Palavra escrita como glória


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Clarice Lispector declarou em 20 de abril de 1968 ao Jornal do Brasil “(…) O contato com o outro ser através da palavra escrita é uma glória”[1]. Tal declaração vem ao encontro do belíssimo trabalho de pesquisa, tradução e transcriação de Alex Castro para a apresentação da autobiografia de Juan Francisco Manzano, poeta cubano, do século XIX que sofreu tamanhas atrocidades quando escravo e que carregou até o fim de sua vida as marcas (físicas e mentais) de sua condição. Condição essa presente em seus escritos e sua poesia.  A autobiografia de Manzano seria a glória da palavra escrita, na tentativa de nos colocar em contato com esse outro ser, ser que não tinha direito à voz, muito menos à escrita, menos ainda à poesia.

Alex Castro, 41, escritor brasileiro apropriou-se da triste e cruel história de Juan Francisco Manzano e empenhou-se em trabalho de longa pesquisa nos Estados Unidos e em Cuba. Traz à luz, nesta edição, a voz desta personagem que nos encanta e nos compadece ao mesmo tempo. Na primeira parte do livro temos a autobiografia traduzida do espanhol para o português, cuja preocupação de Castro foi facilitar ao leitor brasileiro a expressão literária de Manzano, pois, como escravo, seu acesso à leitura e escrita foi à custa de castigos e proibições sistemáticas afetando a sintaxe de seu discurso.

Na segunda parte, Alex Castro, nos apresenta um esforço do que ele chamou de “Transcriação” onde ele procurou ser mais fiel à voz de Manzano respeitando suas idiossincrasias, sua sintaxe, sua escolha de palavras, mantendo sua tônica pessoal. Para isso, contudo: “foram necessárias criatividade literária e interferência ficcional”. [2] Nesta parte do livro, Castro lança mão de inúmeras notas que, ao mesmo tempo nos exige paciência de pesquisador, nos esclarecem e facilitam a compreensão da autobiografia, pois temos que ter em mente o tempo passado – século XIX – outro país e realidade – Cuba, e um homem que escreve tendo tido acesso à escrita de forma autodidata (trazendo assim erros e enganos) devido à sua condição de escravo.

Destaca-se que Alex Castro, irreverente escritor, se apresenta ao mundo de maneira inusitada mostrando em cada livro que escreve uma biografia diferente (vide www.alexcastro.com.br), será então um trabalho de ficção a autobiografia de Juan Francisco Manzano? Acredita-se que não. Há um prefácio e um posfácio bem apresentados e assinados por profissionais de história e referências ao manuscrito original de Manzano que estaria na Biblioteca Nacional José Martí, Cuba. Contudo, na segunda parte deste livro, acredita-se, que ousou criar, apesar da preocupação que teve em se aproximar o mais perto possível de Manzano.

Há uma longa história de escravidão no continente americano. Escravos norte-americanos tiveram suas autobiografias publicadas ou referidas, como os “12 anos de escravidão”, de Salomon Northup, que ganhou uma adaptação para o cinema em 2014. Entretanto, relatos de escravos latino-americanos, inclusive brasileiros, acerca da experiência do cativeiro, são raros ou inexistentes, pela própria condição a que foram submetidos. É com surpresa e certo incômodo que se lê a experiência do poeta-escravo cubano. Na orelha do livro consta que em 1835 Manzano recebeu um convite de um grupo de literatos para redigir seu testemunho de cativeiro.

Segundo Ricardo Salles[3] que assina o prefácio, o escravo cubano Juan Francisco Manzano teve sua autobiografia publicada pela primeira vez em 1840 em inglês, com o patrocínio de um abolicionista britânico Richard Robert Madden. Alex Castro, por seu turno, publica esta autobiografia aqui no Brasil, escancarando aos brasileiros, que também possuem longa tradição escravagista incrustada em seu DNA, história similar por nós há muito conhecida, mas pouco relatada pelas suas vítimas.

Na autobiografia aqui referida, não chega a nós a produção poética de Manzano, a não ser um de seus poemas que abre o livro, “Meus trinta anos”.  A autobiografia é o seu relato do cativeiro e suas vicissitudes. Contudo, nos é apresentado a curiosa e por que não dizer corajosa maneira pela qual o poeta-escravo chegou à escrita e, posteriormente, à poesia. Ao acompanhar seus proprietários e ser obrigado a sempre ficar calado, pôde desenvolver a capacidade de observação de seus donos em atividades várias. Atento a um de seus proprietários e seu círculo literário foi em princípio decorando os versos e os repetia de memória, para depois escrevê-los às escondidas e em horários em que todos da casa-grande estavam em horário de descanso. À luz de tocos de velas, “escrevia” e “lia” suas anotações que fazia por imitação e por memória. Aprendeu a escrever de forma autodidata, primeiro copiando, passando a caneta por cima das letras e depois aperfeiçoando e superando suas limitações. Assim preenchia seus tristes dias. Eis a força das letras!

Muitas passagens são como socos no estômago que nos causam náusea e ao mesmo tempo indignação e revolta.  Outras nos enchem de compaixão e até torcemos por esta personagem que não demonstra ódio por seus proprietários, entretanto desenvolveu medo constante dos feitores e contra-feitores das fazendas açucareiras cubanas que aplicavam os castigos mais atrozes e desmedidos que desafiam nossa imaginação.

Alex Castro, portanto, cumpre a tarefa de não deixar calada a voz desta personagem representante dos milhares que sofreram os atrozes maus tratos que a escravidão perpetuou – instituição que vigeu por tantos séculos em nosso continente, deixando marcas indeléveis. É ainda mais interessante saber que um escravo pôde não só aprender a escrever, mas se enveredou pela poesia para expressar sua dor e sua esperança.

Há que se destacar os apêndices que trazem iconografia do espaço físico onde Juan Francisco Manzano passou a maior parte de sua existência, além de dicas de leitura, para aprofundamento acerca do biografado e seu tempo. O autor finaliza o livro apresentando o comovente “Réquiem para Manzano” escrito por Urbano Martinez Carmenate, historiador e pesquisador do Museo Provincial Palacio de Junco, de Matanzas, Cuba.

Leitura por entre sangue, dor e lágrimas, mas necessária.


[1] Lispector, Clarice. Clarice da cabeceira: jornalismo. Org. e apresentação de Aparecida Maria Nunes. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. P. 9.

[2] Manzano, Juan Francisco. A autobiografia do poeta-escravo. Org. e tradução de Alex Castro. São Paulo: Hedra, 2015. p. 21.

[3] Professor de História Contemporânea na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO), com foco no século XIX.

 

 

 

[………………………….         …..   .[Alex Castro by Claudia Regina]

 

A autobiografia do poeta-escravo Juan Francisco Manzano
Organização, tradução e notas Alex Castro
Editora Hedra, São Paulo 2015

 

 

 

 

 

 

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Elizabeth Ferreira Cavalcanti, formada em Ciências Sociais, FFLCH-USP. Atualmente estuda Letras na mesma universidade e atua há 6 anos em projeto de leitura em colégio particular da cidade de São Paulo. E-mail: elizferreiracavalcanti@gmail.com

 

 




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