Notas de um outro subsolo
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“Notas de pensamentos incomuns”, do jovem escritor carioca Anderson Fonseca, marca sua estréia no melhor estilo, com uma prosa vigorosa, algo peculiar no cenário da atual ficção brasileira, carente de novidades, sempre inflacionada do mais do mesmo. Atualmente residindo no Ceará, Anderson Fonseca, é um dos coordenadores editoriais do selo Multifoco, editora carioca que vem marcando presença no mercado com a publicação e revelação de uma nova geração de autores.
Estamos diante de uma narrativa impactante, permeada de sutilezas formais e reviravoltas estilísitcas. Algo que espelha o talento, a segurança e versatilidade do autor para a criação de mundos inauditos, situações desconcertantes e cenários supra-reais. Levando ao extremo, sem firulas ou mimetismos, não apenas seu experimentalismo de linguagem, mas arroja na justaposição de universos e personagens atípicos, algo que de um lado denuncia o estranhamento e o desconforto de seus protagonistas e da própria realidade, por outro funciona como uma metáfora da vida e da própria civilização, hoje acuada em seus becos sem saída.
É nítida em “Notas de pensamentos incomuns” a sensação de absurdo: o incomum e o inusitado são utilizados como recurso para refletir sobre a própria realidade humana e social, além de expor o deslocamento permanente do ser nesse mundo coisificado, em que morte e vida se banalizam e em que valores são rechaçados na esteira das conveniências de um mundo canibalizado.
Bichos, homens, objetos e sensações confundem-se nessa selva monolítica da existência em que os papeis são trocados e que a natureza é subvertida, o intangível e o palpável permutam de lugar e função, como resultado de um estado de beligerância íntima ou de inquietações e angústias psicológicas, que culminam num processo alucinatório, como o vivido pelo personagem-narrador. O homem bestializado da sociedade de consumo, massificado pelos deuses eletrônicos, aviltado pela avassaladora inconsciência que tudo preside é simbolicamente representado pelo sentimento de abstração que perpassa todo o conjunto ficcional.
No livro, os bichos (além dos signos e códigos), assumem uma função mitológica bizarra, apresentando todo um contexto de deturpações fisiológicas, orgânicas e metabólicas – algo entre um transe onírico-psicodélico e o metafísico – como corolário de um ancestral sentimento de não-pertencimento. Postula-se com isso uma outra compreensão do visível (e do risível), na fronteira entre o delírio e a própria loucura da realidade, daí podendo extrair questionamentos, inflexões filosóficas, expansões interpretativas que vão desde uma explicação atípica do comportamento de um animal até o esmiuçamento de um teorema ou de uma fórmula matemática, na tênue fronteira entre a esfinge do desconhecido e o deserto das certezas estabelecidas.
Por trás de todo o arsenal de absurdo e inverossimilhança, o aparato da fantasia comporta um viés de humor e ironia, toda uma maneira de repensar a relação do homem com o meio, com o seu semelhante, com a ordem natural das coisas, violentamente subvertida pelo que chamam de civilização pós-moderna.
A experiência narrativa de Anderson Fonseca nessa fábula do desconforto radicaliza o olhar do autor sobre o mundo que o cerca, coloca em xeque os limites entre o sagrado e o profano, entre a carne e o espírito, entre o homem e o animal, confrontando mundos paradoxais. Mas essa simbiose entre ambientes aparentemente incomunicáveis reforça a implosão dos limites entre a própria arte e a vida, entre o que é essencial/humano e o que é artificial e transitório. A ficção aqui assume o papel catalisador, de assustar o leitor a partir da denúncia de narrador angustiado e perdido das mazelas e impertinências do mundo em que vive(mos). Os seres extraordinários que povoam essa novela são projeções de nossos íntimos desejos, de buscar alternativas para vencer (ou tentar compreender) a nossa finitude e enfrentar a morte (nossa e da civilização).
Ao concluir seus pensamentos, o narrador descerra a cortina de sua consciência e desvela grande mistério que o fez mergulhar num território em que tudo (a)aparecia como imperfeito ou fora de foco: “ Faz um tempo que meus pensamentos estão sob a regência de uma bactéria. Não sei como ela chegou ao meu cérebro, mas lá está, fazendo de cada sinapse a arquitetura de sua vida. Lembro somente que, uma certa vez, sonhei que uma bactéria comia minha mente. No dia seguinte, comecei a duvidar das coisas e a ter intensas dores de cabeça. Na mesma semana a Scientific American noticiava a descoberta de uma bactéria que é capaz de alterar o estado cognitivo do ser humano. Ao ler isto, fui ao médico que confirmou minha suspeita. O doutor sugeriu uma cirurgia, mas recusei.” O desfecho coroa a alegoria dessa intensa e profética metamorfose, algo que desnuda kafkiana a grande prisão psicológica que o atormentou e adormeceu. È o salto para a realidade, porém esta mais agressiva que o exílio mental que experimentou.
Num momento em que a grande mídia bafeja insensatamente tanta mediocridade, em que o espaço para o lixo literário e cultural é cada vez maior, em detrimento de uma literatura esteticamente superior, que não se volte para o mercado, mas para a consciência, a publicação de “Notas de pensamentos incomuns”, de Anderson Fonseca é um bom sinal e contribui para o arejamento da literatura em nosso País, tão contaminado por obras de duvidoso mérito.
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Ronaldo Cagiano é autor de “Dicionário de pequenas solidões“ (contos) e “O sol nas feridas” (poesia), dentre outros. É mineiro de Cataguases e vive em São Paulo. E-mail: ronaldo.cagiano@caixa.gov.br
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5 julho, 2012 as 23:01
9 julho, 2012 as 15:08