Literatura e Gênero


O BRASIL DA DIVERSIDADE E DESEJO DE ANTÔNIO DE PÁDUA

 

Tal Brazil, Queer Romance, romance/livro de contos do escritor Antônio de Pádua, é um novo olhar sobre a narrativa curta em nosso país, pelo viés da diversidade sexual ou Literatura queer ou Gay, como queiram os leitores. A obra aproxima-se das peculiaridades dos transgêneros, gays, lésbicas, pelo recorte intercultural de gênero, retratando, de maneira irreverente, sagaz e pouco ortodoxa personagens de nossa história oficial como Padre Antônio Vieira, Tomaz Antônio Gonzaga ou totalmente literários, como Marília de Dirceu, mas como transexual, numa tentativa de dissipar preconceitos e dar voz a grupos marginalizados de nossa sociedade por conta de suas opções sexuais. Uma beata travesti, um padre reprimido e dado à magia negra, uma negra lésbica, um prisioneiro gay e seu amante advogado, uma negra chocadeira que manifesta preferências de sexo anal suspeitas são personagens que criam um ambiente de ironia e criatividade, peculiares e instigantes, prendendo o leitor do início ao fim do livro. Através dessa irreverência literária, o autor consegue estabelecer, entre ele e o leitor, uma verdadeira mediação cultural.

A mediação cultural dá-se primeiramente pelo próprio ato de interpretação. Na literatura, um livro, por exemplo, realiza a mediação (torna-se meio) entre o leitor e a fruição literária. Essa se estabelece, claro, perante similaridades com a realidade (verossimilhança), que vai criar os traços de identificação leitor-texto. Pois sabemos que a Literatura passa por alguns processos: a criação, a mediação, a fruição e a compreensão. A criação é ato seminal em que escritor e texto se fecundam. A mediação, foco de nossa explanação, elo entre leitor e autor. A fruição é o ato de processamento de informação, quando se dá a verossimilhança e o encantamento. O prazer de ler aí se manifesta, por identificação leitor-autor através do texto. A compreensão são as reflexões, o que resulta desse ato complexo de interpretação. É através disso que o leitor vai também ressignificar a obra literária: através da releitura baseada em sua experiência de toda leitura e história pessoal.

A mediação cultural, vista desse modo, leva a uma profunda reflexão sobre interpretação e fruição literária. Atualmente passamos por um período de repensar o próprio conceito do que é literário. Respaldada numa tradição de séculos, a academia define o que é ou não literário através de uma lista (cânone). Acontece que algumas correntes mais recentes da Teoria Literária, como os Estudos Culturais (Cultural Studies) e Literaturas Pós-autônomas, questionando noções de ficção e identidade cultural trouxeram nova luz a esse debate.

Ora, o autor cindido, fragmentado, da pós-modernidade, utilizando-se de formatos (suportes) diversos (smartphones, tablets, notebooks) dessacralizou o livro, tornando-o objeto mais próximo do leitor. Por outro lado, ao ter consciência dessa própria transformação, enxergando-se também fragmentado – gay, lésbica, mulher, negro, imigrante, o próprio leitor contribuiu para essa nova interpretação (Hermenêutica). Procura, assim, nessas obras sua face perdida, reprimida, escamoteada. Os Estudos Culturais, preconizando relações de poder e Literatura, torna a obra mais próxima do leitor. Nesse sentido, muito contribuiu o Pós-estruturalismo – sobretudo a Psicanálise do Discurso de Lacan, o feminismo de Judith Butler, a Teoria Queer, teóricos do multiculturalismo e identidades (Glissant, Santiago, Hall) que trouxeram á tona o dilema dos migrantes, dos diaspóricos, dos exilados, não somente do Caribe, da África ou da América Latina, mas em nossos próprios países. Para esses, a Hermenêutica (interpretação da Literatura) soa não só como canto catártico, mas como alerta: “não podemos mais ser esquecidos. Não seremos esquecidos”.

Também depreendemos disso que a compreensão/interpretação da obra pós-moderna mudou. Influenciado por todo esse cabedal de novas teorias culturais, o leitor passa a ter outro olhar sobre a Literatura. Não a vê mais tão sacralizada. Alguns conseguem até enxergar em seus meandros sua própria realidade, seus próprios conflitos. Isso serve para aumentar a empatia ou identificação de muitos que não se enxergavam na Literatura canônica.

Enquadrando-se nessas características estéticas pós-modernas, para realizar a mediação cultural, Pádua dessacraliza, desconstrói, fiel a uma literatura contemporânea, a uma narrativa pós-moderna, que se coloca frontalmente contra o cânone literário, numa espécie de “Reforma Prostestante” às avessas, homoerótica: iconoclastia e bom humor, irreverência são palavas-chaves desse movimento do autor. Seus heróis são anti-heróis, sua linguagem, popular e direta; o enredo nada hermético, havendo uma reapropriação de personagens históricos – os já citados, Antônio Vieira, Gregório de Matos, Tomaz Antônio Gonzaga, que numa licença poética, como que se apresentam gays, homossexuais, “transviados” e pervertidos, no sentido mais etimológico dessas palavras: desviando-se das origens, da raiz, do natural.

É uma grande apologia ao não-normativo, não-oficial, proibido. Uma subversão de bom gosto porque não está de acordo com o status quo, não procura agradar às elites ou aos padrões heteronormativos. O Brasil de Antônio de Pádua, dessa forma, engendra uma mímesis subversiva, ou seja, vai de encontro aos padrões oficiais. Com isso, ao contrário do que se poderia imaginar, não resvala ao vulgar, não foge à literariedade, no sentido de seduzir o leitor, criando uma realidade paralela, mas próxima ao real, respeitando, dessa forma, o pacto leitor-autor, realizando o que chamaríamos aqui de mediação cultural.

Dessa forma, usando como narrador a terceira pessoa, conta histórias de personagens perseguidos, reprimidos, mal-amados, às vezes mal, às vezes bem-sucedidos, utilizando-se de uma linguagem coloquial que beira à informalidade – o que alguns julgariam vulgaridade, com todo juízo moral dessa palavra, de forma que os enredos se desenvolvem quase que naturalmente, sem ranços ou esforços, sem moralismos ou julgamentos, numa abordagem que não chega a ser politicamente correta, mas também não cai em lugares comuns. Assim, na descrição de Antônio Bentes, um de seus personagens,  sobre o pecado da beata travesti, outra personagem, lemos:

[Antônio] Estava em chamas, vir erectus, sedento De um desejo que bem antes mesmo de ter conhecido a beata já sentia em seu corpo, em certas partes que comichavam em momentos críticos, a ponto de se tornar incontrolável aquilo que não entendi, sentia, mas não se explicava; […] que ao se virar para o lado detrás de si[…] o membro da missionária, tão ereto quanto o seu, despejando de si o gozo antecipado pelo muito de desejo tido do outro que lhe servia, enfiando-se na parte traseira daquela freira; […] abriu-se mais do que já aberta estava, ofereceu-se em carne viva, brasa em plenitude, fogo no rabo, e o soldado, já cansado, de muito esperar a porra plantar, largou0se de todo jeito dentro dele e, na medida que ela o acolhia bem no fundo, arrepiando-se de prazer consentido, entoava uma canção que fazia parte do cancioneiro de putaria (SILVA, 2013, P. 29)

E não somente no título do livro percebemos a influência de alguns autores, como Flora Sussekind. Vale salientar também que a intertextualidade, tanto em relação aos contos do livro, quanto em relação a outros escritores tradicionais da Literatura Brasileira, impregna todo o livro, às vezes com citações explícitas dos autores, às vezes com citações de trechos de obras, como nesse em que realiza diálogo com a obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo (conto O desviado encardido):

Dois anos depois, o casal Pombinha e Leônie saíram de casa espontaneamente, alegando estarem ligados demais uma à outra, de forma que precisavam e espaço (SILVA, 2013, p. 105)

Mas a criatividade de Pádua o faz ir além, criando ambientes de interação literária entre os personagens de Azevedo e os próprios, como o referido Albino, travesti lavadeiro, no referido conto, logo depois na mesma página:

Quando retorna do sono, [Albino] encontra, a seu lado, na beirada da cama, João Romão, amásio de Bertoleza, tentando segurar sua mão, afirmando querer ter intimidades com ele em troca da proteção que poderia dar. Albino assustou-se com a ideia, mas não teve tempo de pensar. […] O português deitou-se junto a ele, desceu a calça á medida que lhe crescia o sexo, enfiou-se vagarosamente dentro e por trás de Albino que já parecia esperar aquele momento (SILVA, 2013, p. 105-106).

Essa busca da feminilidade, seja sexual, seja social, como um objetivo permanente e ideal de gênero, permeia praticamente toda a obra de Pádua. Nesse sentido, podemos afirmar que, sem hipocrisia, as mulheres – mesmo lésbicas, de Pádua às vezes são emancipadas, às vezes não, mas sempre aspiram ao bem-estar, à felicidade. Sem dúvida, mesmo despolitizadas, olham para suas questões individuais como prioridades absolutas (TOURAINE, 2007).

Tal exemplo de dessacralização não poderia ser mais feliz do que a que vemos na parte intitulada Do fim de padre Vieira e do arrependimento do poeta, onde Gregório de Matos enxerga pela primeira vez o lado oculto do Padre Vieira, que, praticante de rituais satânicos e sendo devorado por um desejo impronunciável pelo sexo oposto, na figura de Rodrigo, fruto de traumas de infância, nos relata como foi seu suicídio:

Padre Vieira desce a faca e a enterra no coração do homem por quem derrama lágrimas de amor. Oferece-se em ternura, mas a consciência alheia já havia sido admitida nas terras do lado espiritual. Os olhos caídos no além de uma visão talvez cega tornavam o padre, diante da face do homem amado, mais humano, mais gente, mais ele. Invocou com uma língua estranha outros dizeres, tocando com uma das mãos os lábios de Rodrigo, e, ao depois, com suas duas mãos livres e voluntárias do seu desejo suicida, torna-se algoz de si e apunhala-se com a faca, bem dentro do coração, ao que, rapidamente, Gregório de Matos, que a tudo observava sem comentar uma só atitude do padre, quis ajuda-lo […] Padre vieira lançou mão da faca e cortou a si a garganta para que a morte fosse mais rápida […] (SILVA, 2013, p. 55-56)

Trabalhando com recursos da narrativa contemporânea, fugindo a estereótipos literários, usando linguagem irreverente, ousada e popular, Antônio de Pádua entra no rol dos escritores que trabalham magistralmente a questão gay ou de gênero na Literatura Brasileira, a exemplo de Ivana Arruda Leite, Cláudia Tajes e Helena Parente Cunha. Escrevendo sem rodeios ou censuras, Pádua demonstra que tal literatura está bem próxima de nós, em nosso quotidiano, tão humana ou literária quanto qualquer obra.

 

 

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REFERÊNCIAS

AZEVEDO,  Aluísio. O cortiço. 30. ed. São Paulo: Ática, 1997

LEITE, Ivana Arruda. Ao homem que não me quis. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

_____. Resenha Ao homem que não me quis. Blog. Acesso em 07/05/2017.

MAIA, Myrna Agra Maracajá. Obscenidade do abandono: a devastação feminina em

TAJES, Claudia. Dez (quase) amores. Porto alegre: L&PM, 2008.

SILVA, Antônio de Pádua Dias da. Tal Brasil, Queer Romance. Porto Alegre: Escândalo, 2013.

SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Rio de Janeiro: Achimaé, 1984.

TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Tradução de Francisco Morás. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

 

 

 

 

 

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André Cervinskis é jornalista, ensaísta, mestre em Linguística pela UFPB. Produtor cultural, com vários projetos aprovados pelo FUNCULTURA-PE na área de Literatura. Com várias premiações nacionais e internacionais, tem 13 livros publicados em autoria própria e coautoria. Colabora com o site Interpoética e o jornal U-carboreto, ambos de Pernambuco, e o periódico Correio das Artes na Paraíba. Mora em Olinda-PE e teve avós lituanos. E-mail: acervinskis@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Rodrigo Dantas, Grande professor, Antônio! Muito orgulho, nós só temos que agradecer pelo belo trabalho!
    4 dezembro, 2017 as 14:02

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