Na estrada de Damasco
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Não canto porque não quero
nem filhos de algo, nem clero.
Poeta, filho do vento,
invento os meus pergaminhos.
Que fiquem, por testamento,
ao pó de incertos caminhos.
Poeta sou, panteísta.
Acima de mim permito
apenas quem, alquimista,
poemas faz de infinito.
Poeta sou, neste chão!
E canto como quem lavra
uma promessa de pão
suado em cada palavra…
In “Da humana condição”, Março de 2009.
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NA ESTRADA DE DAMASCO
(Colectânea em construção)
Pentacríptico
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1.
No princípio, o verbo quis,
em conjugações obscuras,
ser grão e depois raiz
do chão projectando alturas…
Desnudo, no paraíso,
o par de divina essência
cantava, no tom preciso,
o elogio da indolência.
Do seu cume imperativo
e projectando o perfil
pelas lonjuras de anil,
deus olhava o par cativo.
E, certo da tentação,
provocou a transgressão.
2.
Expulso do paraíso
no primeiro alvorecer,
era ainda um improviso
a vida que houve de ser.
Adão pesou, pensativo,
o gesto da divindade
e a condição de ex-cativo,
encontrada a liberdade.
E naquela antemanhã
que mal podemos supor,
percebeu por que a maçã
tinha um estranho sabor:
o sabor da inteligência
acordando a consciência.
3.
Pródiga era a natureza!
Tudo dava, hospitaleira…
Viver era uma beleza,
sem transtorno nem canseira.
Sentia às vezes saudade
do paraíso perdido…
Mas fora a sua vontade:
assim tinha decidido.
Lá, tinha que obedecer,
ser aplicado no estudo
e ouvir e não rebater…
A liberdade era assim:
não se podia ter tudo
dentro ou fora do jardim…
4.
Sem armas e sem abrigos,
um ninho nos ramos altos,
prevenia os sobressaltos
dos mais diversos perigos.
Nessa arte da construção
imitou os primos símios,
que eram astutos e exímios,
arquitectos de eleição.
Gozando a paz absoluta,
descobriu ser bom pensar:
e concluiu que uma gruta
era o lar a conquistar,
por ser melhor tal intento
do que viver ao relento.
5.
Um dia, o par decidiu
o que há de mais natural:
Eva emprenhou e pariu
o pecado original…
E do seu cálido ninho,
recendendo a puridade,
foi descoberto o caminho
terrestre da humanidade.
E tudo assim sem alarde,
nem hosanas nem prebendas…
Não foi cedo nem foi tarde.
Depois vieram as lendas,
vestindo de cor e rito
o simbolismo do mito.
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José-Augusto de Carvalho nasceu na vila rural de Viana do Alentejo. Tem vários livros publicados, entre eles, Arestas vivas, 1980; Sortilégio, 1986; Tempos do verbo, 1990; Vivo e desnudo, 1996; Nós poesia, 2002 (com a poeta gaúcha Lizete Abrahão); A instante nudez, 2005; Da humana condição, 2009. E-mail: do.verbo@gmail. com
26 novembro, 2017 as 11:52
10 setembro, 2020 as 16:00