece contato breve e cordial. A militar, que traz consigo um livro intitulado Malessangra (tal é o nome do conto), convence a pesquisadora de acompanhá-la a determinado festejo de rua, com celebrações e desfiles de porto-riquenhos. Entusiasmos, anotações da doutoranda pautadas na observação dos aspectos culturais da nação vizinha, flerte seguido de assédio despontam, enfim, como figurações instigantes nessa narrativa.
Ainda no que concerne a festas e a leituras, tão ou quão irradiante é o que se relata em “Augusta (Apartamento)”. À expectativa da anfitriã Ravina pelo reencontro com um ou outro convidado – velhos amigos do meio artístico – e à conversa entrecruzada, na espaçosa sala de visitas, justapõe-se a voz do livreiro (Iguana ou Isaías) que supervaloriza as suas brochuras (o vendedor de livros usados – personagem caricata, comunicativa, que parece emergir de um romance de Eça de Queirós – discorre com propriedade sobre uma de suas raridades: o ensaio A comunidade que vem, do filósofo italiano Giorgio Agamben). Ao final da reunião, resta o vazio, intensificado pela solidão da proprietária do amplo imóvel localizado na “Augusta com a Antônia”.
“VHS” fecha o ciclo dos contos: sela acertadamente esse projeto de Vasconcelos. O achado é dos mais sedutores: um sebo subterrâneo, onde trabalha a moça do blazer xadrez, isto é, a atendente idealizada, fetichizada, à mira de um dos frequentadores desse calabouço. Ocorre que o visitante – o discreto e respeitoso voyeur – é antes de tudo uma representação, como o é a jovem do casaco de listras transversais (ele e ela decalcados num roteiro de vídeo coincidentemente escrito a dois, por longo período engavetado, mas agora redescoberto e remodelado). Nessa metaficção a(s) trama(s) se realiza(m) em perfeita sincronia.
Cafés, casas, avenidas, o sol vespertino com a sua luz de outono, a saída noturna e aventurosa às ruas entretecem-se, transformam-se em manufatura nesse Moça em blazer xadrez, de modo a validar a impassibilidade da obra literária – incansável no engenhoso exercício da (re)invenção. Mesmo porque, assegura um dos narradores, “tudo acontece por escrito”.
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Ricardo Iannace é Doutor em Letras pela USP. Professor na Faculdade Estadual de Tecnologia (FATEC) e docente colaborador no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (FFLCH-USP). E-mail: ricardoiannace@uol.com.br
3 abril, 2014 as 19:40