Operariado pós-industrial
………………A pedra filosofal do operariado pós-industrial
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Que o leitor acostumado com ficções urbanas, misérias, crimes e histórias de amor, que são marca da literatura contemporânea brasileira, se prepare: saiba de antemão que, diversamente, este romance se passa dentro de uma indústria química multinacional, em meio a fornos, máquinas e produtos químicos e num tom irônico de narrativa, sem cair no cacoete da idealização romântica de esquerda dos operários. Herzog faz pela literatura o que Carlão Reichenbach fazia no cinema: Carlão, inovando nos temas do cinema nacional, tirando o foco das greves e operários que urdiram Lula, mostrava a vida das mulheres operárias do ABC, numa atitude voyer que as punha lindas nas telas, trabalhando nas fábricas, se trocando de seus uniformes e passando maquiagem, respirando em carne e osso e vivendo seus dramas na periferia como se estivessem no centro do mundo, ainda que fosse na periferia do capitalismo. Já, neste romance, ainda que se fale bastante de mulheres, mostradas como tontas românticas, um tanto como objetos de uso e passatempo do narrador, um operário bipolar com veleidades de se tornar escritor, o interesse maior está nos operários, tema que a literatura brasileira contemporânea ignora.
É o seu modo de pensar, falar e agir, como se submetem à escravidão das horas de trabalho, que chama a atenção. Diferentemente do cinema, porém, aqui, conforme já observado, o tom da narrativa é irônico, possibilitando várias risadas, vindas tanto do modo esdrúxulo do narrador quanto do modo de falar e agir dos personagens que proliferam e trabalham irresponsavelmente na tal fábrica e em nada mais lembram aqueles compromissados com a revolução urdidos em décadas anteriores.
O narrador dá provas explícitas de que fez o serviço militar de leitura machadiana e de outros autores que lhe são caros, como Bukowski e Reinaldo Moraes, este citado ou pastichado em vários aspectos do seu romance Pornopopéia. Cubatão, também nas rebarbas do capitalismo, aparece aqui sem suas habituais misérias sociais, ainda que presentes no subtexto. Ela foi uma cidade que ficou conhecida por fabricar crianças sem cérebro no período pós-ditadura, devido à poluição química em nome do desenvolvimentismo a qualquer preço que apregoava um Brasil Grande, formação de bolo e poupanças para um futuro promissor que parecia estar no horizonte como o paraíso. Esse final deslumbrante da utopia militarista parecia se fundir com aquele da esquerda, embora ambos fossem por distintos e conhecidos caminhos que se chocaram e deram em nada, como era de se esperar. Daí que continuamos aqui, onde eles se encontram representados nessa fábrica do romance, com o tal horizonte colorido prometido, agora embaçado e coisificado no marketing de que o país é a sétima economia do mundo, já disputando o lugar da Inglaterra, mas sentado em cima da herança nefasta da miséria.
Incrustada, pois, neste presente industrial pós-utópico com seus altos fornos está a indústria química pesada que é a Companhia Brasileira de Alquimia, inaugurada na data sutil de 31/3/1964, assim como são sutis outros dados em sua relação com a realidade. A CBA é focada na produção de… pedra filosofal, um insumo básico exportado para a produção de… ouro, e cujos insumos básicos são mercúrio e amianto, banidos dos países desenvolvidos por serem altamente tóxicos, mas usados aqui por muito tempo, resultando em cânceres pulmonares, anencefalias, desertificação do meio ambiente, poluição da água com mercúrio e metais pesados, descarte de produtos químicos e venenos em terrenos baldios depois ocupados por favelas…
No coração da fábrica, como tantos outros homens perdidos e alheios aos processos industriais agora supostamente automatizados, está o Poeta, esse personagem-narrador descrente de tudo, cínico com sua própria condição de proletário (“que ganha sete pau”) “numa fábrica onde ninguém é companheiro de ninguém e um quer mais é fuder o outro”, que se aproveita do ócio no trabalho para bate-papos na internet, sacanear os colegas, ler livros clássicos, ouvir música brega, ou escrever esse romance que é irônico também com a própria linguagem – “litegatuga compagada”, enquanto toma um e outro “preto recém-passado no saco”, vulgo cafezinho.
Como um Faustinho medíocre que flexiona tanto saberes literários de notas de rodapé quanto ignorâncias vergonhosas (como pedir, por estar mais barato no cardápio, vinho de sobremesa em lugar de vinho mesmo), o Poeta, como um Pateta, lida com enxofre na fábrica como se estivesse no Inferno imaginário de um dos livros que lê, convivendo com gente de nomes sugestivos como Chumbinho, Cabeça, Longue Djon, Cavalo-do-Índio, Cara-de Cavalo, Boceta-Apertada, Bracinho-de-Vitrola. A primeira frase do romance, em se tratando de um proto-químico que é esse Poeta, já começa irônica: “Acordei ácido” – e se abre para a degeneração da linguagem, dos costumes e da própria ética do trabalho, derruídos por esse processo industrial coisificador tal como está organizada a sociedade que, de bom, parece produzir apenas romances.
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Ademir Demarchi nasceu em Maringá e reside em Santos há 15 anos, onde trabalha como redator. Formado em Letras/Francês, com Mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina (1991) e Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1997), foi editor da revista Babel, de poesia, crítica e tradução, com seis números publicados de 2000 a 2004. É autor de Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (Imprensa Oficial do PR, 2002); Volúpias (poemas, Florianópolis: Editora Semprelo, 1990); Espelhos incessantes (“livro de artista” com poemas do autor e gravuras de Denise Helena Corá, edição dos autores, Santos: 1993; exposto no Museu da Gravura em Curitiba no mesmo ano); Janelas para lugar nenhum(poemas, com linoleogravuras de Edgar Cliquet, edição dos autores, Santos: 1993; lançamento feito em Curitiba, no Museu da Gravura, no mesmo ano). Além desses trabalhos, o autor tem também poemas, artigos e ensaios publicados nos livrosPassagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná; 18 Poetas Catarinenses – A mais nova geração deles (ed. e org. Fábio Brüggemann, FCC Edições/Editora Semprelo, 1991);Os mortos na sala de jantar (Realejo Livros, 2007) e Passeios na Floresta (Editora Éblis, Porto Alegre, 2008). Publica também em periódicos como Literatura e Sociedade (São Paulo, USP);Medusa (Curitiba); Coyote (São Paulo), Oroboro (Curitiba), Jornal do Brasil/Idéias; Rascunho(Curitiba); Jornal da Biblioteca Pública do Paraná; Babel(Santos); Sebastião (São Paulo); Los Rollos del Mar Muerto (Buenos Aires, Argentina) e sites, entre eles, as revistas eletrônicas Germina, Agulha, El Artefacto Literario, Tanto e Critério. E-mail: revistababel@uol.com.br
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