Fios e desafios do anagrama
“A surpresa das sílabas agudas. O instantâneo dos centavos – o tilintar das moedas na pequena lata de chá. A palavra se despe de sons e desperta. Pleno de silêncio, o verbo mostra a espessura da pausa. O calor da frase é o êxtase de um vulcão. Que expele anagramas em brasas, o tempo todo.” – fragmento de “Clusters”, conto-canto de Beatriz Ramos Amaral no seu criativo “Os fios do anagrama” (SP, RG Editores, 2016), livro que não se acomoda aos padrões mediano-convencionais dos meros “contadores de história”.
Beatriz (poeta-ensaísta-musicista) não narra apenas. Seus textos evidenciam preocupação com a linguagem e com a estrutura, ímpeto experimental. Daí, o feliz (e equilibrado) encontro, no seu livro, de conto e canto, como assinalado acima – ou seja, de fabulação e linguagem, numa autora com plena consciência da evolução de formas na prosa (as profundas transformações que este gênero sofreu, a partir do século 20 – remember as obras de Proust, Joyce, Kafka, Borges etc., ou ainda do nosso mais importante ficcionista, Guimarães Rosa, poeta da prosa, em nada a dever aos outros citados aqui, em termos de criatividade).
Os textos de Beatriz (talvez a desgastada palavra conto não dê conta de definir sua instigante escritura) “são pulsações rítmico-fônicas, prenhes de efeitos líricos e imagens plásticas” – como observa, certeiramente, Maria Cecília de Salles Freire César (Mestre em Comunicação e Semiótica – PUC-SP e Doutora em Estudos Comparados – USP) no seu prefácio. “Se o poema explora e potencializa o branco no papel, o silêncio e a palavra, a prosa enreda o leitor no desenho labiríntico da frase”, acrescenta Maria Cecília.
Chamaram minha atenção, particularmente, “Valladolid” – bela e breve prosa geopoética, na qual se percorrem frases como se percorrem os bairros (Vadillos, Delicias, San Isidro etc.) da cidade espanhola, trazendo à lembrança as Impressiones y paisajes de Lorca; “Os fios do anagrama”, que dá título ao volume, onde personagens de nome anagramático – Laerte e Arlete (“tão gêmeos” quanto os mitológicos Castor e Pólux) – “habitam casas geminadas de um bairro onírico e ruminam problemas psicoemocionais inusitados”; “Pas de deux”, dança do intelecto e da intuição entre as palavras, “fragmentada dança”, espécie de coreo-grafia (se isto é possível); e “Clusters” – acorde verbal-sonoro formado por palavras consecutivas, não narração: “o calor da frase é o êxtase de um vulcão”.
Também “Polifonia” – tragicômica “torre de Babel de uma linha cruzada telefônica”, como bem definiu Maria Cecília na sua introdução; “Portal de anáforas”, onde a repetição da mesma palavra ou grupo de palavras no princípio dos parágrafos forma um “idioma das vertigens” que des/orienta o leitor-navegante; “Tarde em Algiz”, conto que enreda e surpreende aquele que o lê – vai de uma leitura de runa a uma possível ruína; e “Móbile” – palavras como móbiles (evocação verbal de Calder?) suspensos por fios que se movem com as correntes de ar: “o texto como a porta de uma sala eventual, na concretude habitada pelos signos, vozes, pela visceral emissão das vogais”.
Ainda se destacam os contos “Bequadro” – onde há algo de realismo mágico –uma espécie de “acidente” musical-vivencial, no qual se rasgam “páginas em pedaços pequenos de dimensões similares” (bequadradinhos?); “Un ballo in maschera” – narrativa rápida e aflita, apenas alguns fatos antes dos atos da ópera, no corre-corre do dia, onde um guarda-chuva vermelho surge como na famosa gravura de Goeldi, “contrastando com o tom cinzento do dia”; “Filatelia”, título que rima com diplomacia e com a aposentadoria do Dr. Gregório – embaixador que “arruma as gavetas”, apressado, premido pela mulher que o espera para jantar e pela “navalha da memória”; e, finalmente, “Círculos”, quase poema em prosa, borgiano, que perpassa, memorialisticamente, “a transmutação das formas circulares”.
Apesar de ter sido lançado em 2016, o livro de Beatriz Amaral quase passou despercebido pela crítica e pela mídia literária mais relevante. Infelizmente, só agora, dois anos depois, tomei conhecimento dele e pude fazer essas rápidas observações. Boa surpresa, sem dúvida, no panorama de nossa prosa contemporânea, “Os fios do anagrama” se impõe como leitura-desafio.
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[Os Fios do Anagrama, contos, RG Editores, 1ª. Edição. Pedidos: por telefone (011) 3230-8676, 3106-6275 ou por e-mail: pedidos@rgeditores.com.br ou rgeditores@rgeditores.com.br]
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Carlos Ávila (BH, 1955) é poeta e jornalista. Autor, entre outros, de Bissexto sentido, Área de risco, Poesia pensada e Anexo de ecos. Foi editor do Suplemento Literário/MG e participou de mais de vinte antologias no país e no exterior. E-mail: avila.carlos@terra.com.br
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