O sol batendo de chapa


 

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Assim como Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz deixou um livro de poesia sem publicar. De ambos, foi o primeiro livro. Rosa, inclusive, recebeu prêmio da Academia de Letras por essa obra. Rachel, por sua vez, editou alguns dos poemas em jornais e revistas. Mas os dois se decidiram pelo caminho de prosadores, não assumindo a cara pública de poeta.

Em depoimento, a escritora disse “Poesia para mim é quase uma religião, é um gênero sagrado, inacessível, e tenho poucos santos dentro dele. O Bandeira é um.”. Talvez por isso tenha deixado seu livro de poesia Mandacaru guardado, apesar de todos os convites que teve para editá-lo em vida. E tal como o Magma do Guimarães Rosa, seu original veio à tona como obra póstuma.

Ela escreveu o conjunto de dez poemas aos dezessete anos.  O trabalho data de 1928, dois anos antes de lançar seu romance O Quinze. Longe de ser uma obra imatura, a autora abre o volume saudando os “Novos do Sul”, que iniciaram o “grande movimento de brasilidade”. É com uma verve afinada com a dicção dos primeiros modernistas que nasce seu Mandacaru.

São versos livres, com a respiração longa da frase quebrada no espaço e um tom narrativo. Alguns lembram uma poesia de cordel, mas sem métrica ou rima. A semelhança se dá por contar, em versos, uma história ligada aos personagens do “norte”, como Padre Cícero e Lampião, por exemplo. O Ceará e os nortistas são o tema desdobrado em vários ângulos. O primeiro poema já anuncia: “Homem do Sul, você que conhece a geada e o frio,/você que já viu primavera,/inverno, outono como na Europa,/você não sabe o que é o sol!//Você não imagina/o que é o céu sem nuvens por meses seguidos;/o que é o sol bater de chapa na terra fulva/trezentos dias encarrilhados!…”.

Com esse tom de conversa, segue o livro. A conversa é conosco, os sulistas. É para nós que a autora apresenta histórias, fatos e personagens de uma outra paisagem. O que poderia soar como manual de história, é habilmente trabalhado por Rachel. O material factual é parte de um jogo poético-narrativo que traz sempre um ponto de vista inusitado. No poema Acre: “Pobre dono escorraçado! Chorava de fazer dó!…//E o barão de Rio Branco teve pena/e deu-lhe, pra consolo, um bocado de libras esterlinas…/e ele agarrou no dinheiro/e foi brincar de cara ou coroa…”.

Ou nesse poema sobre o jangadeiro Nascimento, que decretou junto aos seus companheiros que não mais carregariam escravos. Tempos depois, veio a abolição da escravatura: “Nascimento, ao saber da boa nova,/murmurou, batendo a cinza do cachimbo/num pau umedecido da jangada: “-Você andou mais devagar do que eu, Princesa…”.

Em Meu padrinho, sobre Padre Cícero: “Meu padrinho…(…)/De tão curvado, lembra uma interrogação…/mas tem o espírito desempenado como um exclamação enérgica…”.

Como se vê, são poemas de prosadora. Há fatos, personagens, descrições. Mas há também belos achados, como esse da interrogação e da exclamação. E não se diga que a poesia não pode ser narrativa. No próprio modernismo, Cobra Norato, de Raul Bopp, é parente desse Mandacaru. Como lembra Borges, contar e cantar estavam juntos. Depois é que se separaram.

Corre por dentro do livro um outro eixo, o do feminino. Mulheres guerreiras, fortes, como D. Bárbara Pereira de Alencar, que participou da Revolução Pernambucana em 1917, ou como as índias Icamiabas. Mas também namoradeiras: “As moças de Juazeiro/não cozinham mais feijão/passam o tempo na janela,/namorando Lampião…”. Ou a que é companheira do seu homem: “Eu lhe ajudo no roçado,/poupo milho no paiol;/do ganho das minhas rendas,/eu tiro pra me vestir./Você só fica obrigado é a me querer muito bem!…”.

O olhar feminino, da autora de dezessete anos, é amplo. Vai do afetivo ao histórico, do cotidiano ao político: “E eles chegaram aqui e fizeram um estrada/e foram todos de automóvel pra os Orós./E meteram nos bolsos das camisas de listas/o dinheirão do Governo”, narrando o contrato com os americanos que vieram fazer uma obra inacabada em Orós. Mas, sobretudo, seu gesto é estético. É uma poesia para se alistar no exército dos Novos do Sul.

A abertura do poema O êxodo serviu de epígrafe para seu romance que saiu dois anos depois: “Setenta e Sete… Oitenta e Oito… O Quinze…/foram as secas da morte…”. São os anos das trágicas secas da sua região. Como Guimarães Rosa, acreditou que suas preocupações estéticas se realizariam melhor na prosa.

Lido hoje, Mandacaru (assim como Magma), é um texto que, mesmo estando abaixo das melhores realizações dos grandes poetas brasileiros da primeira metade do século XX, traz um ar bom de respirar. Seja pela aventura de tentar construir, ao lado de seus contemporâneos, uma nova linguagem poética, seja pela oscilação entre a poesia e a prosa, seja pela inteligência com que olha para as coisas e as comunica, vale a leitura. Não está abaixo de muita coisa que se publicou de lá pra cá e que fez um certo sucesso. Mas Rachel é de um tempo em que fazer um bom poema não era suficiente. Era preciso estar à altura de entrar nesse altar em que cabem poucos santos como Bandeira.

 

 

 

 

 

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Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornal Zero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica (Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com




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