Na estrada do amor


……………Na estrada do amor (ou: À guisa de prefácio)

 

O amor nunca saiu de moda. Bem, ele entrou em moda, propriamente, a partir do Romantismo. Décadas e décadas após a mulher liberta-se da dependência econômica do marido, alcança a liberdade financeira e, a partir daí, suas demais conquistas advêm como consequência inevitável.  De fato a mulher só pôde amar – e com isto levou o homem a fazê-lo também – após deixar de ser dependente de um marido provedor.

Liberta, e vivendo às próprias custas, ela pôde escolher.  E escolheu amar a quem bem entendesse e quisesse. De objeto desejado passou a ser sujeito desejante. Era  a guinada necessária para o nascimento do verdadeiro amor.

Hoje, nos lembra Octavio Paz que “a união amorosa é uma das experiências mais altas do homem e nela o homem toca as vertentes do ser: a morte e a vida, a noite e o dia”.  Não é outra coisa que vamos encontrar em Sob o amor, livro que o leitor tem em mãos. A perda da amada – dominante neste volume – e a exaltação de seu amor quando vivido em plenitude, ou desejado ardentemente, são a marca d´ água de cada poema.

Digo marca d’ água porque, o que sobressai, antes de mais nada, é o amor pela poesia, por sua linguagem, por sua construção, por seu modo de dizer-se. Parafraseando Caetano podemos afirmar que em Antônio Mariano a poesia é só pra dizer, e diz. O amor que perpassa todos os poemas é o amor pelo fazer poético, pelo deleite de escrever o poema, pelo gozo da linguagem curtida como se fora uma prática do kama-sutra.

O poeta, sempre um fingidor, simula ações e situações de amor (vividas no passado ou almejadas para o presente) pois o tempo é outra de suas vertentes mais profícuas. O tempo, aliado à História, demarca um contexto para o uso, por Antônio Mariano, de diferentes modos de linguagem: poema livre, soneto, terceto, haicai, quadra – e até um poema que se vale de recursos da poesia visual.

O tempo do amor e o tempo da linguagem denunciam um poeta contemporâneo que vê na amada a fêmea desejada e, ao mesmo tempo, a companheira como sua aliada nas atividades do cotidiano.

Quando ama, o eu-lírico entrega-se plenamente ao desconhecido, sem medo, sem temer os riscos, sem ressalvas. Sua disponibilidade para o amor é incondicional: ele é um valente, desafiando até as forças da natureza: “sob a chuva / apaguei os faróis / na estrada do amor”. Seu amor tem uma trajetória, um caminho, um projeto a realizar.

E isto ele concretiza no corpo da poesia: “nem todo amante / deverá ser poeta”. Um alerta ao leitor? Não. Certamente, não. Perpassa aí uma fina ironia para com os poetas e os amantes pois, a seguir, ele recomenda: “convém ser profeta”, usando e abusando do anagrama, ou seja, da palavra dentro da palavra. No caso, dentro da palavra profeta há a palavra poeta. PrOfETA.

Desdiz para dizer. A palavra “escondida” dentro de outra palavra. O corpo posto no corpo – linguagem, linguagens. Semiótica dos desejos. Semiótica de diferentes códigos interagindo em cópula. A vida é uma conjunção de signos.

Como se não bastasse, ele prossegue: “e forjar o inusitado instante de desrazão”. Amante: poeta, profeta. Aquele que faz a linguagem no corpo da amada, seja ela a poesia, a profecia ou a própria mulher: “dois amantes enchem sozinhos um quarto”.

Fêmea, aquela que abre a poesia para o erotismo: “devoto, / eu vos elejo, / Ceres, / bendita entre as fêmeas, / razão da existência / de minha fome”. Comer e deliciar-se. Numa oração de corpos em cópula; “a senhora é pra comer / rezando”.

O sagrado é apenas um recurso de enfatizar a grandeza do profano. Da carne profana. Mas real. Palpável. Palatável. Não há Deus na poesia de Antônio Mariano: há a paródia das práticas religiosas, tudo em nome da santa carne: “cada um dos teus seios // prefiro-os / extensão exata / de minha boca”. O “seio bom” kleiniano traz à tona a criança que habita todo amante, com suas brincadeiras, seus jogos, sua terminologia própria para partes do corpo e, em especial, para nomear a amante.

O ardor de uma paixão não dissimulada escreve com todas as letras um erotismo nu, que desperta o desejo: “Nua és um comício. // Grandiloquente vagina, / promessas tão lícitas”.  Nem a dor da perda, que leva à não-vida, dissuade seus desejos: “Sem você, ingrata, / (…) / viver é mais que um engulho, / novelinhos de agonia. // A tentativa inevitável / de morder / os uivos dos amantes em coito: / desvida”.

A partir do mote da perda, o erotismo dilui-se cedendo lugar para o amor. E aí, o amor é, por exemplo, submissão:  “Um dia ela volta / me pedindo desculpas / e o meu coração por hábito // não luta”. Para, depois de aceitá-la, acordar, num sábado, com “a faca no peito”.

Submissão e masoquismo. O amor começa a tingir-se: romântico. Diria um neorromantismo à la contemporaneidade. A amada ideal é “ingrata / e seu corpo inacessível”. “Também nós, Maria e Antônio, / somos inacessíveis / como Deus ao próprio nome / e a substância aos seres vivos”. É sempre o mesmo Platão na cabeça! Mundo das Ideias, substância como reflexo do mundo sensível e do mundo inteligível. Nada que se vê, que se toca, é verdadeiro. Tudo é reflexo: “pênis sem vagina / ou fiel sem templo”. Amamos e continuamos fantasiando. O Romantismo trouxe o mote. Freud explica. A poesia revela. Nada mais nos interessa.

A incompatibilidade entre os amantes vai às raias do que há de mais primitivo no amado: “Não te amo, / diz o meu pomo / de adão”. E mais, a linguagem da poesia é o transporte, à distância, desta refratária interação: “É preciso amar, / o poeta proclama / e define o seu ofício. // Mas isso só à distância”.

Por vezes, como vimos, o amor impossível transmuda-se em sadismo: “Olho Marina que é linda / e me põe em alvoroço. // Possuí-la / eu não posso. // Ah submarina sede / não menos linda / de torcer-lhe o pescoço”. O sadismo é outra forma de amor. Contrariamente ao que canta o sambista, o eu-lírico rima amor e dor.

Por fim, o próprio eu-lírico remói-se em autocompaixão lendária e interplanetária: “dor que transcende / a essência dos mitos”. Ou: “Minha alma ficou por Terra; / a dela, depois de Vênus”.

No entanto, o amor é maior que os pensamentos, as reflexões, as filosofias. Maior que ao afazeres cotidianos: “Quando se vai amar, / as teorias fora do quarto”.

A poesia de Antônio Mariano tem uma dicção particular na cena poética brasileira contemporânea: ele sabe associar um certo coloquialismo a uma rítmica que foge dos modelos mitificados/imitados/canonizados por grande parte dos poetas de sua geração, que se pautam, direta ou indiretamente, por nomes como Drummond, Bandeira, Cabral, Oswald, Leminski, Mário Quintana, Carlos Nejar, Adélia Prado, Ferreira Gullar, entre outros.

A poesia de Antônio Mariano é limítrofe da prosa – e da prosa de distancia pelo ritmo, pela construção singular das imagens, pela analógica de um discurso que seduz o leitor num compasso de serenidade zen. No entanto, sub-repticiamente o (des)compasso da prosa subjaz em cada poema, imprimindo um tom de conversa aos poemas.

Sua poética é dialogada, ainda que alicerçada sobre as bases de um eu que nunca não para de falar. Todavia, sua fala não é monolítica – antes, traz consigo múltiplas vozes, e por isto mesmo encampa e incorpora a do leitor.

Daí que a cumplicidade com a poesia de Antônio Mariano é a resultante imediata e sensível por parte de todo leitor de poesia. E a exaltação do amor, em sua essência lírica ou erótica, como continua observando Octavio Paz, “significa uma provocação, um desafio ao mundo moderno, pois é algo que escapa à análise e que constitui uma exceção inclassificável”.

Por isto mesmo o melhor a fazer-se agora é mergulhar profundamente na amorosidade deste eu-lírico que sabe amar o amor. E deste poeta que, de sobra, ama a linguagem da poesia. Tudo isto encanta. Seduz. Ganha a cumplicidade do leitor que sabe, que sente que amar na contemporaneidade é um atrevimento, uma ousadia pra lá de Marrakesh. Mas talvez seja a única forma de fazer a vida valer a pena. Ser beleza pura.

Sob o amor é um livro que desafia as atitudes do homem que aderiu aos comportamentos líquidos, já que hasteia a bandeira do amor e da poesia, mesmo sabendo que nenhum dos dois tem valor: foram trocados pelas cotações das mercadorias facilmente transitáveis no mundo dos negócios e das negociações. Ou como bem anota o Boca do Inferno, “A mi foi me trocando e tem trocado / Tanto negócio e tanto negociante”.

Não importa, Sob o amor comprova: em Antônio Mariano a poesia é um imperativo lírico.

É a hora!

 

 

 

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Amador Ribeiro Neto é poeta, ensaísta e professor da UFPB. Publicou,  entre outros títulos, Barrocidade (Landy Editora, 2003), e Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (Orobó Edições, 2010), como organizador e coautor.

 




Comentários (1 comentário)

  1. Wilson Costa Wilson, Nem todo poeta será um amante
    1 maio, 2016 as 21:58

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