Imigração e educação


…………….Discutindo imigração e educação com as crianças

 

Diria que dois livros para crianças apresentam as nossas preocupações atuais, como imigração e educação, aos pequenos: A cruzada das crianças (Pulo do Gato, 2014), do escritor alemão Bertold Brecht (1898 – 1956), e Malala; a menina que queria ir para a escola (Cia. das Letrinhas, 2015), da jornalista Adriana Carranca.

A cruzada das crianças chegou ao Brasil numa edição dedicada especialmente ao público infantojuvenil.  O texto, que integrava originalmente o livro Histórias de almanaque, de 1948, e que não tinha como público-alvo os pequenos, conta os infortúnios de um grupo de crianças polonesas órfãs que, em plena Segunda Guerra Mundial, vagavam em busca de abrigo seguro: “Escapavam às batalhas/ e deixavam a dor pra trás,/ desejavam só descanso/ num país cheio de paz”.

Ainda que o poema não tenha sido escrito para as crianças, ele aborda um tema que, segundo o pensador alemão Theodor Adorno, deveria ser apresentado a elas já na primeira infância. De acordo com Adorno, “a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”. E, ele acrescenta: “na medida em que, conforme os ensinamentos da psicologia profunda, todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância, a educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se concentrar na primeira infância”.

Adorno adverte que Auschwitz está sempre na iminência de se repetir, pois a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório. Em tempos em que imigrantes africanos, sírios etc. fogem de seus países em guerra e encontram a morte em travessias desumanas e ilegais para chegar à Europa, a tese de Adorno se mostra bastante atual, assim como o é também o tema do poema de Brecht: “Buscando a terra da paz,/ sem as bombas estourando,/ atrás de um novo país,/ vai crescendo assim o bando”.

Obviamente a leitura que fazemos do poema não é a mesma feita pelas crianças, mas cabe a nós, adultos, quem sabe introduzir a elas o tema da barbárie a partir dos versos de Brecht. Acredito que os protagonistas mirins do poema ajudarão os pequenos na aproximação com o tema: “um menininho ensinava/ lições de caligrafia./ Na lata velha de um tanque,/ ‘paz’ seu aluno escrevia”.

Há sempre adultos que preferem poupar os pequenos das desventuras do mundo e, no tocante à literatura, preferem aquelas obras mais festivamente edificantes. Obviamente há uma vasta gama de textos que se pode apresentar às crianças, dos festivos aos trágicos e, desde que seja boa literatura, são sempre bem-vindos. Mas, devo concordar com Adorno quando ele afirma que “crianças que não suspeitam nada da crueldade e da dureza da vida acabam por ser particularmente expostas à barbárie depois que deixam de ser protegidas”.

Adorno observa, contudo, que “não é possível mobilizar para o calor humano pais que são, eles próprios, produtos desta sociedade, cujas marcas ostentam”. O pensador alerta ainda que, muitas vezes, “o apelo a dar mais calor humano às crianças é artificial e por isso acaba negando o próprio calor”.

Talvez o poema de Brecht, ao expor as crianças a uma realidade extremamente cruel, as toque fundo e crie nelas uma cicatriz que não as permitirá jamais esquecer da barbárie. O protagonista do poema, aliás, parece não ter podido esquecer dela: “Quando fecho os meus olhos,/ vejo-os perambular,/ vagando de sítio em sítio,/ sem nenhum auxílio achar”.

Em A cruzada das crianças, há estrofes que podem ser entendidas, numa leitura ligeira, como politicamente incorretas: “Esperança e fé sobravam,/ mas faltava-lhes o pão;/ bem fizeram se roubaram/ aos que lhes disseram não”. Não seria Brecht, contudo, se não deixasse o seu leitor diante de uma situação perniciosa sobre a qual se edifica uma crítica, como afirma Roland Barthes, “com vista a fazer cessar a fatalidade da alienação social (ou a crença nessa fatalidade); o que não está bem no mundo (a guerra, a exploração) é remediável: o tempo da cura é concebível”.

As ilustrações do livro são de Carme Solé Vendrell, que acompanha com traços bruscos e com ausência de cor o universo ríspido dos versos brechtianos.

Malala; a menina que queria ir para a escola (Cia. das Letrinhas, 2015), narra a viagem de Adriana Carranca pelo vale do Swat, no Paquistão, onde foi cobrir a história da menina Malala, baleada por um garoto talibã, quando retornava da escola para casa, em outubro de 2012.

É de se esperar que um livro escrito por uma jornalista seja extremamente informativo, e esse realmente o é. Antes de relatar a história de Malala, Carranca contextualiza a história e a cultura da região e dos pashtuns, etnia da qual Malala faz parte. Além disso, termos específicos dessa cultura, quando surgem, são explicados ao pé da página. O livro, ilustrado por Bruna Assis Brasil, traz ainda mapas, fotos do vale do Swat e colagens belíssimas.

Carranca, com muita seriedade, escapa dos lugares-comuns e dos estereótipos culturais ao falar sobre os costumes dos pashtuns. A escritora fala sobre o valor da hospitalidade para esse povo e de sua história de resistência aos conquistadores, que pretendiam tomar suas terras férteis. O leitor fica sabendo também que os pashtuns são excelentes contadores de histórias.

Os pashtuns fazem parte de uma sociedade patriarcal, que, como outras do sul da Ásia e do Paquistão, por exemplo, tem uma relação muito particular com o sexo feminino, que é visto como inferior, a ponto de o nascimento de uma menina não ser festejado e de elas raramente serem registradas, de modo que, oficialmente muitas não existem.

Esse não foi o caso de Malala, filha de um professor, Ziauddin Yousafzai, que lhe transferiu o sobrenome assim que ela nasceu, em 1997. O pai de Malala não fazia distinção entre os filhos, dois meninos, e a única filha. Malala, diferentemente de outras meninas da região, podia se expressar livremente e acompanhava o pai, presidente do Conselho de Paz Global, em eventos, reuniões etc.

Seu pai tinha também consciência da importância da educação de meninos e meninas. Malala nasceu nesse ambiente propício à sua formação educacional. Segundo Carranca, os meninos talibãs (interessante pensar que a palavra talibã, na terra de Malala, significa estudante) não tiveram a mesma sorte.

Muitos talibãs foram tirados de suas famílias ainda pequenos: eram filhos de refugiados que partiram do Afeganistão quando o território foi invadido por soldados soviéticos no final dos anos 1970. As famílias, que viviam em situação de pobreza, doavam as crianças na esperança de elas terem uma vida melhor em escolas ou internatos religiosos; mas, em vez disso, elas eram levadas para campos onde aprendiam a lutar e usar armas.

Por volta de 2007, os talibãs invadiram o vale do Swat e a grande luta que travaram ali, parece-me, foi contra a educação, bem entendido, contra a educação emancipadora, que gera uma consciência crítica a qual repele “posições quietistas”, como afirma Paulo Freire. Malala é fruto dessa educação. Não por acaso, ela possuía, à época, um blog no qual expunha suas opiniões sobre a situação no vale do Swat após a invasão talibã.

Obviamente, para os talibãs, essa consciência inquietante é inadmissível, já que eles não permitem questionamentos. Aliás, essa educação é inadmissível em qualquer sociedade sectária, pois esta não se abre para o diálogo, ou, como afirma Paulo Freire, “não comunica, não faz comunicados. No processo histórico, os sectários comportam-se como inimigos, consideram-se donos da história”.

Lendo a história de Malala, pode-se concluir que não existe arma mais perigosa do que a educação libertadora, que incentiva a curiosidade e a criação e faz do ser humano o sujeito de ação e o dono de seu próprio destino.

Em 2014, Malala recebeu o Prêmio Nobel da Paz. No último dia 12 de julho, ela completou 18 anos e continua lutando pela educação. Inaugurou no Líbano, recentemente, uma escola para meninas sírias refugiadas.

 

 

 

 

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Dirce Waltrick do Amarante é autora de Pequena biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores (Iluminuras). E-mail: dwa@matrix.com.br

 




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