O triste e amantíssimo Poeta
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Digno de todo louvor é esse trabalho que o poeta Eucanaã Ferraz fez para recuperar e reunir em livro uma série de poemas do Vinicius de Moraes. Sob o título de Poemas Esparsos, o volume abriga textos pescados em livros, revistas, jornais, manuscritos, gravações. Há uma arqueologia de cotejos de versões, comparando até com as diferenças entre os textos lidos em shows, buscando a última versão para apresentar ao leitor. Eucanaã já havia lançado antes, também pela Cia das Letras, a Nova Antologia Poética do Vinicius, organizada em conjunto com o poeta Antonio Cícero. Os dois revisaram os critérios da antologia organizada pelo próprio poetinha, propondo uma nova leitura da sua produção.
Estão aqui, na minha mesa da escrivaninha, ao lado do teclado e da tela do computador, as duas obras citadas acima e mais o Livro dos Sonetos e o Livro de Letras. Vinicius é sabidamente um dos melhores letristas da nossa música. Letra de música é aquele texto que é parte da música – talvez por isso tenha esse nome -, ou seja, que se completa e interage com os outros elementos musicais, melodia (criada para ser cantada), acordes, ritmo, timbres, entonação, arranjo, interpretação, pulso, ataque. Num samba-jazz em parceria com Tom Jobim, Só Danço Samba, a letra desliza junto com a melodia: “Só danço samba/só danço samba/vai, vai, vai,vai, vaiiiii/só danço samba/só danço samba/vai//Já dancei o twist até demais/mas não sei/me cansei/do calipso ao chá-chá-chá// Só danço samba…”. Ô, psit: se você leu a letra sem cantar, volte e leia cantando. Ela foi criada para a música.
Agora, cantando com Vinicius e Baden Powell: “O homem que diz “dou” não dá/Porque quem dá mesmo não diz/O homem que diz “vou” não vai/Porque quando foi já não quis/O homem que diz “sou” não é/Porque quem é mesmo é “não sou”/O homem que diz “estou” não está/Porque ninguém está quando quer/Coitado do homem que cai/No canto de Ossanha, traidor/Coitado do homem que vai/Atrás de mandinga de amor…” Aqui, aperto o pause. Parápa Parápa Papá: esse é o esquema métrico-melódico dessa primeira parte. Cada conjunto de sentido tem que caber nele. E Vinicius/Baden vão alternando camonianamente jogos de antíteses em cada partezinha. O resultado é quase zen budista, aquela luta entre o eu e o não-eu.
Ou nessa melodia doce, quase uma cantiga de ninar, composta com Toquinho, de repente uma estrofe tragicômica: “Acordo de manhã, pão sem manteiga/ e muito, muito sangue no jornal/Aí a criançada toda chega/e eu chego a achar Herodes natural…”.
Fazer embaixadas dentro da métrica, como o craque que acha um drible num espaço apertado do campo, é especialidade do Vinicius. Assim é na sua produção de sonetos: “Apavorado acordo, em treva. O luar/É como o espectro do meu sonho em mim/E sem destino, e louco, sou o mar/Patético, sonâmbulo e sem fim//Desço na noite, envolto em sono; e os braços/Como ímãs, atraio o firmamento/Enquanto os bruxos, velhos e devassos/Assoviam de mim na voz do vento.//Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe/Sem dimensão e sem razão me leva/Para o silêncio onde o Silêncio dorme//Enorme. E como o mar dentro da treva/Num constante arremesso largo e aflito/Eu me espedaço em vão contra o infinito.”.
Até aqui é o Vinicius mais conhecido, o das letras e o dos sonetos. E talvez sua imagem de poeta para a maioria das pessoas esteja nessa produção. Mas relendo os textos da Nova Antologia Poética e, sobretudo, esses reunidos no Poemas Esparsos, reencontramos e encontramos um poeta que realizou como poucos o que pregava Manuel Bandeira na Poética: “todos os ritmos, sobretudo, os inumeráveis”. Ver, por exemplo, o poema Sob o Trópico de Câncer, até então inédito em livro. É um show de ritmos, de versos longos e curtos, estrofe com diálogos, estrofe com refrão, até terminar na espacialização com a palavra câncer repetida descendo na página. Não bastasse a força da realização formal, Vinicius tem uma coragem e uma contundência no dizer, no ir fundo no que se teme, no que dói, coisa que só os grandes autores da história da literatura conseguem, sejam eles poetas ou prosadores. Um trecho: “- Minha senhora, lamento muito, mas é meu dever informá-la de que seu marido tem um câncer no fígado…/- Meu caro senhor, é triste ter de comunicar-lhe, mas sua esposa é portadora de um câncer no útero…/…/É a dura realidade, meu amigo, sua mãe…/-Seu pai é um homem forte, vai aguentar bem a operação….” .
Em outro poema, Balanço do Filho Morto, com um requinte de imagens, descrições, narrações, criação de atmosfera, fôlego de três páginas, o poeta toca com crueldade e compaixão talvez na mais dolorosa das perdas. A morte é um tema recorrente e até dominante na sua produção de poemas. Pode-se dizer que ele foi tão intenso na percepção da vida quanto na da morte. Desse impasse, quase curto-circuito, vem o amor, a mulher, para encontrar uma saída, uma leveza.
Mas talvez a leveza mesmo ele tenha encontrado na composição musical. A palavra voando, soando, dividida como pão entre os parceiros e a platéia devem ter dado a esse homem um equilíbrio novo. Seu texto, embora não deixe de ser contundente nas letras, ganha mais alegria, mais humor (nos seus poemas também há o riso, mas em bem menor escala). Num poema quase carta, quase crônica, de 1974, A Casa, encontramos um Vinicius com toda a maestria do texto longo, dos versos que se espraiam, das imagens, temperado por um coloquialismo e por um estar à vontade no mundo semelhante ao que temos em suas canções. Mas, como nas letras, ciente de que “Tristeza não tem fim/Felicidade sim”. É o relato para Gesse, sua esposa, da construção da casa em Itapuã, “uma casa feita/de canções cantadas por todo o Brasil (com abatimento para estudantes)”. Uma casa para “ficar pensando/Que atrás de cada aurora se esconde/A face ansiosa da Vida e de cada crepúsculo/ A máscara irônica da Morte, ambas à espreita/ Ambas querendo cumprir a qualquer custo/Os seus fatais desígnios. E depois desses tolos pensamentos/ E de induzir o sono em velhos filmes de televisão, ir deitar-me/ Com o sentimento da fragilidade, da precariedade/ Da inutilidade de tudo… até que uma nova manhã/ Me diga: Não! E então retomar o cotidiano…”. E, no final, depois de cinco páginas: “É tua casa, simples e concreta/ Tua, só tua, imensamente tua/ Para que nela vivas sempre nua/ Com teu céu, com teu mar, com tua lua/ E o teu triste e amantíssimo Poeta.” Como se vê, ele mesmo grafou poeta com P maiúsculo.
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Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornal Zero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica (Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com
9 fevereiro, 2012 as 12:51
9 fevereiro, 2012 as 16:10
10 fevereiro, 2012 as 15:28
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