Poetas em tempos indigentes


por Antonio A. R. da Silva

Inicialmente, o livro de André Cervinskis chama atenção para duas questões bastante significativas: Palavra e Poesia. É na Palavra, ou como diria Gianni Vattimo (1992), na linguagem poética que se desenham as coordenadas fundamentais de qualquer possível experiência no mundo. A linguagem não é um instrumento à nossa disposição, mas é um evento que dispõe de suprema possibilidade de ser do humano. O jogo verbal da poesia, nesse sentido, “desinstrumentaliza” as palavras. Martin Heidegger (2012), no belo e denso texto, “poeticamente o homem habita”, assinala que o ser humano fala apenas e somente à medida que co-responde à linguagem, à medida que escuta e pertence ao apelo da linguagem. Em outras palavras, a linguagem é o grito mais elevado, o apelo mais dolorido, e, por toda parte, a súplica primordial. É a linguagem que abarca, em primeira e última instância, a essência de uma coisa. A linguagem, a palavra, guarda a essência original da Poesia.

 Na Elegia Pão e vinho, o poeta Friedrich Hölderlin (1991, p. 169) faz a seguinte indagação: “E para que poetas em tempos indigentes?” A pergunta chega até nós com uma força assustadora, afinal, também estamos vivendo em tempos indigentes, obscuros, estranhos e grávidos de ansiedade. O drama do poeta parece apontar para a inutilidade da poesia em épocas dominadas, não só pelo medo, mas, também, por uma instrumentalização da linguagem: calculada, funcional e dogmática.

O tipo de conhecimento, diz Rubem Alves (1999), em voga na nossa época, é, em sua maior parte, do tipo receita. Isto é, certo conhecimento é verdadeiro quando é eficaz para produzir o efeito que desejamos. A categoria verdade, portanto, é uma forma simbólica de nos referirmos ao funcional, ao prático. A linguagem, criada para construir uma ordem, de ferramenta, transformou-se em sistema. Não, não habitamos apenas num universo físico, vivemos, acima de tudo, num universo simbólico.

A poesia, assim, é uma “barricada” para resistir à constante presença de ideias totalitárias, transvestidas em verdades.  O poeta consegue fazer um buraco no guarda sol das nossas mais rígidas proteções, oferecendo-nos luz, lançando-nos no temeroso caos. E o que seria dos seres humanos sem o caos?

O desejo pelo caos é o que faz a poesia continuar respirando. Para D. H. Lawrence (2016) o caos desvela o desejo interno da humanidade, isto é, desnuda o desejo da humanidade pelo caos e, simultaneamente, o medo do caos. Nessa acepção, os poetas abrem enorme fresta, “para além da ideia convencional e do guarda-sol coberto de imagens morais e paladinos moldados em ferro”. Todos os indivíduos vivem em um tenebroso caos e somos igualmente constituídos por um inefável caos interior ao qual denominamos de consciência, mente e civilização. O que chamamos de cosmos nada mais é do que o caos com que nos acostumamos. Entretanto, os seres humanos, ao contrário dos animais, não conseguem viver perenemente no caos. Precisam embrulhar-se em dogmas, visões e convicções, tentando, em vão, viver em um mundo estável, chamado por Lawrence, de guarda-sol. Estará o ser humano protegido por esse guarda-sol, erguido entre ele e o “caos selvagem”? Não agonizará, empalidecido, sob a proteção do seu guardasol? Então, como diz Lawrence, “vem um poeta, o inimigo das convenções, e faz um rasgão no guarda-sol; e vejam! O lampejo de caos é agora uma visão, uma janela para o sol”.

Sim, o poeta, através da palavra, dialoga com o caos e é de lá que ele arranca beleza/coisas/sabores/cores para oferecer aos mortais, especialmente em dias e tempos dominados pela escuridão. Em Para que poetas, Heidegger analisa a poética de Hölderlin e Rilke. Para o filósofo, a era da noite do mundo tem que se experimentar o abismo do mundo. Mas para tal, será necessário que haja quem consiga chegar até o abismo. Contudo, quem consegue alcançar o fundo do abismo? Não, não será com as divindades que se dará a viragem, mas com os humanos, nomeadamente, os poetas. Hölderlin (apud HEIDEGGER, 2002, p. 310), em Mnemósina, diz:

… De nem tudo
São capazes os celestes. Pois são antes
Os mortais que chegam ao abismo. Por isso que com estes
Que se dá a viragem…

Os poetas, nos estudos de Heidegger, são os mortais que, cantando com seriedade, sentem os vestígios das coisas foragidas. São eles, os poetas, que permanecem sobre esses vestígios para, assim, apontar aos seus irmãos mortais o caminho da viragem. É o canto do poeta que mergulha profundamente no caos, no abismo. Nesse canto há um descortinar dos perigos que afetam o ser humano, todavia, como cantou Hölderlin, “Onde está o perigo, cresce também a salvação”. Os poetas, portanto, estão sempre expostos aos riscos da palavra. Arriscam mais porque suas palavras-canto estão despidas das imposições presentes na cultura. Cantar, arriscou Rilke, é existir.

Ou, em verdade, cantar é um sopro de voz a fora.
Um sopro em torno de nada […]. Um vento
(RILKE, 2012, p. 174).

            Um sopro por nada, diferente do sopro habitual dos humanos, presos à intolerância que agride, à ignorância que humilha, ao totalitarismo que silencia, ao fascismo que venda os olhos. Sim, precisamos de poetas para nos livrar das verdades prontas, afinal, a verdade sempre foi usada para manipular, alienar e diminuir nossos desejos, calar nossos corpos, emudecer nossos devires, embrutecer nossos instintos. Precisamos, mais do que nunca, do poder humanizador da poesia, daquilo que corta nossa carne com graça.

Se o canto dos poetas é ele próprio um vento, então, que os ventos de Manuel Bandeira, de Ângelo Monteiro, de Terêza Tenório, de César Leal, de Fátima Quintas e de Cida Pedrosa, através do livro de André Cervinskis, desvelem viçosos mundos, novos devires, novos saberes, novas formas de existir. Longe da imposição propositada da objetivação do mundo, que esses cantos nos ofereçam tenras descobertas à nossa vida marcada, em grande medida, pela angústia. Que suas canções, como dizia Heidegger, pairando sobre a terra, sagrem. Os poetas pernambucanos são poetas em tempos indigentes. É notadamente em mundos escuros, nevoentos, que o canto do poeta brota, como luzes para iluminar o caminho dos mortais. Muito mais do que certeza, convicções, ideias fechadas, o mundo precisa da beleza da poesia. Não da beleza agradável aos sentidos, mas de uma beleza que tem também a capacidade de espantar, de agredir, de despertar outras possibilidades para a existência, tão cicatrizada em tempos carecentes.

Em Sobre deuses e poetas, Frederico Pires (2009, p. 72) diz: “os poetas são aqueles que ainda celebram Dionísio, num mundo dominado por Apolo”. Voltando à pergunta inicial, “para que poetas?” Para que poesia? Para absolutamente nada, quando pensamos na esfera da concepção utilitarista das coisas, todavia, olhando para além desse mundo puramente utilitário, em que a linguagem-disciplina, como diria Foucault (1988, p. 127),fabrica corpos submissos e exercitados, corpos dóceis”, os poetas criam novas camadas de existência sobre o mundo.    

A cada leitura de Manuel Bandeira, de Ângelo Monteiro, de Terêza Tenório, de César Leal, de Fátima Quintas, de Cida Pedrosa, inauguram-se novos saberes, pois, por detrás de cada dito presente em suas poesias, permanece o não dito, como bem observou Fátima Quintas (2015): “Escrever é descerrar a cortina de um palco fechado […]. O não dito pode representar a força do texto”.

Os cantos dos poetas pernambucanos, bem postos por Cervinskis, são resistentes, revolucionários, rompem com a regra, com o dito, com o comum, com o aceito. Em Desencanto, Manuel Bandeira (1993, p. 43-44) canta:


Meu verso é sangue. Volúpia ardente.
Tristeza esparsa… Remorso vão […].
Eu faço versos como quem morre.

Poesia escrita com sangue, versos criados do caos, do abismo mais profundo, da escuridão. Em o Ignorado, Ângelo Monteiro (2012), além de cantar que a função da arte é repetir Deus, sopra:

Estamos diante do inelutável. Esta é a experiência. Podemos
Não cantar com nenhuma esfera transcendente, mas há o
Coração da vida. Entreguemo-nos a ele.

            A arte deve ser sempre criadora. Na mitologia hebraica, a partir da palavra de Deus, nasce a ordem. Pela palavra divina, as coisas encontram o devido lugar: “Deus disse: Haja luz e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas” (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1996, p. 31). O poeta, também, ao dialogar com o caos, cria, muda, reinventa. Em Maria Sussuarana, Terêza Tenório (2002) desafia a noite e a morte com seu singular canto:


Não tenho medo da morte
Nem tenho medo da noite.

            A certeza que traz angústia a César Leal, ao reconhecer, em Carta aos rinocerontes, que nem um milésimo das coisas que observa diariamente está contido em seus poemas e, por isso, canta:

Não escrevo para los muchos
Arranco de mi corazón el capitán del
Inferno,
Establezco cláusulas indefinidamente
Tristes.  
                                                                            

            Por fim, Cida Pedrosa (2008), canta, em O oriente da cidade, de modo assustador, evocando, poeticamente, o feminino, tantas vezes sucumbido pelo machismo imperativo.

Entre pombos e putas construí poemas.
A cidade era música
Cama de loucos e as mulheres livres
Para o corpo, para corpo para as
Ruas.

                 A mulher é dona do seu corpo. A poeta mergulha nessa realidade sofrida, ignóbil, e de lá retira o material para a sua criação poética. Não desnuda coisas belas, esteticamente perfeitas, mas escancara as vísceras putrefatas de uma sociedade cruel.

                 De onde vem o canto dos poetas? Do abismo, da desordem, do caos, da desarmonia. Por isso essas palavras nunca podem calar, porquanto têm o poder de ressuscitar corpos. Sendo assim, como muito bem observou Cervinskis, revisitar o canto desses poetas é de grande proveito e, claro, o livro Palavra e poesia de Pernambuco torna-se um convite singular e instigante para aqueles que querem adentrar no mundo poético de Manuel Bandeira, de Ângelo Monteiro, de Terêza Tenório, de César Leal, de Fátima Quintas e de Cida Pedrosa. Os poetas, retomando Heidegger, são os humanos que mais cedo alcançam o abismo do indigente e da sua indigência. Sãos os que arriscam mais, estando mais expostos ao perigo.

                 Os poetas pernambucanos, desse modo, conseguem ultrapassar e se opor à lógica da razão calculadora, religando o ser humano às coisas esquecidas, dissipadas. Cantam, desse modo, nosso pertencimento ao mundo: a existência abundante, ou o absurdo da existência. A dimensão profunda das coisas, quase sempre inobservável pelos olhos instrumentais da razão. E cada canto do poeta é um grito, cujo objetivo, mesmo sem intencionar tal feito, é despertar os indivíduos para a meia-noite indigente que se aproxima inexoravelmente, despertando-os de um lânguido e profundo adormecimento.

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Antonio A. R. da Silva é professor da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP.




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