Kafka e os aforismos de Zürau


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Entre 1918 e 1919, para restabelecer sua saúde, Kafka morou numa pequena aldeia da Boêmia chamada Zürau. Nesse lugar escreveu uma série de aforismos, agora traduzidos no Brasil por Tomaz Amorim Izabel e publicados em simples mas bela edição bilíngue pela Editora Medita, de Campinas.

Numa ótima definição de seu sentido, o tradutor os apresenta: “Trata-se de uma bomba metafísica que espalha, em cada aforismo, uma bolinha densa de chumbo nas mais variadas direções e espectros, algumas mais visíveis e capturáveis, outras nem tanto”. É ainda o tradutor que lembra que Walter Benjamin descreveu as narrativas kafkianas como “contos de fadas para espíritos dialéticos”.

Nesses aforismos não deixa de ser diferente: temos o Kafka provocativo, com um senso de humor cortante, imaginativo, estranho, ainda que sua escrita possa lembrar a crítica de Brecht feita a ele sobre parte de sua obra, marcada por um “obscurantismo conservador” ou por uma misoginia com relação às mulheres, herança do Velho Testamento.

Em se tratando de Kafka, no entanto, seu pensamento pode ir no sentido contrário, com pendor revolucionário, pois ele não foi um escritor comum: demonstrou como o ser humano está aprisionado não somente a uma estrutura social que formata seu modo de pensar, mas também aprisionado ao próprio pensamento, sem que haja necessidade de grades à sua volta.

A seguir, uma seleção dos aforismos desse livro raro de se encontrar porque a edição teve pequena tiragem, como pequena é a editora, kafkianamente escondida pelo mercado editorial concentracionário de hoje.

“De um ponto determinado em diante, não há mais retorno. Esse é o ponto a ser alcançado.”

“Compreender a felicidade de que o chão sobre o qual você está não pode ser maior do que os dois pés que o cobrem.”

“O caminho verdadeiro vai por uma corda que não está estendida no alto, mas bem próxima do chão. Parece ser planejada mais para fazer tropeçar, do que para ser percorrida.”

“Todas as falhas humanas são impaciência, um rompimento prematuro do metódico: um suporte aparente da coisa aparente.”

“Um dos meios de sedução mais eficazes do Mal é o chamado à luta. Ele é como a luta com as mulheres: termina na cama.”

“Um primeiro sinal do conhecimento que começa é o desejo de morrer. Esta vida parece insuportável, uma outra, inalcançável. Deixa-se de se envergonhar por querer morrer; pede-se da cela antiga, que se odeia, para ser trazido para uma nova, a qual se aprenderá a odiar. Um resto de fé colabora com a situação, durante o transporte, por acaso, entrará o senhor pela porta, verificará os presos e dirá: ‘Este vocês não precisam mais encarcerar. Ele vem até mim’.”

“Como uma estrada no outono: mal acabou de ser varrida e já se cobre novamente de folhas secas.”

“Uma gaiola foi procurar um passarinho.”

“Leopardos invadem o templo e bebem até secar os jarros de sacrifício. Isso se repete sempre. Finalmente, é possível prever e isso acaba por tornar-se parte da cerimônia.

“De inimigos verdadeiros flui coragem sem limites até dentro de você.”

“Os mártires não subestimam a carne, eles a deixam ser erguida na cruz. Nisso estão de acordo com seus opositores.”

 

 

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Serviço:

Aforismos de Zürau de Franz Kafka

tradução de Tomaz Amorim Izabel

edição bilíngue

“Muitas sombras dos que já se foram se ocupam somente em lamber as ondas do rio dos mortos, pois ele se origina de nós e tem ainda o gosto salgado dos nossos mares. Com desgosto o rio então resiste, toma um fluxo contrário e lança os mortos de volta à vida. Eles estão, no entanto, felizes, cantam agradecidos e acariciam o indignado.”

R$ 25 + frete

Editora Medita

 

 

 

 

 

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Ademir Demarchi nasceu em Maringá e reside em Santos há 15 anos, onde trabalha como redator. Formado em Letras/Francês, com Mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina (1991) e Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1997), foi editor da revista Babel, de poesia, crítica e tradução, com seis números publicados de 2000 a 2004. É autor de Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (Imprensa Oficial do PR, 2002); Volúpias (poemas, Florianópolis: Editora Semprelo, 1990); Espelhos incessantes (“livro de artista” com poemas do autor e gravuras de Denise Helena Corá, edição dos autores, Santos: 1993; exposto no Museu da Gravura em Curitiba no mesmo ano); Janelas para lugar nenhum (poemas, com linoleogravuras de Edgar Cliquet, edição dos autores, Santos: 1993; lançamento feito em Curitiba, no Museu da Gravura, no mesmo ano). Além desses trabalhos, o autor tem também poemas, artigos e ensaios publicados nos livrosPassagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná18 Poetas Catarinenses – A mais nova geração deles (ed. e org. Fábio Brüggemann, FCC Edições/Editora Semprelo, 1991);Os mortos na sala de jantar (Realejo Livros, 2007) e Passeios na Floresta (Editora Éblis, Porto Alegre, 2008). Publica também em periódicos como Literatura e Sociedade (São Paulo, USP);Medusa (Curitiba); Coyote (São Paulo), Oroboro (Curitiba),  Jornal do Brasil/IdéiasRascunho(Curitiba); Jornal da Biblioteca Pública do ParanáBabel(Santos); Sebastião (São Paulo); Los Rollos del Mar Muerto (Buenos Aires, Argentina) e sites,  entre eles,  as revistas eletrônicas GerminaAgulhaEl Artefacto LiterarioTantoCritério. E-mail: revistababel@uol.com.br




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