Luz sobre a Crônica
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Domingou, como diz um poema de Daniela Galdino. E após uma semana intensa, de muito trabalho e alguns percalços, me dedico a colocar a leitura em dia, a começar pelos meus cronistas preferidos. Nada melhor, então, que estar acomodado à sombra de uma imensa e bela amendoeira. Em uma das mãos, jornais de sábado e domingo, na outra, Luz sobre a memória, um livro exemplar de crônicas de Antônio Lopes, que é um exímio observador da condição humana e dos costumes do povo brasileiro.
As crônicas de Lopes, além de altas doses de lirismo, são enfeixadas por fatos curiosos acontecidos na sua pequena Buerarema, cidadezinha encravada no seio da região cacaueira da Bahia. No texto que abre o livro, o autor mergulha fundo na memória para discorrer a respeito da sua iniciação nos pequenos prazeres, como as cantigas de roda e a descoberta do circo. Em “A farinha é nossa” lembra (e eu atesto) que Buerarema tem tradição de produzira melhor farinha que se pode experimentar, que conheceu ali (imaginem só) um cidadão que venceria qualquer certame de degustação de farinha se tal certame existisse. “No fim, árvore”, que fecha o volume, é uma pequena obra prima do gênero, onde o autor descortina importante decisão, a de não querer mais ser cremado e ter a cinzas lançadas ao vento ou no Poço da Pedra, que abre mão também de adubar o que viria a ser um frondoso jequitibá, e que se conformaria em servir como adubo para uma árvore qualquer, pois se tais restos não forem úteis ao caminhante do meio-dia, com seu suor, cansaço e sandálias empoeiradas, servirão pelo menos às andorinhas da tarde, que bateram asas durante o dia, em penoso processo de migração e busca.
A crônica sobreviveu e ganhou o status de gênero literário graças àspáginas dos jornais, sempre se colocando a serviço do estabelecimento da dimensão das coisas, dos fatos e do humano. Embora isso, muitos cronistas sobrevivem nos livros com mais vigor, inclusive com maior universalidade, que grandes romancistas, poetas ou dramaturgos. Bom exemplo é o infindo Rubem Braga. Mas não apenas ele. As de Antônio Lopes, a quem Marcos Santarrita inclui de maneira justíssima no rol dos grandes cultores do gênero no Brasil, apenas tem chegado aos leitores de hoje por conta da reunião em livros. Mas não apenas por isso, senão porque, sobretudo, andam mudando e ampliando os meios em que se veiculam e a que se vincula a literatura. Desse modo, uma crônica pode sobreviver por muito mais tempo que o próprio jornal em que fora publicada originalmente.
Mas não é porque se encontram publicadas em livros que as crônicas de Antônio Lopes permanecem entre nós. Isso ocorre, sobretudo, por conta do frescor de uma escrita que se aproxima com o que há de mais simples no modo de ser do nosso tempo, pois é quando carrega no aspecto aparentemente despreocupado, como quem escreve sem maior consequência, muito embora com mergulhos profundos na memória e no significado dos atos e sentimentos humanos, que seus escritos saltam da página.
Bom exemplo para o que afirmamos é “Flamengo joga amanhã”, em que a pretexto de ressaltar alguns aspectos do futebol no sul da Bahia, o autor prega a recuperação das praças esportivas da região como uma maneira de devolver à população a autoestima perdida para as pragas do cacau. Justificando que melhor que correr atrás do prejuízo é correr atrás da bola, e que, dando bicudas na bola, quem sabe damos também uma bicuda na corrupção, na rapinagem, na impunidade, na incompetência e mau-caratismo. Esta éuma boa maneira de evidenciar como os cronistas, através de uma ilusória conversa mole, dizem coisas sérias e comprometidas.
Já disse em outro texto, mas não custa reforçar, que muito embora a crônica seja um gênero híbrido, aberto a todo tipo de comentário, podendo abarcar do memorialismo às considerações filosóficas, é o aspecto ficcional (que aproxima a crônica de verdadeiros contos) que lhe dá a qualidade artística digna dos grandes mestres. E nisso Antônio Lopes é estupendo, como demonstra em “Traíra metida a robalo”, em que expõe as peripécias de um pescador numa ferrenha queda de braço com uma traíra da qual, fora rabo, cabeça e a porção que foi parar na mesa de jantar, restara ainda pra lá de cinco quilos. Se perguntado sobre os exageros do fato narrado, o autor afirma que descreveu tudo como lhe chegara aos ouvidos, e que nisso não há exagero algum uma vez que José Vitalino, o tal pescador, já é por si só um exagerado.
Um caso a parte na obra de Antônio Lopes são os títulos que dá às suas crônicas. E para quem não sabe, vai um aviso: nomear uma obra literária muitas vezes é a parte mais inglória do ato de escrever, afinal, o título deve, em poucas palavras, iluminar, mas não descortinar o texto, deve ser como toda mulher elegante, que de seu corpo mostra apenas e tão somente o suficiente para seduzir. Aprecie, caro leitor, uma breve amostra: “Quando eu me chamei saudade”, “Joãozinho calça frouxa”, “De fifó em punho”. E lá vai. Tudo isso reunido em um livro com um título mais saboroso ainda.
Enfim, podemos afirmar (parafraseando o título da obra aqui comentada) que a crônica de Antônio Lopes é uma luz sobre a crônica, como é a prosa de Guimarães Rosa para o romance ou os versos de Carlos Drummond de Andrade para a poesia, pois é enorme em sua leveza, encantamento e profundidade, fruto dos vividos, sucedidos, ouvidos, inventados, achados e perdidos nas reminiscências do escritor.
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Gustavo Felicíssimo é escritor, editor da Mondrongo Livros (www.mondrongo.com.br). Autor de alguns livros, entre eles “Blues para Marília”. E-mail: gfpoeta@hotmail.com

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