Nova biografia de Virginia Woolf


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NOVA BIOGRAFIA DE VIRGINIA WOOLF FOGE AO CLICHÊ DA DEPRESSÃO

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O Cinema (especialmente o de Hollywood) faz pelas vidas de escritores coisas que decididamente têm dois lados: prestam tributo às suas vidas e repõem seus livros no mercado fazendo com que novas gerações se interessem por eles, mas também promovem clichês e adulterações na mesma medida. Gostei do filme “As horas”, no conjunto, mas não pude aceitar de jeito nenhum aquela Nicole Kidman tornada feia por um nariz postiço absurdo que, obedecendo à cartilha hollywoodiana, se enfeou para ganhar Oscar. Virginia Woolf foi uma mulher bonita, ao seu modo. Não era uma beleza convencional, mas os produtores do filme não deviam tê-la desfigurado tão bestamente. Fico pensando que ela seria perfeitamente encarnada, com aquele perfil nobre, por uma atriz inglesa do porte e da figura de Vanessa Redgrave, muito melhor que por Kidman.

Nossa época criou uma horda de leitores e apreciadores de cinema que temem o que não é tônico – a depressão, a melancolia, a visão cética e pessimista do mundo, são amaldiçoadas como conspirações contra o bem-estar de leitores e espectadores que só desejam ser adulados na sua vida anestesiada e mesquinha. Portanto, a aura de depressão afasta muitos leitores de Virginia.

Isso vem a propósito de uma nova pequena biografia sua, em pocket da L &PM, que ainda por aí pelo mercado, a bom preço. Quero recomendá-la, porque o tom vai contra o clichê: a autora, Alexandra Lemasson, decidiu investir em outra face de Virginia: a da mulher que, afinal, embora tenha se suicidado e passado por inúmeras crises de loucura maníaco-depressiva em sua vida, não foi exatamente uma deprimida vencida por antecipação: Virginia era uma mulher irreverente e divertida cuja companhia encantava e deliciava as pessoas. Quanto à depressão aguda, ela sempre a viu com lucidez, se recusando a ser psicanalisada porque sentia, como todo artista, que aquela loucura era seu mistério e temia perdê-la, “jogando o bebê com a água da bacia”.

Teve grande coragem e grande dignidade para enfrentar suas crises e sair delas, de cada vez, mais perceptiva em relação à sua matéria-prima de criação literária, mergulhando em profundezas psicológicas raras no seu tempo. Mas o clichê, veiculado de uns tempos para cá pelo filme “As horas”, era que foi sobretudo uma deprimida, um tormento para o seu marido abnegado (e sexualmente abstinente por vontade dela, segundo se diz), Leonard Woolf. Hollywood em geral faz disso com os gênios: grandes problemas para as suas famílias, trambolhos excêntricos para o bom funcionamento da “normalidade”, como se esta fosse um dado inquestionável. Hollywood sempre perpetuou essa visão como a sua forma mais astuciosa e covarde de filisteísmo, através de seus tributos. Fez o que fazem as “boas famílias”: loucos são admiráveis, mas só permanecendo no porão a eles destinado…

É bom ler o livro de Lemasson para retirar de vez esse tipo de poeira-clichê do retrato da grande escritora vitoriana. Mas ler alguns de seus livros no mercado brasileiro pode revelar como ela podia ser divertida. Um exemplo é a coletânea de memórias “Momentos de vida”.

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Venenos e delícias do humor woolfiano

Os textos que nele podem ser encontrados são “Reminiscências”, “Um esboço do passado”, “Contribuições ao clube das memórias”, “22, Hyde Park”, “O velho grupo de Bloomsbury”, “Eu sou esnobe?”. Virginia fala de sua vida, de sua irmã, Vanessa, de seu pai, “Sir” Leslie Stephen, em retratos de família que, amorosos, podem ser de uma crueldade pungente, porque o que viu, Virginia viu em carne viva, com sua sensibilidade exacerbada registrando cada detalhe e sofrendo, em extensão impensável para os que os desferiam, cada um daqueles golpes. É fantástica a pintura que faz de um meio-irmão, George Duckworth, que se crê incumbido de casar direito as irmãs das quais tinha que cuidar (Virginia e Vanessa). É um cretino, um porco lascivo que abusa sexualmente das meias-irmãs, e Virginia não o poupa de modo algum, sentenciando-o a ser perpetuado na história da literatura com um perfil grotesco. De sua escrita sensível, mas dura, não escapa nem o pai, Leslie Stephen, cuja grandeza – foi um homem famoso na era vitoriana -, Virginia questiona com a força da filha que conheceu a estátua pelo lado menos lisonjeiro: o doméstico.

O livro tem toques sombrios como esse, mas traz revelações divertidas. Na época em que, lindas e jovens, Vanessa e Virgínia eram levadas pelo chato do meio-irmão George Duckworth a bailes e recepções enfadonhos onde eram apresentadas à sociedade para que atraíssem bons casamentos (na concepção estritamente vitoriana e machista do sujeito), Virginia bem notou que, embora aquilo fosse uma chatice terrível, eram ao menos admiradas e desejadas pelos homens e sentiam-se especiais. Porque, tempos depois, as duas tinham se mudado para Bloomsbury e George já não metia o nariz em suas vidas, de modo que recebiam quem quisessem, e entre seus convidados começaram a aparecer os nomes famosos que formariam o grupo, mas aí, o que houve?

Conversavam com aqueles homens (o economista Keynes, o escritor Lytton Strachey, entre outros) sobre tudo, da literatura à filosofia e à economia, sentiam-se brilhantes, mas…não se sentiam desejadas. Virginia, intrigada por aquilo, só aos poucos descobriu que aquela tranqüilidade toda se devia a estar lidando com, ora, homossexuais. É com esse círculo, aliás, que ambas vão se libertar sexualmente, dizendo até palavrões que mal ousavam proferir. Esse trecho traz um pouco daquela ideia convencional de que, ao lado de homossexuais, as mulheres estariam com suas virgindades preservadas, como que ao lado de eunucos, mas é engraçado e não deve abalar a militância gay pela “incorreção política”.

O humor também está no texto “Eu sou esnobe?”, que é o ponto alto deste “Momentos de vida”. Virginia se faz a pergunta do título ao contar de seu relacionamento com Sybil Colefax, uma milady que a convida seguidamente para jantares com escritores. O esnobismo literário da mulher é realmente doentio e mais irônico ainda é que ela não nota que Virginia não gosta muito da companhia de outros escritores. O esnobismo de Virginia é de outra espécie: ela conhece escritores demais, em sua própria casa, freqüentada por medalhões literários vitorianos desde a infância, e o que ela tem é um fraco por títulos de nobreza. Como conta isso, é uma delícia.

O ensaio é magnífico, uma peça consumada de graça e leveza e observação social aguda. Desnuda a loucura e a frivolidade do esnobismo de certo círculo social muito elevado, e a gente pode até visualizar aqueles tipos em algum filme sobre ingleses vitorianos esnobes, de James Ivory, em que a tal Colefax fosse personagem principal. Ela é uma fútil completa, e divertida, como só as pessoas tomadas fanaticamente pelo amor às aparências e modas podem ser. O veneno de Virginia funciona com uma precisão terrível, nessa análise. Nenhum esnobe será o mesmo depois de lê-la.

Mas ela não escrevia para as Sybil Colefax deste mundo, que, despudoradas, narcisistas impenitentes, são imunes a críticas e ironias – escrevia, decididamente, para outra espécie de almas. Que não são necessariamente depressivas por gostarem de coisas céticas, pessimistas e profundas. São apenas lúcidas e, se tomadas pela loucura, não acreditam que um mundo normal, este sim completamente insano, possa ter um antídoto eficaz contra ela. Preferem que a arte, bem menos mesquinha, dê conta disso.

 

 

 

 

 

 

Chico Lopes nasceu em Novo Horizonte, SP, em 1952, está radicado em Poços de Caldas desde 1992. Em Poços, é programador e apresentador de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles desde 1994. Tem vários livros inéditos de ensaios sobre filmes e literatura, além de ter publicado três livros de contos: “Nó de sombras” (2000), “Dobras da noite” (2004) e “Hóspedes do vento” (2010). Em 2011, deve estrear na publicação de novelas e romances. E-mail: franciscocarlosl@yahoo.com.br




Comentários (4 comentários)

  1. Daniel Lopes, Belíssimo texto. Bom que a biografia não peque pelo exagero. É preciso ser sensível e honesto para não despencar para o sensacionalismo barato, que é o que a maioria das pessoas busca. Estou lendo os diários do Kafka. Outra vida controversa. Parece-me que esses seres, Kafka, Virgínia Woolf estiveram aqui, mas viveram num outro tempo, num outro espaço. Estiveram no mundo, mas viveram na literatura. O mundo, o convívio com a futilidade de festas e estas coisas cotidianas, sociais era para eles como uma queimadura, uma alergia. Dilacerava-os.
    10 março, 2012 as 20:02
  2. CHICO LOPES, Acho que você está certo, Daniel, e muito certo. O mundanismo, em geral, é de uma chatice horrenda para escritores e nem diria só eles, mas para qualquer pessoa que tenha uma sensibilidade maior. Outro interesse que perpassa a biografia de Virginia foi ela ser corajosa assumindo pacifismo radical quando a Inglatetrra estava toda engajada (e até seu marido, Leonard, partilhava dessas ideias) na causa unanimemente considerada nobre da Segunda Guerra Mundial, contra a Alemanha. Isso lhe valeu muitas críticas, como se ela fosse uma alienada total. Mas escritores que se prezam têm que se colocar acima das ondas ideológicas vigentes também. Hoje, o pacifismo de Virginia pode ser visto como lúcido e premonitório. Quase erramos quando seguimos nosso coração, nessas coisas.
    11 março, 2012 as 13:36
  3. CHICO LOPES, Opa, perdão. A frase final é “quase nunca erramos…etc.
    11 março, 2012 as 13:39
  4. Daniel Lopes, Vou comprar a biografia o mais breve possível. Valeu a dica. Abração.
    11 março, 2012 as 15:23

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