A garrincha da música
Quando eu tinha por volta de 10 ou 11 anos passava boa parte do meu dia ouvindo a Rádio Borborema, que na época era a rádio mais importante de Campina Grande, e onde meu pai tinha trabalhado por uns tempos como redator.
Os programas geralmente tinham uma hora de duração, e durante aquela hora o locutor/disc-jockey (eu ainda não conhecia este termo) escolhia as músicas, tocava, às vezes fazia comentários.
Havia um programa chamado “Ele, Ela e a Canção”. Era um cantor e uma cantora cujas faixas se sucediam alternadamente. Num dia eram Cauby Peixoto e Leny Eversong… no outro eram Ataulfo Alves e Nora Ney… E por aí, ia. E eu me lembro que um dia eu falei para minha mãe: “Se alguém me mandasse fazer esse programa por um dia, eu fazia com Nelson Gonçalves e Elza Soares”.
Conto esse episódio bobo porque é a recordação mais antiga que tenho de Elza, e por ela deduzo que eu já era fã, e era mesmo, porque fiquei comportadamente sentado ao pé do rádio quando ela veio a Campina Grande e fez um programa inteiro cantando no auditório da mesma Radio Borborema, com transmissão ao vivo.
“Beija-me”:
Lembro que nesse tempo já ouvia falar nela como a maior sambista brasileira, não como um “novo talento que desponta”. E os improvisos em voz rouca, estrídula, suingada, chamavam a atenção. Era coisa para a gente parar o que estava fazendo e ficar à escuta. Era diferente.
“Se acaso você chegasse”:
A rasgada rouca da voz de Elza era algo que ia além da música, era como se fosse uma ilustração na página impressa de um livro, algo que ia além do texto, trazia uma dimensão a mais, algo completamente diferente mas que fazia parte.
Na época eu percebia esses “efeitos especiais” aqui e acolá em diferentes artistas. Via algo parecido nos “cans-ganscans-gansculans” dos Demônios da Garoa, cujas canções não eram apenas ilustradas por efeitos vocais desse tipo, mas mostravam, apitos de trem ou de guarda, vozerio de botequim, e em canções como “Cidade do Barulho” tinha todo tipo de efeito sonoro. Tinha também Moreira da Silva, onde “O Último dos Moicanos” mostrava não apenas disparos de revólver *”Cuidado Moreira!…”), como galinhas cacarejando, índios ululando e tudo o mais.
Elza era também perita nos duetos de estúdio com outros artistas, e para mim suas gravações com Miltinho, um dos maiores sambistas de todos os tempos, são um documento da liberdade e da alegria de cantar, de dividir, de atrasar, de correr pra pegar lá na frente, de cair na nota certa e ainda dar um floreado a mais.
Elza e Miltinho:
É o que chamamos de suingue, de jogo de cintura, de flexibilidade, de domínio total de uma forma, de uma segurança estabelecida a tal ponto que permite o luxo de se divertir de graça.
Os obituários que rolam desde ontem falam inevitavelmente na relação de Elza com Garrincha, e na época, para um garoto adolescente que era doido por futebol, nada parecia mais correto, porque Elza era o Garrincha da música e Garrincha era a Elza do gramado. Era o encontro de duas almas autênticas, como diria o poeta.
O mundo gira, a Lusitana roda, o tempo vai passando e Elza desaparece do mapa, não por defeito dela, mas porque os anos 1970 foram (pelo menos na minha percepção) uma explosão da música brasileira em todos os gêneros, em todos os estilos. Mas foi, por essa mesma explosão, um período difícil para quem conheceu o sucesso na década anterior; basta lembrar os casos, tão próximos de nós, de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro.
“Língua”:
E de repente apareceu Caetano Veloso em 1984 com um dos primeiros raps brasileiros, “Língua” (em Velô), uma espécie de manifesto em defesa dos nossos jeitos brasileiros de falar, e a certa altura ele gritava: “Fala Mangueira!…”, e surgia aquela voz:
Flor do Lácio, sambódromo,
lusamérica, latim em pó…
O que quer, o que pode essa língua?
Era a voz rascante de Elza Soares, e mais uma vez eu parei o que estava fazendo, para prestar atenção. Os tropicalistas, que cronologicamente estão um degrau mais alto do que eu (estão se aproximando todos da reta dos 80) mais uma vez traziam do fundo do baú os meus cantores de infância, como Gil e Caetano já haviam trazido Luiz Gonzaga (“17 Légua e Meia”, “Asa Branca”) e Gal trouxera Jackson (“Sebastiana”). Agora era Elza.
E me parece que desde então ela voltou a gravar e a fazer shows “com força”, ou quem sabe ela nunca parou; eu é que estava distraído escutando Rita Lee. Não importa: Elza voltou a estar por toda parte, num pique assombroso, gravando discos onde não tinha mais a potência original da voz cheia, de notas longas e flexíveis, mas aperfeiçoou a habilidade na divisão, e principalmente passou a cantar um repertório cujas letras iam muito além das letras alegres e juvenis falando de amor e sensualidade.
A Elza do século 21 foi uma cantora que largou a pele antiga e se exibiu nova e reluzente, igual e diferente, e abriu um aposento novo na obra que já era imensa.
“Mulher do Fim do Mundo”:
A esta altura, todo profissional da música tem uma história com Elza, não é mesmo? Eu também tenho a minha.
Por volta de 2002, Ivaldo Bertazzo me chamou para escrever o texto de um espetáculo de dança, Folias Guanabaras, a ser encenado pelo Corpo de Dança da Maré (66 garotos e garotas que dançam pra caramba), com DJ Dolores na trilha sonora, e no elenco Rosi Campos, Seu Jorge e a própria Elza. E eu dei um jeito para que a narrativa incluísse uma das minhas músicas preferidas de quando eu tinha 11 anos, “Eu e o Rio”, composição de Luís Antonio que ela tinha gravado naquele tempo.
“Eu e o Rio”:
Elza é Spartacus. Uma prova disso é o musical Elza de Duda Maia, com texto de Vinicius Calderoni, direção musical de Pedro Luís, produzido pela “Sarau” de Andrea Alves, onde Elza era interpretada por Verônica Bonfim, Khrystal, Julia Tizumba, Larissa Luz, Janamô, Késia Estácio e Laís Lacorte.
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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail: btavares13@terra.com.br
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