Nave Manha
UMA ODISSEIA SONORA A BORDO DA NAVE MANHA
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Quando eu cheguei das estrelas
entrei na terra
por uma caverna
chamada Nascer
E eu era uma nave
uma ave
da ave-maria
e como uma fera
que berra
entrei
na atmosfera
E cuspido, espremido,
petisco de visgo,
forçando a passagem
pela barreira,
sangrando, rasgando,
subindo a ladeira,
orgasmo invertido,
gritei quando vi:
já estava respirando.
(Tom Zé, Nave Maria)
Ave-Maria!!! É uma nave? É uma ave? É Nave Manha: o último CD da banda Trupe Chá de Boldo. Você já ouviu? Se disser que ouviu, ainda não sacou a viagem poético-musical. Mas se responder que escutou, as coisas começam a mudar de figura. Os verbos “ouvir” e “escutar”, usados pelo senso comum como sinônimos perfeitos, são na verdade perfeitamente desiguais, igualmente imperfeitos, com alcances semânticos distintos. O que significa que não significam as mesmas coisas, não traduzem as mesmas ideais, não revelam os mesmos conceitos. Se você não entendeu, vamos pedir ajuda aos universitários.
OUVIR NÃO É ESCUTAR
Roland Barthes, semiólogo que também sofria da “doença de ver a linguagem”, ajuda-nos com sua sintonia fina a entender a distinção entre os verbos: “Ouvir é fisiológico; escutar é um ato psicológico. Pode-se descrever as condições físicas da audição (seus mecanismos), recorrendo-se à acústica e à fisiologia da audição; a escuta, porém, só se pode definir por seu objeto, ou, se preferirmos, sua intenção”.
Nessa perspectiva, escutar é ouvir com intenção, direcionar os ouvidos para atingir o alvo do som. Assim, mais do que sentir os sons, escutá-los é percebê-los. Nada mais providencial nessa era da pressa, nessa idade do instantâneo, em que ouvidos deseducados, criados na passividade, acostumam-se com a estética da música ambiente, como se toda música fosse música (?) de elevador. E, convenhamos, nada pior para uma boa música do que maus ouvidos. Isso porque, do mesmo modo que uma cor não captada pelos olhos é como se não existisse, um som não percebido pelos ouvidos fica relegado ao limbo do silêncio. Escutar, assim, é ouvir com os olhos da alma. Cruzando os sentidos, pode-se dizer, em outros termos sinestésicos, que escutar é olhar com os ouvidos do espírito.
Como dizia o dramaturgo Antonin Artaud, o sujeito escuta “quando possui ouvido suficientemente aberto para perceber o avanço da pororoca”. Perceber a pororoca, aqui, é sacar o avanço de mil ondas poéticas, de mil águas musicais se cruzando sobre os nossos ouvidos: o som da Trupe brota desse encontro caudaloso, desse amálgama de braços (e pernas e bocas e olhos) de muitos rios, harmônicos, melódicos e verbais.
Ponho novamente o CD para tocar. Escuto, perscruto… A cada audição, um outro CD. É que meus ouvidos heraclitianos aprenderam que um homem não se banha duas vezes no mesmo rio: o homem já não é o mesmo; o rio já é outro. A mesma lição de Guimarães Rosa em suas andanças por sertões e veredas: a cada vez que se atravessa o mesmo caminho, vê-se uma borboleta nunca vista antes, ouve-se um canto de pássaro nunca dantes percebido – o mesmo caminho, então, já se fez outro, “metaformoseado” pelos sentidos.
Assim é a viagem musical a bordo da Nave manha: a cada escuta, percebo novos sons, escuto novos versos, perscruto novos sentidos – saco outras borboletas e outros pássaros cantando nas veredas de cada faixa. Com a desconfiança de um São Tomé, preciso ouvir para crer: eis que, nessa piracema musical, faz-se diante de mim o milagre da multiplicação dos peixes sonoros!
É, de fato um grande disco é mesmo uma espécie de milagre, que deixa o ouvinte mais incrédulo extasiado diante da experiência quase mística da audição. Os sentidos se multiplicam em cascata… Difícil escrever sob e sobre o estado de êxtase. Difícil estar em transe e decodificar o transe. Sinto a angústia de Rimbaud, desejando um “verbo acessível a todos os sentidos” para tentar “fixar as vertigens”, “anotar o inexprimível”. Tateio, tento…
Sigo a viagem: este disco é uma viagem! Em toda a extensão de sentido do termo. É uma viagem porque é muito bom. É uma viagem porque dentro de cada faixa há um passeio por muitos gêneros, que se multiplicam de faixa a faixa, potencializando a viagem. É uma viagem porque estamos a bordo da Nave Manha. Lembro que na resenha que escrevi para o trabalho anterior, Bárbaro (um disco bárbaro também, com o perdão do trocadilho!), brincava com a ideia de lançamento de um CDisco voador. Nessa pororoca verbal, CD e disco voador se fundem. Ah, se soubesse que este se chamaria Nave Manha, deixaria o trocadilho para este lançamento, que nos arremessa no espaço…
UM DISCO ESPACIAL
Por falar em viagem e espaço, pode-se dizer que este é um disco espacial. Novamente, explorando toda a carga de ambiguidade da palavra. Claro que, também, porque o disco se chama Nave Manha: e de nave a espaço, um passo! Mas também porque em várias estradas da viagem poética correm versos que remetem a mil lugares, a mil luares – faixa a faixa, passo a passo, mil espaços! Mas, claro, também porque em vários momentos da viagem musical se ouvem referências a barulhinhos espaciais, como se o som fosse arremessado além da atmosfera para outras esferas – para outros espaços!
Vamos falar primeiro, então, do nome do CD: Nave Manha. O gesto da nomeação, como de praxe, inscreve o sujeito no mundo. Confere-lhe identidade. Cria uma genealogia. Instaura uma filiação. Estabelece parentescos. De bate pronto, vem-me à mente a famosa “navilouca”, a stultifera navis da Idade Média, que recolhia os doidos da aldeia (antes de existir o confinamento em hospitais psiquiátricos), que vagavam ao léu numa espécie de “barco bêbado”, numa rimbaudiana quadrilha foucaultiana. Depois, a “navilouca” que deu nome à revista de Wali Salomão e Torquato Neto, juntando concretistas, poetas marginais & outras vozes numa pororoca eclética. E por falar em Torquato e em navilouca, foi aí que ele publicou o seu poema “a arte é a mãe das manhas e das artimanhas”. Entendeu a equação? Navi(louca) + manha = Nave Manha. Que lembra também, nessa quadrilha, a Nave Maria de Tom Zé, que já estava na epígrafe…
A palavra “nave”, no contexto da conquista do espaço, remete ao meio de locomoção para viajar além da atmosfera. A lembrança da “navilouca” remete-nos providencialmente à etimologia latina: “nave” vem de navis, em latim. Refere-se originariamente, pois, a “embarcação”, “nau”. Daí, o verbo cognato “navegar”, que carrega dentro, como tripulante mórfico, o radical “nave”. No CD da Trupe, as duas memórias de sentido são ativadas: “nave” é tanto navio quanto espaçonave. Como mostraremos melhor adiante, além das referências disseminadas nas letras, há também os sons que remetem tanto ao mar quanto ao ar: a canção que fecha o disco, “Até chegar no mar”, opera de modo lapidar a síntese entre os elementos…
Nessa viagem, de paragem a paragem, viajei também naquele papo do filme Alta fidelidade, com aqueles malucos por música, como nós, e suas eternas listas, típico transtorno obsessivo compulsivo dos doentes por sons… Imaginei, então, uma lista com canções ou nomes de discos que remetem a meios de locomoção, que permitem os deslocamentos espaciais. E eis que saltam uns nomes dos trilhos da memória: do Magic Bus do The Who ao Big Yellow Taxi de Joni Mitchell, do Yellow Submarine e TaxiMan dos Beatles ao Trans-Europe-Express do Kraftwerk… Indo do Calhambeque do Rei ao Fuscão Preto de Almir Rogério, da Nave Maria de Tom Zé à Nave Manha da Trupe Chá de Boldo… Vem para a quadrilha também o carimbador maluco-beleza Raul Seixas e seu Plunct Plact Zum (“pra lua a taxa é alta/ pro sol identidade/ mas já pro seu foguete/ viajar pelo universo (…)/ plunct plact zum/ pode partir/ sem problema algum/ boa viagem!), que não tinha entrado na história… (Lição de casa para o leitor: preencha as reticências com outros nomes!).
CENAS DE CINEMA: AS ROAD SONGS
Agora que entendemos por que este disco é espacial (especial!) já no nome, vamos ver por que ele é especial (espacial!) também na viagem poética:… Nosso ponto de partida nesta “linguaviagem” é a boa sacada do filósofo Michel de Certeau, ecoando Merleau-Ponty: a existência é espacial; o espaço é existencial. O espaço, assim, ao lado do tempo e do sujeito, é uma categoria fundamental de qualquer narrativa. Nessa “espiral de vozes”, ouço a lição de Bachelard: “o espaço habitado transcende o espaço geométrico”.
Tudo isso para dizer que os espaços cantados pela Trupe são lugares experimentados, vivenciados na poética da existência: o espaço, pois, converte-se em lugar habitado. O canto poético, nessa perspectiva, cria um roteiro espacial em que se desenrola a viagem singularíssima de um sujeito em construção, em descontração, no clima leminskiano do “distraídos venceremos”… A trilha no espaço, assim, instaura um mapa dos afetos, uma espécie de roteiro afetivo do sujeito passional em sua saga amorosa. Afinal, a narrativa da vida humana é a epopeia do amor – a grande tragicomédia do nosso cotidiano…
Já que estamos falando aqui em “roteiro” e em “espaço”, inevitável pensar também no cinema. Não que seja novidade a relação entre cinema e música em nosso cancioneiro: do trabalho de Lobão e os Ronaldos num dos álbuns pioneiros do rock brazuca, Cena de Cinema (lançado em 1982), ao disco Cine Privê, de Domenico Lancelloti (lançado em 2011). Passando por canções como “Não tem tradução”, de Noel Rosa (“o cinema falado é o grande culpado da transformação”), escrita ainda sob o impacto dos primeiros anos da sétima arte, “Flagra”, de Rita Lee (“no escurinho do cinema/chupando drops de anis/ longe de qualquer problema/ perto de um final feliz”), até “Pareço Moderno”, do Cérebro Eletrônico (“gosto de cinema, ponto”).
A própria Trupe já flertou com a telona antes: no clipe da canção Bárbaro (música de trabalho do disco homônimo, com vídeo produzido por Binho Miranda), gravado em São Paulo no saudoso cine Belas Artes (no seu último dia de funcionamento!), um desfile de personagens de filmes clássicos deu o ar da graça. A ideia era fazer uma grande homenagem à sétima arte, aproveitando amigos da música, do teatro e do cinema como atores: Tatá Aeroplano, por exemplo, foi Alex, do Laranja Mecânica; Juliano Gauche foi Edward Mãos de Tesoura; Guto (percussionista da Trupe) foi Tony Montana, nos embalos de sábado à noite; eu e o ator Mauro Schames encarnamos soldados à Platoon…
Além disso, há duas parcerias minhas com Gustavo Galo em dois filmes: Apesar (que está no Nave Manha, faixa 4), faz parte da trilha de Travessia, de Tom Butcher; Ela Chama aparece em Quando o céu desce ao chão, de Marcos Yoshi. Mas a presença do cinema neste disco espacial da Trupe é diferente, por isso digna de nota. Se Nave Manha fosse um filme, poderia ser, por exemplo, uma espécie de sucedâneo de Bye, Bye, Brasil, a película de Cacá Diegues com música de Chico Buarque: uma trupe de saltimbancos atravessando o país em “mil tons e sons geniais”, numa grande viagem musical! E que não se pense que estou “viajando” nesta viagem, forçando aproximações entre as artes. Este CD é mesmo uma espécie de “road movie”: o encarte deste, chamemos assim, “road song”, foi pensado pela rapaziada como o roteiro de um filme.
Vejamos, para entender essa história, a primeira faixa, ou melhor, a primeira cena, “No escuro” (de Gustavo Galo):
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CENA 1: Apagaram-se as lâmpadas na estação da luz. Apagaram-se os relógios da Avenida Paulista. Apagaram-se os sinais e as televisões. A razão se apagou e todo mundo sentiu.
HOMEM SOLITÁRIO na saída do cine (falando sozinho): Só restou pela rua quem brinca com fogo. Só restou pela rua quem gosta de samba. Só restou pela rua quem ria sozinho. Só restou pela rua a lua e eu. (agora olhando para a câmera) No escuro. Ligado em você.
Ao fundo, entra em foco cartaz anunciando a estreia do filme: “Nenhum Beijo É Igual”.
CORO DE GAROTAS SKATISTAS (de passagem): ié-ié-ié-ié-ié!
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O disco começa com a luz em fade, fechando-se até o escuro total. Os espaços se sucedem: a Estação da Luz, a Avenida Paulista, a sala de cinema, a rua… O sujeito está em São Paulo, em pleno “apagão” (note-se a contemporaneidade do tema!). O sujeito está solitário: o que o move, princípio básico da psicanálise, é a falta. O sujeito se desloca para tentar completar-se, revivendo a tópica mitológica do “andrógino perfeito”: os deuses separaram este ser forte, poderoso, misto de homem e mulher, para que um vagasse em eterna maldição à procura da metade faltante – no contexto, o eu-lírico “ligado em você”…
Ouvindo a canção, ouvimos também outras vozes que se cruzam nesta “espiral” polifônica: falando em São Paulo e em falta de luz, inevitável lembrar duas figurinhas carimbadas tangenciando a temática. Em primeiro lugar, lembro-me daquele samba do Adoniram Barbosa, “Luz da Light”, que diz: “lá no morro quando a luz da light pifa/ a gente apela pra vela, que alumeia também (quando tem)/ se não tem não faz mal/ a gente samba no escuro/ que é muito mais legal (é natural)”. Em segundo lugar, de novo, o eterno tropicalista Tom Zé, “Augusta, Angélica e Consolação”: “Quando eu vi/ que o Largo dos Aflitos/ não era bastante largo/ pra caber meu coração/ eu fui morar na Estação da Luz/ porque estava tudo escuro/ dentro do meu coração”. Mas o verso “só restou pela rua a lua e eu” leva também, inevitavelmente, a um dos pais da soul music tupiniquim, Cassiano, e seu hit “A lua e eu”: “mais um ano se passou/ e nem sequer ouvi falar seu nome, a lua e eu/ caminhando pela estrada…”.
Caminhando, seguindo viagem da Augusta de Tom Zé, pegamos carona para chegar à faixa 2, “A Rolinha e o Minhocão” (de Gustavo Galo e Daniel Leite), cuja cena inicial se dá, exatamente, na Rua Augusta: “Augusta, o que importa é o prazer (…)”. A bordo de uma rolinha, num deslocamento lírico, o sujeito evita o rush no Minhocão: o Elevado Costa e Silva (infeliz nomeação, infeliz memória!) é outro espaço cantado nesta viagem da Trupe. O tema do trânsito caótico de Sampa é mais um traço descritivo interessante (lembre-se do apagão da cena 1) que esses novos cronistas da cidade trazem para retratá-la com tintas contemporâneas…
Na cena 3, “Se eu for parar” (de Gustavo Galo), não há uma referência a um lugar específico, mas imagina-se o eu-lírico passando por diversos lugares, num deslocamento constante: se não pode parar, é porque está em movimento. Novamente, trata-se do trânsito (em transe) do sujeito amoroso, que precisa encontrar o objeto do desejo “antes do sol sair”. Outras memórias, de outros cancionistas, de outras viagens, são aí evocadas: Noel Rosa, em “Feitiço da Vila”, por exemplo, pede que o sol não venha pra que as morenas não vão embora: “Sol, pelo amor de Deus, não vem agora/ que as morenas vão logo embora”.
De Noel, nessa quadrilha, vamos a outro samba que o reverbera, “Olê Olá”, de Chico Buarque: “Luar, espere um pouco, que é pra o meu samba poder chegar/ (…) o sol chegou antes do samba chegar”. Os dois poetas do nosso cancioneiro, como se pode notar, negociam com o tempo a fim de que ele pare (Gil, em “Super-Homem, a canção”, tenta reverter o fluxo do tempo…): num caso, para que “as morenas” não o abandonem; no outro, para que o violeiro termine a canção (o dia quebraria a magia da atmosfera amorosa, lembrando que na mitologia, não à toa, o amor é filho de Érebo com a noite…). Tudo a ver com os versos da Trupe: “Melhor mesmo é correr/ correr sem parar/ até te encontrar antes do sol sair”…
E, correndo, chegamos a outra parada nesta viagem: a cena 4 é a canção “Apesar” (de Gustavo Galo e Paulo César de Carvalho – eu também entro na quadrilha…): “apesar da curva/ apesar da serra/ apesar da grama/apesar da chuva/ apesar da lama/ do muro/ do escudo/ apesar do escuro de tudo que turva/ apesar de tanto penar/ de tanto pensar/ de tanto pesar/ de tanto apesar/ apesar de tudo o que a gente não sabe/ que não serve”. A letra trata da força imperiosa do amor, da energia que desloca o sujeito, fazendo-o transpor os obstáculos que se põe entre ele e seu objeto de desejo. A conjunção concessiva “apesar” indica oposição, introduzindo as intempéries que se interpõem entre o casal, dificultando o êxtase do encontro.
Os espaços se sucedem na letra: a curva, a serra, o muro… Tudo se resolve no trocadilho entre “apesar”, “a pesar”, “leve” e “levar”: “apesar de tudo a pesar/ tudo vai ficar leve/ se você me levar/ então me leve/ pra longe daqui”. O deslocamento espacial entre o “daqui” (lugar da enunciação, onde se encontra, pois, o eu-lírico) e o “longe” (lugar habitado pelo desejo) parece remeter a uma espécie de espaço mítico do amor, quem sabe algum “quilombo alado” com ares de Pasárgada em que resistem (existem) os apaixonados…
Para abordar a faixa 5, “Belém Berlin” (de Gustavo Galo), é interessante observar, antes de qualquer coisa, o que é um disco pensado em seu conjunto, numa era em que isso parece anacrônico, já que a recepção do trabalho musical na idade digital sofreu sensível mudança: o ouvinte monta seu próprio disco, altera a ordem das canções, suprime o que não gosta… Dificilmente se ouve hoje, nessa época “miojo”, a um disco inteiro, na ordem em que foi pensado. Por isso acredito que, para fazer um disco nestes tempos, ele não pode ser um amontoado de canções, um agrupamento sem unidade. A cena 5 retoma, num belo exemplo de coesão (pensando o disco como um “organismo”, trata-se aqui da relação orgânica entre as partes na composição do todo) a faixa 4.
Explicando: na cena 4, o sujeito do amor pede para o outro levá-lo para longe. Do “me leve” do refrão, vamos ao “me leve na sua mala (…), na sua bolsa, na nécessaire”. Novos espaços surgem em ‘Belém, Berlin”: além dos mais óbvios, por serem espaços físicos, geográficos, mais convencionais para o sujeito ocupar, agora vêm outros lugares, como a mala, a bolsa, a nécessaire… Vale a pena registrar aqui também o recurso muito feliz à figura de linguagem denominada “gradação”: do espaço maior, o geográfico (Belém ou Berlin), a espaços cada vez menores, como a mala (menor, claro, do que Belém ou Berlin), a bolsa (menor do que a mala), a nécessaire (menor do que a bolsa). Moral da história: o amor cabe em qualquer lugar…
Na cena 6, “Box 11” (de Gustavo Galo), voltamos à Augusta, num clima de garoa tipicamente paulistana: “Um grito, desespero que toma o ar. O exaspero, o berro, o drama, tudo vermelho. Fogo frio que fere feito ferro, os fósforos molhados numa manhã sem sol. Chuva fina na Augusta que custa a passar (…)”. Da Augusta, vamos à Avenida Doutor Arnaldo, em que se encontram as famosas bancas de flores de São Paulo (que fazem par com as do Largo do Arouche). Cada banca é identificada como “box”, seguido de um número. O eu-lírico é cliente do box 11 (aliás, curiosidade numérica: o CD tem 11 faixas!). Flor e reconciliação, articulam-se, colorindo o elo entre sujeito e objeto: “e do ciúme duro aço cresça a flor/ do nosso amor”. Quase “A flor e a náusea” drummondiana (por falar em Drummond, ele também entra na quadrilha, aliás, título de um poema de sua lavra), em que a flor brota do asfalto, atestando a força da vida, da beleza, da paixão, diante das adversidades da aventura amorosa (some-se a isso o que dissemos da cena 4, a faixa “Apesar”…).
A faixa 7, “Na garrafa” (parceria de Gustavo Galo, Julia Valiengo e Paulo César de Carvalho – eu aqui, de novo, entro na quadrilha…), aparece assim no roteiro proposto no encarte:
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CENA 7: INT. QUARTO DE HOTEL. CENTRO DA CIDADE/ NOITE MORENA DO QUARTO 1023 encostada na janela fumando um cigarro encara, decidida, uma pessoa sentada na cama a sua frente (a qual a câmera nunca revela a imagem):
MORENA DO QUARTO 1023: Não quero gota, quero você gostoso todo na garrafa. Não quero gota. Eu quero o gosto de te tomar inteiro pra ver se chapa. Não quero ponta. Quero você feito fumaça na minha boca. Não quero ponta, eu quero tanto te fumar inteiro pra ver se chapa.
Próximo dali, uma orquestra se prepara para iniciar um espetáculo.
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O espaço maior: a cidade de São Paulo, região central. Dentro deste espaço, o hotel. Dentro do hotel, o quarto. Dentro do quarto, olhando outro quarto, a “morena” (seria aquela do samba de Noel, transposta dos anos 30 do século 20, no Rio, para os anos 10 do século 21, em Sampa?). Como na cena 5, em que a personagem ocupa espaços inusitados, como a mala, a bolsa e a nécessaire, aqui ela ocupa lugares ainda mais estranhos na lógica tradicional do “espaço geométrico”: a garrafa, a boca. O desejo é tão grande que culmina, como é típico do discurso amoroso, numa vontade de fundir os corpos (de novo, a saga do sujeito apaixonado recuperando o mito do “andrógino perfeito”, na nostalgia da fusão originária): beber o outro, fumar o outro, para levá-lo à corrente sanguínea, correndo (viajando) dentro do corpo do amante. No fim das contas, trata-se de trazer o outro para o centro da pulsão amorosa, para dentro do peito, para o coração. O que lembra o conceito de “o corpo é a casa”, obra da artista neoconcreta Lígia Clark…
Prosseguindo no vácuo desta Nave, “Mar morro” (de Fernando Maranho e Tatá Aeroplano, cujo nome sugere, em feliz coincidência, um meio de locomoção, portanto marcado também pelo traço da espacialidade) é a faixa 8. Nesta cena, o eu-lírico descreve assim seu percurso espacial: “vou descer o morro pra cair no mar/ cansei de só ficar olhando/ também quero me molhar/ ô minha menina/ deixa a porta fechar/ amanhã é cedo/ e muito cedo eu vou pirar/ e não pense que nada vai mudar/ depois do banho de mar/ o mar é morro/ morro de amor/ o mar é morro/ morro de fé/ o mar é morro/ morro”. O deslocamento do sujeito amoroso, agora, se dá do alto ao baixo, isto é, do lugar “em cima” para o espaço “embaixo”.
Nesta topografia passional, um dado de natureza linguística chama a minha atenção: como no “Mutum” de Guimarães Rosa, que começa e termina com “m” (sugerindo o início e o fim da vida em seu Campo Geral, simbolizadas pelas personagens Miguilim e Manuelzão, ambos com “m” também…), o “m” é a ponte que liga o “morro” ao “mar” (como na cena 5, em que o “b” liga Belém a Berlin, para que tudo termine num beijo, com “b” também…). Numa grande sacada poética, o substantivo “morro”, concreto, objetivo, se transmuda na forma verbal “morro”, carregada de subjetividade (eis que volta o bumerangue lançado por Rosa…): aqui, “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”, como numa brincadeira de vira-vira, vira “o morro vai virar mar, o mar vai virar morro”. Como diz Tatá, “o mar é morro”: e o morro, por sua vez, vira morro…
Na faixa 9, “Verão”, mais uma vez vale a pena notar a coesão entre as canções, a liga entre as cenas, a costura entre as faixas. Do banho de mar da cena 8, a cena 9 remete ao verão (seria esta a estação do amor? A palavra “estação”, aliás, polissêmica, remete tanto a clima como a cada parada da viagem…). Vejamos a letra de Gustavo Galo: “meu bem/ melhor no porto que à porta/ melhor na chuva que com chave/ melhor no sol do que na sala/ melhor na estrada do que no estrado/ meu bem/ melhor no espaço que no spa/ melhor ciganos que seguros/ melhor com asa que em casa/ melhor a vida do que o divã/ melhor verão do que ver nada/ melhor no mar que ver navios”.
Além do mar que aparece já em “Mar morro”, outros espaços se sucedem, como atestam estes adjuntos adverbiais: no porto, na porta, no sol, na sala, no estrado, na estrada, no spa, no divã… Os versos finais, primorosos, atestam o crescimento de Galo como poeta, seu salto como compositor: “melhor verão do que ver nada” explora expressivamente a ambiguidade, num trocadilho poético que faz o substantivo “verão” virar verbo. Em “melhor no mar que ver navios”, sua pena precisa, sua mão bem calibrada, ativa os sentidos literal e figurado da expressão “ver navios”, significando tanto que é melhor estar navegando do que ver os outros navegarem (o sujeito não é mero observador da viagem alheia; ele também põe sua embarcação no mar), como que é melhor estar na vida, estar no jogo, presente no amor, do que perder-se, ficar de mãos abanando, desnorteado (no final das contas, navegar no mar do amar não é viajar sem bússula? Parafraseando Pessoa, navegar é impreciso, mas é preciso…).
Navegando até a faixa 10, “Splix” (parceria de Gustavo Galo, Ciça Góes e Peri Pane), vem à mente agora “A banda” de Chico Buarque. Só que, diferentemente da banda que passa “tocando coisas de amor”, esta toca de tudo um pouco: “O que toca a banda? Toca rumba ou toca samba? O que a banda toca? O que toca a banda? Toca cúmbia ou guarânia? O que a banda toca? Pop, punk ou polka? A banda toca o quê? Indie, rock, Amy, MPB? O que que é? Tá no tom? Tem cover de Tom Zé? Pouco importa o nome aos bois (a dois)! O som é só uma onda. Curta”. Qual é o nome? Quem gosta de colar etiqueta é crítico, é acadêmico. A trupe é míssil, não fóssil (como diria Wali Salomão). Sai pra lá, alfinete: esta rapaziada não tem vocação para figurar de borboleta de colecionador! Afinal, se o beija-flor parar para pensar por que beija a flor, ele cai!
Esta canção, portanto, é um belo e irônico antídoto (como ensina o teatro antigo de Plauto, “ridendo castigat mores”: o riso corrige os costumes) contra a pergunta redutora, castradora: “O que toca a banda?”. De novo, a questão do espaço: a definição do gênero musical confinaria a banda numa gaveta universitária, num escaninho de redação de jornal. Cada referência musical da letra, assim, remete a um espaço (considerando que passear por gêneros é uma maneira de visitar lugares e culturas distintos, fugindo às simplificações das catalogações), para mostrar um espaço é pouco, dois é bom e três nunca é demais: da guarânia paraguaia à cúmbia peruana; da mpb brasileira ao punk americano (Ramones é anterior a Sex Pistols!)… Da América do Sul à do Norte, da Europa ao mundo!
O título já anuncia a porrada cheia de humor: “Splix”. Note a transgressão ortográfica, a grafia fora da norma, o verbo fora da ordem. A forma imperativa “explique-se” tem seu tom autoritário neutralizado na forma “Splix” (como num gibi do “Asterix”, zombando dos “Chatotonix” de plantão!). Fico aqui com o poeta Novalis, fazendo coro para engrossar o caldo da resposta, para desgosto dos botânicos da crítica musical: não sei seu nome, flor azul, só sei que te amo! Entendeu? Então se toque: o blues pode ser amarelo, o amarelo pode ser foxtrote, o azul pode ser rock! Afinal, como definir a cor do som, como traduzir o som da cor? Sinta as cintilações… “O som é só uma onda/ curta”: registre-se aqui a sacada poética – o corte seco para o último verso, em que figura sozinha a palavra “curta”. Como se espera de um bom poema, em que nada é gratuito, aqui também a expressão, o modo de dizer, traduz o conteúdo, o dito. Splix: nada a dizer, apenas curta…
Na faixa 11 – o último som, a última estação –, a canção “Até chegar no mar” prepara a subida dos letreiros. Vamos conferi-la no roteiro deste cine-disco:
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CENA 11: INT. SALA DE CINEMA/ ÚLTIMA SESSÃO
Homem solitário assiste à cena final do filme “Nenhum beijo é igual”. Corta para imagem da tela: Banda (fugindo de jornalistas) entra num veículo da viação “Nave Manha”.
Corta para cena de mar. Zoom-out revela o veículo vazio sobre a areia. Sobe o texto de agradecimentos:
pra você que transforma brisa em brasa, fóssil em míssil,
pra você que transforma rímel em rima, fuga em fogo,
pra você que transforma linha em lenha, careta em carinho,
pra você que transforma calma em chama, cama em caminho,
pra você que transforma Rambo em Rimbaud, pouco em palco,
pra você que transforma acordo em acordes, a dor em roda,
pra você que transforma heavy em leve, cansaço em canção,
pra você que transforma em mim o que virá em verão.
Eu canto, meu amor, até chegar no mar.
A imagem estoura em branco, o projetor para de funcionar.
Lentamente, apagam-se as luzes da tela.
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Essa letra traz um procedimento poético muito recorrente na produção de Gustavo Galo: as relações binárias entre as palavras, em geral se comportando como termos polares do mesmo eixo semântico. Por exemplo, a oposição entre “brisa” e “brasa”, retomada em “calma” e “chama” e, por que não?, em “heavy” e “leve”: de um lado, a leveza, a calmaria, o frescor; de outro, o peso, a intempestividade, o calor. Vale notar também o recurso a uma figura de sonoridade que tem tudo a ver com a poética da canção: o choque entre as consoantes (“b” e “b”, “r” e “r”, “c” e “c”, “v” e “v”), procedimento estilístico denominado “aliteração”, faz música ainda no silêncio do branco do papel, antes de ouvirmos a melodia…
Na “espiral de vozes” da teia intertextual tecida por Galo, mais uma vez ecoa a presença de Wali Salomão: o verso “pra você que transforma fóssil em míssil” retoma a auto-imagem do poeta, que se dizia inquieto, intempestivo, em eterno movimento na vida e na arte, como um míssil, antídoto contra o imobilismo morto do fóssil. Aliás, vale lembrar que Wali assinava também Sailormoon, fazendo trocadilho com seu sobrenome, o que vem bem a calhar nesta viagem espacial da Trupe: “sailormoon” é o marinheiro da lua, o navegante do espaço (a etimologia não é gratuita: nave, navegar…) – espectro de luz que ronda a embarcação Nave Manha…
É interessante notar que Galo não convoca apenas enunciações alheias em sua quadrilha de citações (a propósito, como diria João Cabral, um galo sozinho não tece uma manhã!), quando chama ao terreiro, por exemplo, Wali, Torquato, Adoniran, Tom Zé, Chico Buarque, etc. Cita também a si mesmo, em relação de intratextualidade para alinhavar seu discurso poético. O trecho “pra você que transforma em mim o que virá em verão”, com o interessante jogo paronomástico entre “virá” e “verão”, resgata a faixa 9, intitulada exatamente “Verão” (em que aparece também, num efeito de espelhamento estrutural, o mesmo motor de construção, com as oposições binárias, como “porto” X “porta” e “estrado” X “estrado”, figurativizando a relação semântica entre os temas da imobilismo X movimento, o que é coerente com o percurso espacial a bordo da Nave). O “virá”/”verão” da 11, pois, retoma este verso da 9: “melhor verão do que ver nada”. Tudo isso nos faz pensar, enfim, no seguinte: se este disco fosse uma estação, seria o verão!
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E LA NAVE VA
Se este disco fosse um filme, além de Bye, Bye Brasil, poderia ser também o clássico felliniano E la nave va. Na película do mestre italiano, um sofisticado navio parte da Itália para levar as cinzas de uma grande cantora lírica para sua terra natal, a obscura Ilha de Erimo. Não lembramos por acaso do filme: além do título, que retoma mais uma vez a relação nave-navio no nome do CD, fala também de música e cinema, outra aproximação que resgata o que dissemos sobre o encarte pensado como enredo, ligando as duas artes.
Outra razão de termos nos lembrado de Fellini é que ele adorava personagens bizarros, compondo em sua cinematografia uma curiosa galeria de tipos. A bordo do navio, por exemplo, para seguir o funeral, misturam-se cantores, músicos, amigos da falecida, nobres e até um jornalista. No encarte da Trupe, a bordo de sua Nave Manha, também desfilam personagens exóticos, como num mosaico pós-felliniano. Neste caleidoscópio de personas, desfilam as seguintes figuras:
- Cena 1: homem falando sozinho e coro de garotas skatistas
- Cena 2: coro de garotas skatistas e dono do bordel.
- Cena 3: jovem atriz na cozinha.
- Cena 4: jovem atriz no interior de um carro com rapaz de óculos escuros.
- Cena 5: rapaz de óculos escuros e jovem atriz.
- Cena 6: rapaz apaixonado fazendo serenata.
- Cena 7: a morena do quarto 1023 olhando da janela um homem no quarto da frente.
- Cena 8: músico de rock indie e Mister de Chapéu (qualquer semelhança com Tatá Aeroplano não é mera coincidência!) com fone de ouvidos.
- Cena 9: multidão com traje de banho, músico indie e Sua Menina (em maiúsculo mesmo, como o Mister de Chapéu)
- Cena 10: Mister de Chapéu e banda, produtora inquieta sempre fumando e jornalistas aflitos.
- Cena 11: os jornalistas e os músicos da banda.
Nesta nave felliniana há também outros personagens interessantes, não de ficção (de fricção: a ficção entronizada no real!), mas de carne e osso e som. Explico melhor: entraram na trip da trupe, como convidados especialíssimos, algumas peças fundamentais da nossa cena musical, como André Abujamra, Alzira Espíndola, Márcia Castro, Tatá Aeroplano e Peri Pane. Vejamos como eles como participam desta viagem musical, trazendo suas vozes para esta espiral polifônica:
- André Abujamra: figurinha carimbada da cena independente, antes ainda de ser cunhado o termo “indie”. Ao lado de Maurício Pereira, desenvolveu um dos trabalhos mais ousados da década de 80, com a bem-humorada banda Mulheres Negras (que eles diziam ironicamente ser a terceira menor big band do mundo). Lidera a banda Karnak, com um trabalho pontuado pelo humor inteligente, sarcástico, fundindo línguas diferentes e abolindo fronteiras entre os gêneros musicais, numa espécie de globalização musical. Faz o vocal grave na faixa 2 (“A Rolinha e o Minhocão), toca guitarra na faixa 5 (“Belém Berlin) e faz vocais sampleados na faixa 11 (“Até chegar no mar”).
- Alzira Espíndola: uma das vozes mais particulares da música brasileira. Sua dicção é sua assinatura: como diz Manuel Bandeira, estilo é o que faz com que o autor de uma carta anônima seja reconhecido. Alzira tem estilo, é musa rara, única, personalíssima: ninguém canta como ela. Sua presença no disco traz toda uma herança do que melhor se fez nas últimas décadas na cena: suas parcerias com a poeta Alice Ruiz, uma das maiores letristas da MPB (no sentido mais amplo da sigla), seus trabalhos com Itamar Assumpção (além de parceira, Alzira é uma das melhores intérpretes do Nego Dito), seus dois últimos discos com o grande poeta Arruda (foram gravados por Zélia Duncan e Ney Matogrosso, por exemplo), etc. Além disso tudo, some-se também seu violão, misto de folk, rock e moda de viola. É dela a voz que encanta, com sua bossa-reggae, na faixa 3 (“Se eu for parar”).
- Márcia Castro: uma das mais gratas surpresas femininas na cena contemporânea, com uma interpretação forte, cheia de personalidade. Enquanto as garotinhas da MPB não se cansam de gravar sempre os mesmos nomes, marcando suas interpretações sempre pela previsibilidade, com um canto-Poliana asséptico, sem brilho, sem graça, Márcia traz outras cores e nomes para desafinar o coro dos contentes em seu repertório, gravando “malditos” como Itamar Assumpção e Sérgio Sampaio. Na Nave Manha, divide com Galo os vocais da faixa 9 (“Verão”).
- Tatá Aeroplano: o cara é uma das figuras mais produtivas, atuantes e generosas da cena independente paulistana. Sempre a mil, voa de sua banda Cérebro Eletrônico para o grupo Jumbo Elektro, participando de discos de amigos, como Apollo 9, Leo Cavalcanti, Tulipa Ruiz e Peri Pane. Inventivo, inquieto, traz sons particulares em seus trabalhos, sendo conhecido por usar instrumentos inusitados, como apitos e brinquedos de criança. Se tivesse produzindo nos anos tropicalistas, seria uma espécie de Tom Zé, sempre experimentando novas possibilidades musicais, alargando as fronteiras estéticas da música. Além de autor da faixa 5 (“Mar Morro”), participa no CD da Trupe com sua aura alto-astral na faixa 10 (“Splix”): é dele a fala “Tímido, bicho?! Pensa que é o quê?!”.
- Peri Pane: falando em figura, Peri é outro cara impagável. Seu trabalho à frente da banda Odegrau (o disco da banda, O Fantasma da Light, foi lançado em 2009) merece ser ouvido com atenção, passeando por gêneros, por exemplo, como o rock e o samba, com ares mangue beat. Peri é, além de músico criativo, um letrista muito interessante: bom cronista, suas letras em geral são narrativas pontuadas por um humor debochado e muito crítico. Vale para ele, também, aquela máxima do teatro de Plauto, para quem o riso corrige os costumes. Em seu trabalho, a subversão se dá pelo riso. Nessa perspectiva, se fôssemos traçar uma espécie de árvore genealógica para situá-lo, inevitável pensar em duas bandas que marcaram o final da década de 70 na cena conhecida como Lira Paulistana: a rapaziada do Língua de Trapo (Peri parece parente de Laerte Sarrumor) e do Premê (O Premeditando o Breque de Wandi Dorattioto). Além de autor da faixa 10 (“Splix”), melhor tradução para o que dissemos, também participa nos vocais.
- Além desses tripulantes da trip da Trupe, há também participações especialíssimas de Simone Soul (uma das maiores percussionistas do país, uma das maravilhosas Orquídeas que acompanhavam Itamar Assumpção), tocando cowbells, campanas e tubas na faixa 1 (“No Escuro”) e congas na faixa 10 (“Splix”); de Lu Horta e Marcello Pretto (que trazem a versatilidade dos sons corporais aprendida em anos de trabalho com os Barbatuques), fazendo percussão corporal sampleada na faixa 11 (“Até chegar no mar”), além de que Lu também canta na faixa 3 (“Se eu for parar”); e, por fim, de Gustavo Ruiz (figura fundamental nesta jornada, atuando como produtor do disco. Seu trabalho com Tulipa Ruiz já chamava nossa atenção, atraindo nosso olhares e ouvidos), tocando stylophone na faixa 2 e na 5, na qual toca também teclado.
- Outra tripulante fundamental nesta jornada é a produtora executiva Sil Ramalhete, que tem levado o som da Trupe para muitos espaços, somando esforços para a projeção da rapaziada.
Por fim, a bordo da Nave Manha, claro, a própria Trupe. Quais são os timoneiros desta navilouca? Vamos ver a formação desta “big band” tupiniquim:
- Gustavo Galo: vocal.
- Ciça Góes, Julia Valiengo, Leila Pereira: vocais (Ciça canta solo na faixa 3, “Se eu for parar”; Julia na faixa 4, “Apesar”).
- Marcos Grinspum Ferraz “Mumu”, Rayraí Galvão, Remi Chatain: naipe de metais (Mumu toca sax tenor; Rayraí, clarinete e trompete; Remi, sax alto, sax barítono e flauta).
- Gustavo Cabelo, Tomás Bastos, Felipe Botelho: cordas (Cabelo toca violão, guitarra e cavaquinho; Bastos, guitarra; Botelho, baixo).
- Pedro Gongom Manesco, Rafinha Werblowsky e Guto Nogueira: Gongom toca bateria, além de cantar solo na faixa 6 (“Box 11”); Rafinha faz percussão, mas toca bateria na faixa 6; Guto também faz percussão, mas canta com Julia na faixa 7 (“Na garrafa”).
NAVE MANHA: NAVE & NAVIO
Esse papo todo de nave, navio, mar, espaço, evoca agora a poeta Ana Cristina César e seu lindo “Recuperação da adolescência”: é sempre mais difícil/ ancorar um navio no espaço. A última cena do disco colabora para o clima difuso, a atmosfera ambígua: será que se trata de um navio viajando no espaço ou de uma nave aterrissando no mar? Ampliando o texto de Ana C., como num espelho invertido de Alice neste país das maravilhas sonoras, podemos dizer que é tão difícil ancorar um navio no espaço quanto fazer uma nave chegar ao mar (como no título da canção 11). E a trupe, enfim, desembarca na última faixa: Terra à vista! Os alquimistas estão chegando…
Bem a calhar a lembrança de Jorge Bem em sua Tábua de Esmeraldas, que prepara a chegada dos alquimistas com efeitos sonoros que lembram uma nave… Isso para não esquecer, como dissemos, que o disco é espacial também por conta dos barulhinhos de sons espaciais que contém. A guitarra distorcida no final sugere o som de uma nave espacial, um disco voador. Em princípio, fica a dúvida: os tripulantes da trupe estão em trip de ida ou de volta? São daqui ou de outro planeta? Como a canção final se chama Até chegar no mar e o último som ouvido é o das ondas batendo, parece que são seres de outras galáxias chegando aportando por aqui depois de sua magical mystery tour.
Esse “the end” com barulhos do mar evoca – marulhos da memória – também a viagem do eterno guru mutante Arnaldo Baptista em seu romance Rebelde entre os rebeldes: na batalha final, uma nave transformada num grande teclado (ou seria um grande teclado transformado numa nave?) faz tudo se reduzir (ou se ampliar?) em uma grande sinfonia astral!!! Como diria Leminski, ovidianamente, metaformoses… E tudo acaba em música! Acaba em mar! Ou melhor: em música do mar (repare de novo que os últimos sons ouvidos nas ondas da canção são as ondas do mar)!
Essa união do som espacial com o som natural (das ondas do mar!) lembra Lenine, em seu trabalho O dia em que faremos contato. O CD começa com um barulho de conexão com a internet (no início era assim que funcionava) misturado com um barulho de rede se balançando ao vento: a rede e a rede, a da tecnologia e a das ancestrais rendeiras (como a nave e a nave da Trupe: navio e espaçonave). O título, tudo a ver com a “nave” da Trupe, sugere a ponte entre as diferentes eras, as diferentes esferas: o antigo e o novo, o terreno e o espacial, a tradição e a modernidade. Como a floresta e a escola de Oswald de Andrade. Como a parabólica no mangue da Nação Zumbi.
Nessa espiral de vozes, nessa ciranda intertextual, lembro-me de uma das canções que escrevi com Gustavo Galo, que me parece, num rápido insight, guardar embrionariamente essa história toda de naves, navios, mares e outros espaços. Ela se chama “Ela chama” (publiquei no meu livro Toque de letra, em 2009): eu vou de avião/ de bonde/ de trem/ de caminhão/ de moto/ ou patins/ sentado/ num tapete voador/ de ultraleve/ ou trator/ de nave/ ou navio/ a cavalo/ ou a camelo/ a pé/ de bicicleta/ num míssil/ eu vou te encontrar/ não importa a direção/ sigo sem rumo/ sem seta/ meus ais/ vagam tontos/ por todos os pontos/ cardeais/ meu porto/ é tua cama/ teu corpo/ minha chama/ que me chama/ me chama/ como imã/ como rima/ como sina/ nosso amor/ nosso cais.
Note que o texto é inicialmente uma enumeração de meios de locomoção, garantindo os deslocamentos espaciais, os obstáculos físicos que se interpõem entre sujeito e objeto, para que então seja possível superar as distâncias e garantir a conjunção, o encontro dos sujeitos apaixonados. Do avião ao camelo, do tapete voador ao cavalo, novamente o trabalho com termos polares, na equação binária: de um lado, o tecnológico; de outro, o natural. E nesta espécie de multipentatlo, o sujeito vai trocando de transporte, usando até “nave” ou “navio”, como que preparando o conceito de Nave Manha. Os espaços também vão se sucedendo, multiplicando-se, como se a sugerir que o sujeito passional ocupa todos os possíveis da narrativa amorosa: não à toa seus “ais vagam tontos por todos os pontos cardeais”, até chegar ao cais…
MAR À VISTA!
Chegamos ao fim da viagem (Será mesmo? E tem fim esta viagem?). Enfim, depois de tanto explique-se, de tantos rodeios do intelecto, tentando pegar com as mãos da razão o indizível do coração, o inominável da canção (o “âmago do ômega” do coração da canção), fica o essencial, que é sempre o mais sábio, o mais simples. Sem segredo, sem medo: afinal, como canta a Trupe, o som é só uma onda/ curta!
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Carvalho (Paulo César de Carvalho) é vocalista e letrista da banda Os Babilaques. Nasceu em São Paulo em 22 de abril de 1970. É bacharel em Direito e mestre em Lingüística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares e de cursos preparatórios para concursos públicos, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo Literatura, Arte & Informação, Livro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado?. Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Lançou em 2009 o livro de poemas Toque de Letra (Editora Nhambiquara). É articulista do site literário Musa Rara. Tem parcerias musicais com Tatá Aeroplano, Juliano Gauche, Peri Pane, Pélico, Trupe Chá de Boldo, Reynaldo Bessa, Bruno Roberti, entre outros. E-mail: carvalho70@gmail.com
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