Poética do Ciborgue
PREFÁCIO DO AUTOR
Caro leitor, neste livro reuni 22 textos escritos desde há anos, alguns inéditos. A maior parte deles foi publicada em livros de minha autoria, hoje esgotados ou difíceis de encontrar, tais como In-novar (Plátano Editora, Lisboa, 1977), Poética dos meios e arte high tech (Ed. Vega, Lisboa, 1988), Algorritmos (Musa Editora, São Paulo, 1998), Livro de releituras e poiética contemporânea (Veredas & Cenários, Belo Horizonte, 2008) e Máquinas de trovar (Intensidez Edições Literárias, Évora, 2008). As respectivas indicações bibliográficas vão no fim de cada texto.
Através dos textos agora escolhidos, pensa o autor ter construído um percurso que desenha uma evolução tecnológica de aguda atualidade, desde os processos analógicos ainda há poucos anos usados e a revolução digital que hoje plenamente se vive e influi em quase todos os ramos da atividade humana, incluindo obviamente a invenção artística a que chamo de poiesis.
Estamos agora numa situação na qual este livro pode ser considerado como oportuno pois nele se trata de traçar um caminho possível para uma arte digital, justamente quando a mídia digital está despertando a atenção de todo o mundo… principalmente pelas razões erradas. Mas desde há muito, tenho a certeza de que existe um percurso positivo dessa mesma comunicação digital contrariando uma fácil tendência para destacar apenas os dificilmente evitáveis efeitos de desastre, contidos em todas as tecnologias. Por isso, nestes meus textos insisto na coerência de processos inventivos e poéticos que, por si só, abrem perspectivas que contrariam os referidos efeitos negativos para os indivíduos e as sociedades.
Este livro é, portanto, uma antologia de autor, constituída pelos textos que agora me pareceram mais significativos, formando um conjunto que creio ser coerente entre a minha prática poética e a necessária reflexão teórica e crítica.
Nos textos incluídos tratei maioritariamente das relações entre poética e tecnologia, tentando encontrar as motivações teóricas e talvez algumas das razões para as minhas ações, simultaneamente inventivas e críticas, isto é, para ensaiar, experimentar e talvez criar algumas extensões do saber literário e artístico, tomando como base as contribuições das poesias portuguesa e brasileira, da segunda metade do século XX e começo do século XXI. Contribuições essas que procuram colocar questões difíceis, propostas tanto à chamada teoria literária como à teoria da arte, principalmente no que diz respeito às utilizações das ferramentas tecnológicas e suas aptidões inventivas, quer sob o ponto de vista da estética da escrita quer da sintaxe-semântica dos signos e das formas visuais, em suas correlações recíprocas.
Possibilidades estas que, estabelecendo relações estruturais entre ciência, tecnologia e poética, vão alargando probabilisticamente os seus campos de interação e a consequente percepção inventiva.
Aristóteles no computador teria hoje uma tarefa bem mais complexa do que se vislumbra nos conceitos miméticos da sua Poética, lutando contra a falta de uma terminologia adequada principalmente quando somos chamados a trabalhar com conceitos como hiperespaço, hipertexto, interatividade, transformação, anamorfose, metamorfose, sincronicidade, labirinto e rede, mas sobretudo complexidade, num contexto estético. Conceitos estes que o código digital nos presenteia com insuspeitadas possibilidades, tornando irrecusável a investigação das suas probabilísticas, hiperbólicas e risomáticas propriedades, num desafio interminável às nossas capacidades inventivas a abdutivas.
Agora, a “Máquina de trovar” de Antônio Machado, com os seus três “teclados”, parece-nos simultaneamente uma miragem do passado, mas também um objetivo quase utópico perante a “inteligência artificial”, com cujas ferramentas somos como “aprendizes de feiticeiros” a tentar entender e a ultrapassar-nos.
A nossa máquina atual de fazer perguntas coloca-nos a seguinte perplexidade:
– Existirá uma poética do complexo, ou a complexidade é em si própria, uma nova poética que sempre esteve entre nós, mas que os computadores conseguiram revelar, tal como aconteceu com os “atratores estranhos” da geometria não euclideana fractal criada por Benoît Mandelbrot. Mas também, programas como o Photoshop
possuem possibilidades inventivas de imagens complexas sempre renováveis, muito para além dos usos pragmáticos para que foram originalmente feitos. Ou, reciprocamente, ambas estas hipóteses se interativam, porque toda a complexidade é poética, mas também toda a poética é, e sempre foi, complexa?
No entanto, nem toda a complexidade se materializa em termos de poética, como nem toda a poética se exprime em termos de complexidade. São conhecidas as tendências minimalistas no seio das poéticas modernas do século XX, tais como “o máximo de sentido no mínimo de palavras” de Ezra Pound e “tensão de palavrascoisas no espaçotempo” de Augusto de Campos, a propósito da poesia Concreta, tal como o culto no Ocidente do hai-kay japonês. Poéticas estas cuja complexidade é principalmente subliminar, resultando dessa superconcentração do sentido a que Baltasar Gracián, no século XVIII, chamava de agudesa.
Mas a poética exige níveis objetuais do fazer, enquanto a complexidade é do domínio conceitual. No entanto ambas são categorias diferenciadas, mas indissociáveis do conhecimento e das manifestações comunicativas.
Digamos então que a poética é um fazer, enquanto a complexidade é uma condição ou um estado de energia. Mas quando essa energia é a própria matéria do fazer poético, como no caso da infopoesia e das poesias digitais, então a complexidade torna-se uma poética das transformações só probabilisticamente previsíveis. Já Haroldo de Campos falava da arte no horizonte do provável, título de um dos seus livros de ensaios.
Teremos assim poemas que se fazem, desfazem e refazem de um modo diferente, transformando-se perante os nossos olhos, evidenciando a energia da complexidade que os anima e que estava neles potencialmente contida. A transformação é agora o modo essencialmente dito poético, enquanto revelador da complexidade da energia do próprio poético, não mimético, mas referencial, de que estamos tratando.
Uma vez entrados no labirinto da complexidade, jamais lograremos sair dele, porque, se as entradas são múltiplas, as saídas serão também múltiplas e, por cada saída que julguemos alcançar, encontraremos bifurcações sucessivas que levam a novas entradas hipermúltiplas… (vide Jorge Luis Borges). Assim, do complexo passaremos ao hipercomplexo, das formas às hiperformas e dos poemas aos hiperpoemas de transformações simultâneas e intermináveis.
Chegados a este ponto, na consideração das novas poéticas digitais, teremos que conceber o panorama das pesquisas numa tensão entre duas tendências, tal como se passa nas ciências físicas e cosmológicas: uma tendência minimalista (procurando a teoria única) e uma tendência integracionista, dita holística (colocando-se em plena complexidade).
O cientista Murray Gell-Mann, do Santa Fe Institute, EUA, Prêmio Nobel da Física, colocou brilhantemente esta questão na sua comunicação ao simpósio internacional “Fronteiras da Física” (Coimbra, 1998), intitulado “Pléctica: O estudo de simplicidade e da complexidade”, concluindo:
“O aparecimento de entidades progressivamente mais complexas com o passar do tempo não é de forma nenhuma incompatível com a famosa segunda lei da termodinâmica, que afirma que a desordem média, a entropia média, de um sistema fechado tem tendência para aumentar com o tempo. Mas isso é assim no caso da desordem média – não há nada que impeça a existência de mecanismos de auto-organização capazes de produzir ordem local a expensas de uma maior desordem noutro lugar. Conhecemos muitos mecanismos de auto-organização, por exemplo, a atração gravitacional, que produziu as galáxias, estrelas, planetas, rochas etc. Do mesmo modo, as temperaturas baixas originam formas belas e regulares, como os cristais ou os flocos de neve.”
No entanto neste livro não se procuram conclusões, porque é o efêmero e o inconcluso que abrem as portas virtuais da poiesis…
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E.M. de Melo e Castro
(Covilhã, Portugal 1932). Poeta e ensaísta. Diplomado em engenharia têxtil pelo Instituto Tecnológico de Bradford, Inglaterra, em 1956. Doutor em letras pela USP, em 1998 e Pós-doutor pela UFMG (2008). No Brasil, ministrou cursos de graduação e pós-graduação de literatura portuguesa, brasileira e africana, na USP, UFMG e UFRN. Na PUC/SP e na UNI/BH, ministrou cursos de pós-graduação de infopoesia e cibercultura. Praticante e teórico da poesia experimental portuguesa dos anos 60, introdutor em Portugal da poesia concreta (IDEOGRAMAS, 1961), é considerado pioneiro da videopoesia (primeiro videopoema “Roda Lume” de 1968). A sua poesia, de 1950 a 1990, encontra-se reunida no volume TRANS(A)PARÊNCIAS, Sintra, Tertúlia, 1989, livro que ganhou o Grande Prémio de Poesia Inaset – Inapa de 1990. (esgotado). O livro de ensaios VOOS DA FÉNIX CRÍTICA, Lisboa, Edições Cosmos, 1995, obteve o Prémio Jacinto do Prado Coelho, da Delegação Portuguesa da Associação Internacional dos Críticos Literários. Em 2006, realizou-se uma exposição antológica de 50 anos do seu trabalho visual-literário-tecnológico, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves no Porto, com o título O CAMINHO DO LEVE. Em 2012, colaborou no ciclo AS ESCRITAS PO.EX, na casa da Escrita em Coimbra, com a exposição dos mais recentes trabalhos de info e videopoesia, com o título DO LEVE À LUZ. Sua bibliografia activa conta com mais 25 livros de poesia e 18 livros de ensaios de crítica e teoria literária. Livros recentes publicados no Brasil: Neo-poemas-pagãos, Selo Demônio Negro/AnnaBlume, São Paulo, 2010; O paganismo em Fernando Pessoa, Ed. AnnaBlume, São Paulo, 2011; A agramaticidade das feridas do coração (poemas), Ed. Dulcineia Catadora, São Paulo, 2011;Poemas do É, Edições Castelinho, Porto Alegre, 2012.
14 abril, 2014 as 15:55
25 junho, 2016 as 18:09