O marinheiro da lua


 

“ó senhora dos sem remédios

domai as minhas brutas ânsias acrobáticas

que suspensas piruetam pânicas

nas janelas do caos

se desprendem dos trapézios”

(Waly Salomão, in Pescados Vivos)

 

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Em 2003, Waly partiu em sua “navilouca”, rebocado por algum cometa alucinado em direção a alguma galáxia desconhecida. Desbravador dos sete mil mares, Waly não morreu: ficou “encantado” (conforme o belo eufemismo de Guimarães Rosa). Não vale perguntar, assim, Onde está Waly? – brincadeira, aliás, que ele detestava, não porque detestava brincadeiras, mas porque detestava o óbvio.

Para o leitor marinheiro de primeira viagem, que está “viajando” no primeiro parágrafo, a primeira pergunta, para começar do começo, é: Quem é Waly? Na faixa 11 do cd O silêncio que precede o esporro, da banda O Rappa, Salomão, que também assinava Sailormoon (fazendo a ponte entre as mil noites de Bagdá e as mil e uma noites da lua), apresenta-se: “E agora? Quer dizer: o que é que eu sou? Meu nome é Waly Salomão, um nome árabe… Waly Dias Salomão. Nasci numa pequena cidade da caatinga baiana, do sertão baiano, filho de pai árabe e uma sertaneja baiana. Cresci sob um teto sossegado/ meu sonho era um pequenino sonho meu/ nas ciências dos cuidados fui treinado/ agora, entre o meu ser e o ser alheio/ a linha de fronteira se rompeu. Câmara de ecos…”. Na seqüência, completa: “Eu tenho o pé no chão, porque sou de virgem. Mas a cabeça eu gosto que avoe (risos)”. Um marinheiro de pés no chão e cabeça na lua – como um bom pescador de palavras deve ser…

A cabeça do leitor continua “avoando”. A resposta parece insuficiente para esclarecê-lo. Segue, então, a pergunta, nada fácil de responder, visto que é mais fácil falar do que é estático, é mais tranqüilo tratar dos objetos que se oferecem inertes, prontos para a catalogação, como borboleta em coleção. Waly nunca parou quieto em nenhum lugar: “Estou sempre em movimento, buscando novas significações, novas florestas de sinais. Eu acho que é assim que o homem tem que ser” (Lábia, 1998).  Ecoando Mário de Andrade, é como se dissesse: “eu sou 300, 350”. Difícil definir um que sempre foi tantos: Zeus sempre teve mais trabalho para acertar seus raios nos homens em constante movimento, uma vez que alvo parado é alvo fácil.  Por isso é fundamental “não parar de nadar,/ nem que se morra na praia antes de alcançar o mar (…)/ Nadar, nadar, nadar e inventar a viagem” (“Sargaços”, dedicado a Maria Bethânia, em Lábia). Há borboletas que jamais figurarão em nenhuma coleção. Nas palavras de Waly, bem a calhar: “eu não sou um fóssil, sou um míssil”.

Na era das burras especializações, em que os homens assumem papéis únicos, fixos, comportando-se como um “fóssil”, difícil fixar um “míssil”. Apesar das semelhanças fonéticas, a semântica está aí para dizer que rima não é solução: se o traço característico do “fóssil” é a estaticidade, presente também na morte, o do “míssil” é a dinamicidade, que dá vida à vida. É esse também o entendimento da crítica literária Leyla Perrone-Moisés, na orelha do último (e póstumo???) livro de poesia da borboleta hiperativa, Pescados vivos: “De fato, nenhuma etiqueta colava em Waly; ele se mexia demais”.

Por falar em crítica, segue na mesma cadência o poema “Novíssimo Proteu” (Lábia), dedicado ao crítico Antonio Medina Rodrigues, que prefaciou Algaravias – Câmara de ecos (1996): “sou a pessoa menos digna de fidúcia/ porque não sou uno, monolítico, inteiriço. / (…) Sou volátil (…), evasivo”. O mesmo Proteu que o acompanha em Gigolô de bibelôs (1983): “Sob o signo de PROTEU vencerás/ Por cima do cotidiano estéril/ de horrível fixidez/ careta demais” – não é demais lembrar que Proteu recebera de seu pai, Posêidon, o Deus do mar (para não esquecer que as metáforas “aquáticas” são recorrentes na poética salomônica), “o dom da profecia e/ a capacidade de se metamorfosear, o poder de/ variar de forma a seu bel prazer”.

O leitor respira aliviado: Waly, então, foi poeta. Sentimos informar que as coisas não são tão simples assim. Há dois equívocos na conclusão. Em primeiro lugar, o verbo “ser”, no pretérito perfeito, sugere ação pontual, terminada, concluída. Se é para falar no passado, melhor seria empregar o pretérito imperfeito: Waly era poeta. Por quê? Na bela análise de Roland Barthes (outro inclassificável – amado, aliás, por Waly e Leyla Perrone), em seus Fragmentos de um discurso amoroso, está a chave: “O imperfeito é o tempo do fascínio: tudo parece estar vivo e entretanto nada se move: presença imperfeita, morte imperfeita; nem esquecimento, nem ressurreição”. Tudo a ver com o eufemismo rosiano: Waly ficou “encantado”… Por isso, Waly sempre continuará sendo… (sempre reticências, nunca ponto final, já que este sugere fechamento, indiciando a morte, enquanto aquele indica abertura, sugerindo a vida).

Em segundo lugar, o engano se justifica porque o marinheiro não navegava apenas nas águas da poesia: o timoneiro enfrentou os mares da prosa poética, da música, atravessou as ondas da crítica, da tradução, da produção cultural, dobrou o Cabo das Tormentas da edição, das performances, etc. Seu último trabalho, por exemplo, foi como assessor de Gilberto Gil no Ministério da Cultura: foi nomeado, pelo conterrâneo e contemporâneo, Secretário do Livro e Leitura – nada mais providencial para aquele que dizia: “Preciso ler, ler, ler. Afã de cumprir o verso de Castro Alves [outro conterrâneo, mas não contemporâneo] que diz ‘livros á mancheia’. Preciso ler, ler, ler (…) Traça de livro, motosserra predadora? Então, estou sempre voraz atrás de novas camadas de leituras” (A propósito, escreveu-me em dedicatória no lançamento de Algaravias – Câmara de ecos, em 26/06/96: “Carvalho, ler genuíno é ler 3, 4 vezes. Abraços cúmplices, desvairado, Waly Salomão”). Mas antes fez muito mais…

Começando a viagem pelas águas poéticas, para entender um pouco da persona artística, Sailormoon lançou em 1972 seu primeiro livro de poesia, Me segura qu’eu vou dar um troço, escrito na cela quando foi preso por porte de maconha. Em seu depoimento Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença, publicado em Anos 70: trajetórias (com ensaios sobre a década escritos por autores de diferentes áreas da cultura), o poeta, que ironicamente era formado em Direito, registra o seguinte: “Sabe por que eu entrei no Carandiru? Por uma mera bagana, pequenininha. Eu morava na avenida São Luís [centro de São Paulo], em um apartamento de uma cantora que tinha na época chamada Gal Costa – posso assegurar que ela não era traficante –, mas eu tinha no bolso uma baganinha, e a polícia da época encarava aquilo como assunto de segurança nacional (…) está no Me segura e o primeiro texto termina assim: São Paulo, Casa de Detenção, 18 dias janeiro-fevereiro 1970”.

Depreendem-se de suas palavras mais pistas reveladoras do poeta: a postura comportamental alternativa (por exemplo, dividir moradia com amigos, bem ao gosto da contracultura), o gosto pela transgressão (por exemplo, o uso de drogas), o tom de informalidade (por exemplo, o texto escrito simulando uma conversa), a incorporação de registros populares de linguagem (por exemplo, a gíria “baganinha” para se referir à maconha). Interessante sublinhar a ancoragem espacial, isto é, a referência explícita ao lugar de produção do texto, dado também relevante para revelar o retrato do artista: ele poderia ter omitido isso, fazendo uma assepsia em sua imagem, a fim de mostrar ao leitor apenas a sua parte “boa”. Optar por mostrar-se por inteiro, não escondendo aspectos em geral considerados negativos pela opinião média, é não se filiar à noção de que o artista é um semideus, mas alguém nietzscheanamente humano, demasiado humano. Vale aqui um paralelo com o companheiro de viagens Torquato Neto, que “tinha vergonha de deixar vir à luz os textos dele escritos no sanatório do Engenho de Dentro” (o tropicalista, parceiro de Caetano e Gil, foi internado devido a problemas de depressão agravados pelo largo consumo de álcool e outras drogas)…

Waly jamais se preocupou em parecer uma espécie de “bandido letrado” (parafraseando o título da biografia do poeta Paulo Leminski, de Toninho Vaz, uma espécie de “bandido que sabia latim”), nunca quis passar a imagem de “bom moço” (seja na vida, seja na literatura): “sou mais dado a andar com os tortos do que com os direitos (…). Eu sou um outsider” (Anos 70: trajetórias). Para ele, vida e arte sempre caminharam em profunda e tenebrosa unidade (como diria o simbolista Verlaine em sua Arte Poética), uma alimentando a outra. O poeta não esconde o homem, como queria o escritor Thomas Mann: movido pela frieza germânica, pelo ideal de “pureza” artística, o autor de Morte em Veneza dizia que, para nascer o escritor, deve morrer o homem. Em outros termos, a equação da crítica tradicional, maniqueísta, opõe os termos como se fossem excludentes, e não complementares: o rigor da produção poética exclui o vigor da experiência existencial; a imprevisibilidade da vida não convive com os imperativos de estabilidade da arte; escolher viver implica escolher não escrever; optar por criar significa optar por não escrever.

Nessa visão caolha, não há espaço para a idéia de retroalimentação, de sistema de vasos comunicantes entre o escrito e o vivido. Por isso, quando o crítico “clássico” pergunta ao poeta “qual é a sua disposição poética?”, e este responde que é “passar por uma imersão nos líquidos amnióticos da vivência” (como Waly proclama em “Editorial”, no livro Lábia), aquele diz que essa disposição para a vida é “indisposição poética”. Em seu tom irônico característico, Sailormoon responde a essa pergunta num poema do livro Gigolô de bibelôs (1983), não sem razão intitulado “Minha disposição poética???” Zombando da seriedade, a pergunta é incorporada para dar nome ao poema, como se já mostrasse aí que a poesia pode brotar das situações cotidianas – uma entrevista, por exemplo, gênero considerado pela tradição como não-artístico, pode transmudar-se em matéria estética. A repetição dos pontos de interrogação, nada gratuita, também é reveladora, indiciando a surpresa do poeta, a perplexidade diante de uma pergunta inesperada, porque portadora de uma resposta óbvia, que neutraliza a indagação, tornando-a ridiculamente ridícula:
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AMAR a página enquanto

CARNE numa espécie per-

versa de FODA
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As palavras destacadas em maiúsculo são sintomáticas: AMAR, CARNE e FODA – como se a dizer que maiúscula é a vida. Melhor seria, então, nessa toada, pensar que a poesia pode ganhar visceralidade com a existência, do mesmo modo que a vida pode se estetizar com a poesia (como queria o filósofo Foucault, ao sugerir a poetização do comportamento em seus “Cuidados de si”, na História da sexualidade). Melhor seria, assim, pensar o fazer criativo conforme a Nova poética de Manuel Bandeira: “Vou lançar a teoria do poeta sórdido./ Poeta sórdido:/ Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida./ Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito/ bem engomada, e na primeira esquina/ passa um caminhão, salpica-lhe o paletó/ ou a calça de uma nódoa de lama:/ é a vida/ O poema deve ser como a nódoa no brim”.

Assim, a literatura, para Waly, brota, como para Bandeira, da matéria vida, da “nódoa no brim”, conforme se nota em “Açougueiro sem câimbra” (Lábia), dedicado ao poeta marginal Chacal: “pego a posta do vivido,/ talho, retalho, esfolo o fato nu e cru/ (…) até que tudo figure fábula”. Em “Editorial”, faz a ponte entre vida e arte, “na corda bamba da ponte pênsil”, assim: “De um vértice: a orelha tornada orelhão para captar a fala arrevesada das ruas. De outro vértice: os livros vasculhados com a obsessiva monomania de personagem de Dostoievski”. De um lado as ruas; de outro, os livros – entre as pontas, o poeta é a ponte, tentando “polinizações cruzadas entre o lido e o vivido. Entre a espontaneidade coloquial e o estranhamento pensado”.

Quanto aos aspectos propriamente estéticos desse primeiro livro, segundo Heloísa Buarque de Holanda, em sua tese de doutorado Impressões de viagem: CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/70 (importante estudo da produção artística do período, referência obrigatória para quem se interessa pelas discussões estéticas dos anos de chumbo), Me segura é  “um livro de montagem, de flashes, uma tentativa de abrir frestas para o não-literário, para o jornal policial, a escuta de orelha, a transcrição de textos oficiais, a cópia e o plágio. Um olho sintético que junta elementos díspares. (…) Note-se o recurso ao chavão, à frase feita, ao palavrão, às referências banais, às citações cultas, num vale-tudo onde, entretanto, os elementos em movimento redimensionam-se e criticam-se mutuamente”.

A transgressão, assim, não é só comportamental, mas também estética: novos comportamentos são condição necessária para forjar novos homens, mas não suficiente para criar novos poetas (como diria o poeta russo Maiakóvski, sem forma revolucionária, não há conteúdo revolucionário) – em outros termos, a transgressão pela transgressão interessa mais à Antropologia e à Sociologia do que à Literatura. Parafraseando a musa feminista Leila Diniz (curiosamente, morta no mesmo ano de 1972), na famosa entrevista ao Pasquim, o vale tudo aqui não significa que vale qualquer coisa: “dou pra todo mundo, mas não dou pra qualquer um”…

Vejamos então alguns trechos de Me segura, característicos da estética pós-tropicalista presente na dicção salomônica:

espero aprender inglês vendo tv em cores, sou um pinta de direita com vontade de poder um baiano faminto baiano é como papel higiênico: tão sempre na merda. eficácia da linguagem na linha Pound Tsé Tung. sou um reaça tento puxar tudo para trás: li o retrato do artista quando jovem na tradução brasileira. (…) noutra noite, o pavor de me coçar o tempo inteiro estendido no colchão até meu corpo se tornar uma chaga viva aberta sangrando. (…) otário é quem acumula dor sem reinvestir, sem capitalizar, sem aplicar e tirar lucros.

A referência à tv, a preocupação com os meios de comunicação de massa (menosprezados pelos círculos da alta cultura), já estava presente na Tropicália de Caetano: “ela nem sabe, até pensei/ em cantar na televisão”. Lado a lado com o dado banal, a citação culta da expressão “vontade de poder”, do filósofo Nietzsche. Depois, uma comparação com o sabor da sabedoria popular: “baiano é como papel higiênico”. Arrematada com um palavrão: “merda”. Nessa colagem de elementos díspares, a presença erudita do poeta Ezra Pound (autor de cabeceira dos poetas concretistas) e do líder comunista chinês Mao Tsé-Tung (metido a poeta revolucionário), seguida da gíria “reaça”, por sua vez seguida da menção ao escritor irlandês James Joyce (nome fundamental da prosa de vanguarda). Tudo a ver com o “tento puxar tudo para trás”, que faz lembrar a idéia do poeta e crítico Antônio Risério de que, aqui, “a invenção não desprezou e nem hostilizou a tradição”: trata-se de um poeta letrado, que inova a partir do conhecimento dos cânones, que dialoga com o pai para fazer do nome deste o seu próprio nome (assim é que, freudianamente, nasce o homem – descolando-se da foz, para encontrar sua própria voz).

Somam-se a tudo isso as marcas confessionais, o tom subjetivo, a memória de experiências existenciais, para não esquecer que o corpo textual vem de um corpo carnal: em outros termos, atrás da pena há um homem cumprindo sua pena (como diz o multimídia tropicalista Rogério Duarte, em seu Tropicaos, parafraseando o “tudo vale a pena se a alma não é pequena” de Fernando Pessoa, “é a pena que vale a alma, não a alma que vale a pena”). Atrás do papel, há um homem atrás das grades: um homem que escreve “estendido no colchão” com “uma chaga viva sangrando” (isso remete ao Jean Genet de Nossa Senhora das Flores, na bela análise de Sartre, que poderia ser sobre Waly: “Debaixo das cobertas infestadas de piolho, a figura inclinada expele, como uma estrela-do-mar, um mundo visceral e glandular”).

Mesmo que se considerasse Waly só como poeta (só que, por si só, já seria demais), ainda assim seria difícil situá-lo na linha do tempo, fixá-lo numa escola, catalogá-lo numa estética, associá-lo a uma proposta, prendê-lo a um movimento. Normalmente enquadrado como “poeta marginal”, rejeita o diagnóstico, como neste depoimento-antídoto em Anos 70: trajetórias: “Sinto-me muito preso, muito mal, DESASSOSSEGADO, em uma situação de desamparo, na categoria ‘anos 70’ ou ‘poesia marginal’. Nunca me senti bem. (…) Acho que o artista tem até quase como uma imposição (…) uma pulsão para a ‘acronologia’, para não se acomodar na gaveta ‘anos 60’ ou ‘anos 70’ ou ‘anos 80’ ou ‘anos 90’, nesse baú de ossos da cronologia, do tempo assim medido”.

Se o irritava ser classificado, qualquer que fosse a catalogação, filiá-lo à poética marginal dos anos 70 parecia irritá-lo ainda mais (já que ele era, como Rogério Duarte dizia de si, “um “amálgama de disparidades”). Segundo seu depoimento em Anos 70: trajetórias: “Existia muita ignorância crassa e principalmente o culto da ignorância nas pessoas com veleidades poéticas (…) e fomentei em mim uma ojeriza a um culto da ignorância que grassava muito entre os poetastros. (…) A maioria daqueles que produziam poesia naquele então produzia num bonde grupal – num rebanho, vamos dizer melhor –, saltou, abdicou porque não tinha realmente o acicate da poesia”.

Além de seus livros de poesia (Me segura qu’eu vou dar um troço, 1972, Gigolô de bibelôs, 1983, Armarinho de miudezas, 1993, Algaravias – Câmara de ecos, 1996, Lábia, 1998, Tarifa de embarque 2000, O mel do melhor, 2001, e Pescados Vivos, 2004), editou a publicação alternativa Navilouca, com Torquato Neto, outro nome sempre aberto às experimentações estéticas e comportamentais. Novamente, recorremos às esclarecedoras palavras de Heloísa Buarque de Holanda, para enfatizar a estética da mistura, a ética da fusão, a visão caleidoscópica, fundindo diferentes linguagens e propostas:

Navilouca, a mais importante publicação de conjunto do pós-tropicalismo, (…) reúne textos literários de Torquato e Waly, de Rogério Duarte, Duda Machado, Jorge Salomão, Hélio Oiticica, Luciano Figueiredo, Ivan Cardoso, Caetano Veloso e outros, entre poetas, artistas plásticos, músicos e cineastas, reforçando o caráter de multimeios dessa tendência. É importante registrar também que ao lado dos poetas e artistas ‘típicos’ do pós-tropicalismo estão presentes em Navilouca os concretistas Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, que embarcam na nave em nome do saber moderno, e de artistas como Lygia Clark, por exemplo, que aparentemente pouco se identificariam com os temas do novo grupo, mas que, como diz Waly, estavam ‘transando a mesma loucura’, ou seja, recusando as formas acadêmicas e institucionais da racionalidade”. Assim, a publicação “incentivava um tipo de trabalho coletivo e múltiplo, empenhado fundamentalmente na experimentação radical de linguagens inovadoras como ‘estratégia se vida’, expressa em Me segura qu’eu vou dar um troço”.

O “marujeiro da lua” também organizou mostras do artista plástico Hélio Oiticica (cuja obra Tropicália deu nome ao movimento e à canção de Caetano), editou seu livro póstumo Aspiro ao grande labirinto (com os artistas Lygia Pape e Luciano Figueiredo) e biografou-o em Qual é o parangolé? (1996). Também organizou e editou a “caetanave textual” de Caetano Veloso, Alegria, alegria. Além disso, compôs letras gravadas por Luis Melodia (Negra melodia, 1º reggae brasileiro), Maria Bethânia, Adriana Calcanhoto, Zeca Baleiro, Jards Macalé… Com este, produziu o antológico show – e disco – Gal-Fatal, de Gal Costa (em que ela interpreta a primeira canção de Waly, Vapor barato, gravada também pelo Rappa). Etc, etc, etc – “etc”, aliás, tem tudo a ver com Waly, de quem sempre haverá mais algo a dizer, sem que jamais se esgote o dizer: obra aberta, sua produção é marcada pelo “inacabamento de princípio” e pela conseqüente “abertura dialógica” (como diria o filósofo da linguagem Bakhtin).

Por falar em Jards Macalé, este lançou em 2005 um cd-homenagem ao amigo, Real Grandeza, reunindo as parcerias dos dois, interpretadas por artistas do naipe de Luis Melodia, Bethânia, Calcanhoto, Frejat… A primeira faixa, interpretada pelo próprio Macalé, ao som do magistral piano de Cristóvão Bastos, traz também o próprio Waly recitando sua letra-poema Olho de lince, espécie de auto-retrato que poderia tranqüilamente ser o epitáfio do poeta, se ele tivesse de fato “morrido”:

 

Quem fala que sou esquisito hermético
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É porque não dou sopa estou sempre elétrico

Nada que se aproxima nada me é estranho

Fulano sicrano beltrano

Seja pedra seja planta seja bicho seja humano

Quando quero saber o que ocorre à minha volta

Ligo a tomada abro a janela escancaro a porta

Experimento tudo nunca me iludo

Quero crer no que vem por aí beco escuro

Me iludo passado presente futuro

Reviro na palma da mão o dado

Presente futuro passado

Tudo sentir de todas as maneiras

É a chave de ouro do meu jogo

É fósforo que acende o fogo

De minha mais alta razão

Na seqüência de diferentes naipes

Quem fala de mim tem paixão

 

Trata-se de fato de um texto emblemático, significativo, operando como uma espécie de carta de apresentação, de artigo de fundo, de perfil, de exposição de motivos, de pé-biográfico – tanto pelo modo de dizer quanto pelo dito, o enunciador mostra a sua cara, revela seu éthos; o que diz, e como diz, dizem quem é. A sintaxe cortada, a descontinuidade, o tom de oralidade, o ritmo da fala, a tematização da mistura, da totalidade, da abertura à novidade, da procura do desconhecido, da busca do maravilhamento, do desejo da surpresa, do encontro da “razão” com a “paixão”, do amálgama do “saber” com o “sentir”, da convivência do “hermético” com o “elétrico”, da pororoca entre o animal, o vegetal e o mineral, fazem de Waly Waly, duplo de si, seja aqui,  seja ali – sempre a esmo, sempre um outro, mas sempre o mesmo (como se repetisse, num repente, a Carta do Vidente de Rimbaud: “eu sou um outro”). Não à toa, o poema é a resposta que dá à pergunta feita por Heloísa Buarque de Holanda: “Uma receita de arte poética?”. Poesia experimental, vida experimental: receita de arte e de existência…

O marinheiro, como se nota, não navega em águas cristalinas, transparentes. Ou melhor, não só: como escreve em Lábia, recorrendo novamente às suas metáforas “aquáticas”, “Pescar em águas límpidas. / Pescar em águas turvas”.  Trazendo à tona dessas águas turvas novamente Barthes, cremos que Waly “interessa, fascina, distrai, surpreende, e percebe-se que todo o prazer vem de um acúmulo de contrários, como acontece em toda festa carnavalesca. Essas contradições são heterologias, atritos de linguagens diversas opostas” – como as águas do rio se misturando às do mar, nas ondas de uma pororoca poética. Fluvial e marítimo, celebrando a mistura, proclamando a diversidade, o poeta – multimídia –  é 300, 350…

Falando em Barthes para falar do Salomão de muitas mãos, rei de muitas minas, de muitas artes e contra-mãos, filho de árabe com sertaneja, barroco de mil disfarces e ofícios, de muitas faces e vícios, lembramos que o escritor Robbe-Grillet fala do francês o que se poderia falar da hidra baiana de Jequié, que se dizia “escorregadio que nem baba de quiabo”, escapando “que nem dorso de golfinho/ que deixa a mão humana abanando/ sem agarrar nada” (“Novíssimo Proteu”, in Lábia): “era um pensador escorregadio (…). As escorregadelas desta enguia (…) não são fruto do acaso e nem provocados por alguma fraqueza de julgamento ou caráter. A palavra que muda, bifurca, volta-se, é, ao contrário, a sua lição”. A mesma lição que encontramos em dois dos Provérbios do Inferno do poeta William Blake: “O Aprimoramento faz estradas retas, mas os caminhos tortos, sem Aprimoramento, são as vias do Gênio”; “A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria”.

É a mesma lição que Waly aprendeu com Gil (o Vicente, do teatro humanista), citado no texto A praia da Tropicália: “Que quando cuido que acerto/ vou mais fora do caminho”. O mesmo que diz, em outros termos, na entrevista concedida para Heloisa Buarque de Holanda, no livro Anos 70: ainda sob a tempestade (agora, o pluvial se funde ao fluvial para encontrar o marítimo): “O meu é um curso enviés torto oblíquo de través. O meu é um fluxo MEÂNDRICO. Eu subo e desço mas não desagüei de todo ainda”. Curiosamente, o mesmo que me escreveu (como se se olhasse num espelho d’água) no autógrafo de Armarinho de miudezas, no lançamento do livro, em 7/06/93: “Ao sinuoso e meândrico Carvalho, pela razão ardente e orgasmática! Com um beijo. Waly Salomão”. Nada de comedimento, nada de linhas retas, nada da fria razão germânica. Nada de águas paradas… Nessa ciranda de metáforas aquáticas, Blake, aliás, dizia que a água parada é sujeita à podridão – cheiro de morte, naufrágio…

A propósito, Antonio Risério (que também trabalhou com Gil – o Gilberto – e com Waly no Ministério da Cultura) também recorre a um dos provérbios infernais de Blake para falar do “baianárabe” na orelha do Armarinho de miudezas: “Não há lugar aqui para o temor, a prudência (‘A Prudência é uma donzela rica e feia, cortejada pela Incapacidade’)”. Não é à toa que define o homem de sangue “indomárabe” como “uma verdadeira montanha-russa de grossura e de finesse, indo das baixarias de botequim à suprema limpeza do construtivismo de Maliévitch [artista plástico russo da época da Revolução Bolchevique]. Sua figura é a hipérbole”.  Afinal, o fluxo de Waly é meândrico…

Com outras palavras, é o mesmo que entende Paulo Andrade, em Torquato Neto: uma poética de estilhaços: “Waly Salomão mescla na sua escrita o intenso subjetivismo, bem como a rebeldia inconformista e irracionalista, com a estética construtiva do concretismo”. Nessa mesma linha vai José Miguel Wisnik, na orelha de Lábia: “há neste livro a procura declarada de ‘um ponto de liga alquímica’, traço ‘de união entre o lido e o vivido’, ‘entre a espontaneidade coloquial e o estranhamento pensado’, ‘rede perambulante entre o jogo e a confissão’”.

Isso quer dizer que, entre o rigor e o vigor, a construção e a descontração, os “caprichos e relaxos”, a programação da escrita e o espontaneísmo da fala, a chapeuzinho-chapeleiro maluco trafegava pelas florestas bifurcadas, entre a tradição e a ruptura, o clássico e o moderno, tomando a bênção da mãe e do lobo mau. Marinheiro das pororocas, navegava no encontro das águas do velho e do novo, do conhecido e do inusitado, da manutenção e da renovação, do erudito e do popular, da razão e da emoção. “Dança do intelecto e dilaceração dionisíaca”. Casando o céu com o inferno, atando as mãos do bem e do mal num romance astral (como se fizesse Blake copular com Raul Seixas numa festa carnavalesca), acumulando contrários, Waly, como bem exemplifica Risério, “é o leitor de Rimbaud e Nietzsche circulando pelo morro do Estácio, da Mangueira, ou em meio aos tambores sagrados do candomblé (“atabaque”, de resto, é palavra de origem árabe)”. Sua figura é o paradoxo. Afinal, o fluxo de Waly é meândrico…

Não à toa, em Pescados vivos, vai de Propércio (celebrado em “Louvor a Propertius”) ao jornal (“Saques”, criado a partir de uma foto de jornal reproduzida no livro, lembra o Bandeira de “Poema tirado de uma notícia de jornal”) e à internet (em “Interfaces”, fala de hipertextos, diagramadores, portais…), passando por Drummond (louvado em “Ler Drummond”) e pelo boletim de ocorrência (“B.O.”, também à Bandeira), misturando poesia (quer à maneira concretista, como em “Modulações”, quer à maneira dos epigramas, como em “Tiro-de-Guerra”, quer à maneira das orações, como em “Feitio de Oração”), prosa poética (“Vaziez e inaudito”, uma espécie de diálogo com Hélio Oiticica sobre arte), tradução (um poema do chileno Vicente Huidobro e outro do norte-americano Walt Whitman). Há espaço até para citações, como esta de Octávio Paz: “Las redes de pescar palabras están hechas de palabras”…

Ylaw – sempre em movimento de um pólo ao outro, sempre transitando entre os vértices, sempre perambulando entre os contrários, para ser “um traço de união”, “uma liga alquímica”: “entre: nas brechas em que a lacuna vira cesura, cadência e, quem sabe, ligação”. Waly: ontem, aqui: ali, sempre – “alguém fantasiado de javali feroz ataca uma pessoa diante do mar. Como numa dança de bumba”. Ou rumba… Ou…

Para saudar o marinheiro da lua, para homenagear o pescador de palavras, devolvemos o Antonio Machado que abre Pescados vivos: “El poeta es un pescador, no de peces, sino de pescados vivos; entendámonos: de peces que puedan vivir despues de pescados”. Waly, pescado vivo, não morreu: pertence ao cardume dos peixes encantados…

 

 

 

 

 

 

 

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Paulo César de Carvalho é bacharel em Direito e mestre em Lingüística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares, do Marcato, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Foi colaborador da revista Discutindo Língua Portuguesa. Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Arte & Informação, Livro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”.

 




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