O habitante irreal e o olhar do monstro



 

 

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Existem mil maneiras de se escrever uma história. Qual delas seria a melhor? O escritor, enquanto redige, vai tateando, escrevendo, reescrevendo, suando, limando, até encontrar um meio de deixar o texto mais próximo do próprio texto. Não há certezas, o único parâmetro é o próprio autor, que um dia intuiu a aproximação de uma história e tentou objetivá-la, tentou extrair alguma ordem do caos, onde as palavras aguardam mudas em estado de dicionário. Lá pelo meio da tarefa, o artista duvida de suas forças, sabe que tem de escrever, acha, entretanto, que não será capaz de cumprir a missão, da qual não sabe quem ou o que o incumbiu, mas tem de continuar gaguejando, procurando, avançando e retrocedendo, sob pena de explodir se não pôr pra fora a voz que o habita. Li recentemente o Habitante irreal, de Paulo Scott, um romance que vai além das questões de forma e conteúdo. Não que o que se diz, ou o como se diz seja deixado de lado no livro, pelo contrário, o negócio é que, neste romance, forma é conteúdo e vice-versa. Estamos sentados sobre quatro mil anos de cultura ocidental. Tudo já foi dito de todas as maneiras. Para buscar alguma originalidade, escritores ingênuos desfilam firulas em meio a palavras vazias, sem sangue, sem pulsação. Heidegger, n’A carta sobre o humanismo escreveu que os filósofos (e por que não os escritores?) dizem o mesmo, mas não dizem o igual. É dizer que desde que se toque o enigma, ou que se seja por ele tocado, o texto terá cumprido sua verdade, terá encontrado o espaço literário, de que fala Blanchot.

Habitante irreal é, sem dúvida, um romance de invenção formal que toca o enigma. Começa logo com uma nota de rodapé, como se o texto estivesse ancorado no vazio, como se do branco da tela do computador, começasse a surgir um subtexto que já é o próprio texto. Além disso, há pelo menos quatro narradores, ou quatro formas de narrar distintas, das quais comentarei aqui duas. Na primeira parte, um narrador imparcial, observador, acompanha o protagonista, também chamado Paulo, em diversas situações, todas ocorridas num espaço e tempo bem definidos: o Rio Grande do Sul do final dos anos oitenta. Paulo é o primeiro habitante irreal que encontramos, outros virão.  Feito o Joseph K., d’O Processo, ele vai a festas, estagia num escritório de direito, dirige, conversa, mas parece estar sempre fora do mundo, como se fosse um não-nascido, um espectador, como se lhe faltasse o piparote inicial que lhe jogasse no mundo e na existência comum com as outras pessoas, embora esteja sempre por aí, como qualquer jovem de qualquer época, Paulo parece habitar um outro mundo, um outro espaço. Sua angústia, porque ele é um angustiado, também não parece uma angústia do mundo, mas uma angústia de poder entrar no mundo. Em Kafka, esta possível porta de entrada é sempre o feminino, a mulher. No romance de Paulo Scott, a mulher também é a chave de entrada e o caminho para alguma realidade. É outra habitante irreal, Maína, uma indiazinha de catorze anos, quem introduz Paulo no mundo e em alguma forma de ação, de luta real. Mas, do mesmo modo que os protagonistas do escritor húngaro, Paulo é atrapalhado demais e acaba metendo os pés pelas mãos.  Outro ponto em comum com Kafka é que, assim como ocorre com Gregor Samsa, dA metamorfose, em determinado ponto da narrativa, Maína, cuja fragilidade nunca foi fraqueza, também tem uma maçã arremessada às costas.

Nem tudo, porém, é semelhança com Kafka no Habitante irreal, porque em Kafka, há sempre um tom alegórico, ao passo que aqui temos um romance, de certa maneira, realista e político, os problemas abordados são os problemas do nosso país, como a questão do índio, por exemplo. Particularmente, não gosto muito deste tipo de história, fincada no material, no aqui-agora, mas Paulo Scott acerta porque não tenta fazer nenhuma tese sociológica, conta história de gente e só. Ralph Waldo Emerson, em seu ensaio História, crava que não há História, só Biografia. A história é construída pelas pessoas, pelas biografias, sejam elas grandes ou pequenas.

Na segunda parte do livro, ninguém lê direito o súbito, a sensação de distanciamento em relação ao narrador aumenta ainda mais. O livro anda devagar, como para refletir o desencaixe do protagonista.  A partir da terceira parte, entretanto, a primavera do habitante irreal, o bicho pega. Há um salto temporal para 1993, depois outro salto para os dias de hoje. Liga-se um turbo, outro narrador muito mais agitado entra em cena. Acontece um suicídio, novos personagens são introduzidos, alguns desaparecem, outros morrem, surge um caso entre madrasta e enteado, mas, o mais importante em meio a tudo isso, é que Donato, o filho de Maína e Paulo, passa a ser o centro da história, e divide-se em Sujeito e Espectro, e perde-se, e veste uma máscara, e reencontra-se por meio de um encontro surpreendente com o outro, porque o outro pode ser o inferno, mas também pode ser o roseiral. Enfim, Donato cresce, tanto na tessitura da narrativa, quanto como o maior dos habitantes irreais.

Apesar de sombrio e realista, Habitante irreal aponta a possibilidade de um jardim, de uma vida que não se nega a enxergar os espinhos e as mazelas, onde, entretanto, o encontro e o perdão podem ser o toque da esperança. Um livro de gente grande, de uma literatura que encontra sua melhor expressão. E a dor no final fará o resto, porque a escrita de Paulo Scott, para além das questões de forma e conteúdo, tem a pulsação de uma dor que seu olhar de monstro não nega sentir e isto é o mais importante em qualquer texto.

 

 

 

 

 

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Daniel Lopes, paulistano, publicou É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança e Pianista boxeador. Está lendo, neste momento, A energia espiritual, de Henri Bergson. E-mail: danielopes26@yahoo.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. neuza pinheiro, Não há mais enigmas. As metamorfoses, indiferentes, nos devoram. Somos parte desse jogo casual, o perecer inevitável. Matéria.Um fardo: que história contar? Em meio a um zilhão de microorganismos – alguns estão driblando a ciência, um deles pode aniquilar de vez o nosso vazio, a nossa arrogância e, de quebra, as nossas dores – cá estamos, prostrados, desejando ser o que nunca fomos. Kafkas são raros. Machado de Assis e Monteiro Lobato – com todo respeito – continuam encabeçando as listas de leitura.
    1 abril, 2012 as 17:06

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