Os mitos que embalaram os crédulos


Umberto Eco – Os mitos que embalaram os crédulos

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Desde tempos remotos o homem se encontra crendo no fantástico, e não só no fantástico religioso, surreal, mas no fantástico infantil, naquele facilmente desmascarado pela ciência ou pela simples pesquisa histórica. Contudo, a força da necessidade de aventura e de mistério leva muitos a bloquearem seu senso crítico, a ignorarem estudos científicos e históricos sobre certos temas, e, cegos, insistirem em crenças ingênuas sobre pessoas misteriosas, incríveis, sobre objetos mágicos ou lugares fantásticos como a terra do Preste João, a Atlântida e tantos outros. Enfim, são muitas as crenças e muitos os sedentos por mistérios.

O mais recente livro de Umberto Eco, História das terras e lugares lendários (2013), vai além de nomes e histórias de cidades ou países fictícios, sobre os quais se criou algum mito. Sua vasta pesquisa se apresenta como um panorama sobre lugares “inventados”, como ele mesmo diz. O intuito de Eco, ainda segundo suas palavras, são as “terras e lugares que, agora ou no passado, criaram quimeras, utopias e ilusões porque muita gente acreditou que realmente existissem ou tivessem existido em alguma parte” (p. 7), ou ainda, lugares mitológicos, “em torno dos quais surgiram lendas que afirmaram, durante séculos, sua existência real” (p. 309).

Entre esses, o autor destaca lugares imprecisos que podem ou não ter existido, e que, provavelmente, nunca saberemos, assim como lugares que existiram, mas não como se pensa, não com toda a fantasia que lhe foi somada, como também lugares criados a partir de documentos falsos, caso da famosa terra do Preste João — essa já comentada no divertido romance Baudolino (2000), do próprio Umberto Eco. Contudo, em todos eles, Eco dá notícia e traça rotas com mapas e documentos de época, contando sua história — em muitos casos, suas histórias, pois geralmente são vastos e diferentes os mitos sobre um mesmo lugar.

Assim, muitos dados curiosos e extraordinários permeiam o livro. Alguns dos mais inusitados são sobre a mitológica e ainda hoje acreditada e perseguida Atlântida — já retratada por Platão e posteriormente por Júlio Verne — que, uma vez dizimada pela fúria das águas, ou pela dos deuses, depois de se perder na luxúria, como quase sempre acontece nas ledas e nas histórias bíblicas, com seus dilúvios e cidades em chamas, leva alguns de seus habitantes a morar em outros lugares e a ensinar povos, até mesmo egípcios, a trabalhar e a progredir. Como diz Umberto Eco: “Entre as terras lendárias, Atlântida é a que mais instigou a fantasia de filósofos, cientistas e caçadores de mistérios através dos séculos” (p. 182).

Entretanto, em qualquer história que se contar, Atlântida foi um fantástico país; mais do que uma ilha imensa, foi um continente vasto, próspero, uma espécie de paraíso na terra, como um jardim do Éden de criação humana, como Shangri-lá — também retratada no livro de Eco.

Desse modo, com seu tom bem humorado e irônico, já encontrado até mesmo em seus livros de teoria literária e semiótica, Umberto Eco desfila uma enciclopédia de mitos e lendas fantásticas, alguns criados já com esse propósito, o de ser apenas um mito, uma fantasia, outros criados para satisfazer a alguma necessidade humana como educação e teoria política — caso da ilha Utopia (1516), de Thomas More — ou para ilustrar viagens, pregar domínio regional, educacional ou religioso — como no caso do jardim do Éden, o impossível palácio, naquelas proporções, do rei Salomão e a terra da rainha de Sabá, ambos os lugares míticos encontrados na Bíblia (refiro-me ao palácio de Salomão como impossível porque, segundo estudos, suas medidas são tão inverossímeis que suas portas chegam a ter dimensões maiores dos que a das paredes que deveriam suportá-las).

Além disso, o próprio planeta Terra teve várias formas mitológicas discutidas em mapas fantásticos por diversas épocas, sendo habitada por povos estranhos como os Antípodas que, supostamente, viviam na parte de baixo da terra; apresentados no livro de Eco através desses vários mapas que o ilustram.

Por outro lado, enquanto discorre sobre os mitos, Eco não dispensa a oportunidade de rebater crenças baseadas na pura irracionalidade, carente de um pouco de análise crítica por parte de seus propagadores como no caso das pirâmides do Egito, onde supostamente se veem, em alguns de seus hieróglifos milenares, naves espaciais e outros objetos de voo usados hoje, mas que não passam, na verdade, de escritas sobrepostas que produzem outras imagens; o que também fazem das pirâmides construções cercadas de lendas surreais que as aproximam de seres extraterrestres e navegadores super-humanos que as teriam construído ou ensinado a construí-las, como os Atlantis, quando já há muito tempo se sabe que, apesar do enorme esforço, as grandes pedras de sua construção podiam ser sobrepostas com o auxílio de polias puxadas por animais ou filas de homens, e que o conhecimento astronômico espantoso não era algo tão incomum naquele tempo para diversos povos do mundo antigo. Como afirma Umberto Eco,

Todas essas fantasias têm como base o fato de que pirâmides ou zigguraath encontram-se tanto no Egito e no Oriente Médio quanto em muitas culturas asiáticas e ameríndias. Isso prova muito pouco, pois estruturas piramidais podem ser inventadas automaticamente por várias culturas, uma vez que representam o modo como a areia se dispõe sob a ação dos ventos, assim com as estruturas em degraus são muitas vezes resultado da simples erosão, ou como uma árvore pode sugerir a qualquer um o desenho de uma coluna. Mas para caçadores de mistérios, a ocorrência de megálitos ou blocos de monolíticos construídos com técnicas de encaixe na América do Sul, no Egito, no Líbano, em Israel, no Japão, na América Central, na Inglaterra e na França seria a prova de que foram herdados de uma civilização mais antiga (p. 199).

Além desses, outros mitos vão sendo descortinados, página a página, tais como o Graal e suas várias características (se movimentando por vários lugares, inclusive mitológicos como Avalon, chegando a fazer parte das histórias da Távola Redonda do Rei Arthur) e a ilha Utopia, de Thomas More, parte de uma visão política e desejosa de um lugar adequado aos sonhos de quem a sonhou, afinal, “a literatura política, assim como aquela que chamamos de ficção científica, é pródiga em descrições de civilizações ideais” (p. 307), conclui Umberto Eco.

O livro traz ainda o mito da Terra Oca, ainda hoje propagado por alguns; o conde Vlad Teps (Draku), o vampiro, personagem real como homem, e que ficou famoso em seu tempo por empalar seus inimigos, o que o levou a ser conhecido como sanguinário e, posteriormente, idealizado como vampiro; e ainda os mitos e absurdos no livro O código Da Vinci (2003), de Dan Brown, que levou muita gente a perseguir os lugares contados em suas páginas e acreditar no Sião e no filho de Jesus vivendo hoje entre nós como parte de um complô universal.

E aqui vale lembrar que o tema do tal livro de Brown foi copiado das ideias de outros farsantes, Lincoln, Beigent e Leight, que inventaram documentos históricos para ganhar dinheiro engabelando o mundo — sendo até objeto de alguns programas da BBC —, mas que depois admitiram a construção de mapas falsos e de toda a história; sendo, ainda assim, copiados por Brown, sem cerimônia — levando este, ironicamente, a ser processado por dois dos escritores farsantes, o que não impediu que muitos ingênuos considerassem a ficção como realidade; confusão nada incomum entre os crédulos de todas as épocas, sempre aptos a confundir ficção com realidade, principalmente se o autor, em busca de mais sucesso, admitir em entrevista que os fatos em seu livro são reais, como fez Brown.

E tudo isso está no livro de Umberto Eco que, no fim de cada capítulo, apresenta a cópia de textos originais que dissertam sobre o tema trabalhado no capítulo em questão; além de todo o livro ser ricamente ilustrado por diversas obras das mais diferentes épocas, criadas para representar esses lugares, como pinturas, grafites e desenhos, entre eles, do renomado Gustave Doré.

Enfim, trata-se de um livro erudito, como costumam ser os de Umberto Eco, com tudo documentado, fundamentado e bem organizado. Livro imprescindível para os amantes de curiosidades históricas e literárias, esclarecendo muitos pontos ainda obscuros entre o que é ficção e o que é realidade em alguns supostos fatos históricos que animaram e ainda animam, que alimentaram e ainda alimentam discussões, aventuras e caças extravagantes a tesouros e lugares fantásticos.

 

 

 

 

 

 

 

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William Lial é poeta, ensaísta literário e mestre em Literatura Comparada. Possui três livros publicados, Sombras, Noturno e O mundo de vidro. Também colabora com jornais, revistas e sites de Literatura, além de manter um blog pessoal: http://williamlial.blogspot.com. Contatos através do email: wlial1208@gmail.com. E nas redes sociais: https://www.facebook.com/WilliamLialEscritor, https://www.facebook.com/WilliamLial e https://twitter.com/WilliamLial.

 




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