Mundos paralelos
A maioria dos anglófonos expressam a primeira pessoa do singular em letra maiúscula sem saber porquê. O “I” é uma poderosa ferramenta de afirmação e serve como centro de gravidade do argumento, porém não é uma escolha. Eu desafio a qualquer um escrever na forma minúscula e não ser acusado de desgraçar a língua de Shakespeare. Mas a internet muda esse terreno de forma voraz. Mais um lembrete que ninguém fala a língua do poeta há séculos.
Pouco a pouco estamos também nos livrando das maiúsculas no início das frases, pontuação, ou até mesmo soletração de acordo com as autoridades linguísticas. Obviamente essas transformações se parecem apenas com a preguiça da nova e pior geração que existiu no planeta; isso na visão dos acadêmicos e profissionais da educação que se esqueceram que um dia eles também vilipendiaram o idioma no passado.
A escritora Paula Gomes explora essa tensão em seu romance Ninguém Morre Sem Ser Anunciado em mais de uma maneira quando apresenta os desdobramentos que essas disputas linguísticas podem fazer com nossa identidade e como nos relacionamos com os outros, e o quanto isso cria mundos paralelos em nossa realidade.
O romance é inicialmente publicado no site Medium em forma serializada. Gomes se aproveita da velocidade dos meios digitais para pular todas as fases esperadas da edição de um livro. Por que somos reféns das correções ortográficas? Será que existe uma organização textual sagrada que a edição tenta extrair do éter? O que vende um livro, afinal? Damos esses passos como certos porque achamos que eles se traduzem em retorno monetário.
Essa tensão toma forma em Ninguém Morre Sem Ser Anunciado em duas vozes. Temos Ceci, a personagem que seguimos ao longo da narrativa, e a narradora, quem intercede em certos pontos da trama pelo contexto. Ceci e a narradora intercalam-se na história de maneira desigual. Ceci não é ciente da existência da narradora e continua a viver seus últimos momentos tentando se tornar uma síndica. A narradora parece estar preocupada em manter um certo decoro esperado por romances em geral. Ceci escreve sem as regras linguísticas esperadas. A narradora compensa sendo a mais clara possível sobre como ler a história. Ceci explora os novos meios de criar histórias, para além do imperialismo linguístico ou das amarras editoriais. A narradora demonstra a ansiedade daqueles que se aventuram em escrever como profissão, como labuta.
A tensão entre arte e mercado não é nova. A novidade é que a internet introduziu maneiras de distribuir arte sem depender do mercado. Não que o mercado tenha se eximido de cooptar os novos meios de distribuição, mas haverá artistas que dispensarão o dinheiro pela liberdade de produzir como desejam. Ninguém Morre Sem Ser Anunciado não faz essa escolha e tenta explorar ambos, o mercado e a auto criação.
Esse sentimento autocriador é depositado em Ceci. No mundo em que vive, todas as pessoas sabem o dia que morrerão por meio de um website alienígena. A providência do website alienígena não é importante, mas o dia e a procedência dessa morte o são. Ceci morrerá em 2 anos por causa de uma machadada violenta. É um fim que deixaria qualquer pessoa aflita, assim como sua mãe e tia se afligem tentando fazer Ceci existir com um capacete, mas para ela é uma limitação natural. Sua vida seria sua arte.
A narradora está fora da vida de Ceci, portanto o fim da vida não é o fim da narrativa. A existência da narradora se pauta nas expectativas da audiência, na forma do texto, e alguma aliança com os fatos. Porém, mesmo seguindo todos esses rituais e formalidades, a resolução da trama não estaria garantida. Algo que a narradora nunca vai saber, porque Ceci não permite que ela tome esse caminho.
Essa tensão é claramente ilustrada no capítulo 34, quando Ceci tenta convencer Ana, a documentarista interessada em pessoas que irão morrer violentamente e que se torna um dos relacionamentos de Ceci, sobre uma imitação da senhora que teve sua primeira experiência como síndica após um curso que fez. Essa cena é repetida duas vezes. Primeiro com a narradora, em seguida com a Ceci. A narradora descreve o diálogo como se ele transcorre sem qualquer ideia do que as personagens estão pensando. Ceci explora o mundo interior de seus interlocutores, e o horizonte de possibilidades para além da troca de diálogos. Essa distinção se traduz no desdobramento da narrativa e dos outros personagens.
Cada um dos personagens é a expressão de uma realidade com expectativas que Ceci ignora em favor de seu ímpeto criador. Davi é uma extensão da narradora. Ele é o arquétipo daqueles que se pautam pelas regras, não pela vontade de seguir regras mas pelo tédio das consequências. Ceci pensa sobre Ana como ela pensa sobre documentários. “A pessoa está assistindo um documentário justamente pra não ter o trabalho de checar os fatos” (p. 59). Bruno, o outro relacionamento de Ceci, esperava um mundo sem complicações. Seu Fernando, o zelador do prédio da Gisele, tem uma única solução para todos os problemas, mesmo os que não existem. Gisele é a experiência que Ceci planeja ignorar. E sua mãe e tia, a mãe de todas as mães que Ceci pretende se distanciar, assim como Édipo.
O espírito autocriador de Ceci foge desses fantasmas do único jeito que é possível. Não é enfrentando as quimeras da vida, assim como tentou Marco Aurélio em suas meditações, nem mesmo como Montaigne deixando tais quimeras se multiplicarem na mente em ócio. Ceci cria novas quimeras completamente diferentes daquelas que aparecem. E a quimera que ela decidiu criar foi o trabalho como síndica.
Geralmente não pensamos em síndicos como sendo um trabalho. Acredito que a maioria de nós não pensa em síndicos a não ser que tenhamos problemas com os vizinhos. Mas Ceci enxerga na atividade um meio de organizar o mundo como ela quer organizar antes de morrer. O respeito pelo medo é o que ela diz querer alcançar antes de morrer, mas essa percepção é da Ceci e diz mais sobre ela do que sobre ser um síndico.
A criação para Ceci vem do medo e das maneiras que ela decide suplantá-lo. Usar a gramática esperada não diminui o medo, apenas nos coloca em submissão. Usar o capacete e talvez evitar a morte é viver no medo. Continuar trabalhando em sua carreira anterior, como fotógrafa, é ter medo do futuro certo. O que a faz lidar com o medo é construir um mundo paralelo com a realidade da narradora.
Você pode encontrar “Ninguém Morre Sem Ser Anunciado,” de Paula Gomes, no site Amazon.
Jean Marcus é escritor e professor e pode ser encontrado em @jeanmarcus. Também é uma metade do podcast Heterônimos de diálogos ensaísticos com pseudônimo Lucrécio Pipoqueiro.
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