Empresto do visitante
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Contra o gelo do mainstream poético
Frédéric Martel afirma, no livro Mainstream – a Guerra Global das Mídias e das Culturas (2012), que a poesia morreu, embora sobreviva em pequenos nichos sociais, sem influência alguma sobre a sociedade. Acrescento: ela, no Brasil, quase sempre feita em prosa de comunicação, não traz, em si mesma, instrumentos culturais concretos e eruditos a permitir o confronto com tal quadro. Há exceções e, entre elas, encontra-se a poesia de Ronald Augusto, um pensador independente. Seus poemas revelam leitura atenta de algumas tradições, para reativá-las de modo crítico, a desafiar a ordem vigente da indústria do entretenimento e o status quo da própria poesia, hoje, submetido a esta ordem da diversão, do subjetivismo e do narcisismo, efêmeros. Um penduricalho opaco e amador.
Ronald confronta registros cultos, das vanguardas históricas, com a linguagem refinada da estirpe mais sofisticada do samba, de um Ismael Silva ou de um Lupicínio Rodrigues. Sua poesia, no entanto, não se propõe a fazer uma síntese previsível dessas dicções, mas, ao contrário, tensioná-las: “despachem-no / desprezando o canhoto do recibo / para o exílio feito ovídio / nasão sem bilhete de volta / vai dar com os quatro costados / no duro de terras frias / que se ocupe em representar / a fusão das geleiras / onde ainda não há / esperança de degelo”. Ronald Augusto tenta, então, provocar um degelo (o da neve da indústria do entretenimento e o do statu quo poético brasileiro), para reafirmar os valores críticos e recuperar, na medida de seu possível, a voz pública da poesia.
Régis Bonvicino
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Poemas do livro Empresto do Visitante
onde anda todo o presente
frete carga de
caminhões ordinários
bobinas (sex appeal do privado e
do público) bombardas de
papel-jornal papel-moeda
para os diários de larga circulação
ágio de páginas
colunas que suportam a carta
(sacudidora) da terra
*
a terra pulsou sob o impacto do corpo
alguém levou pela frente
uma pernada do capoeira
trocar por cobre discursivo
a pertinácia resoluta
do seu ouro corporal?
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gaiola de vértebras
o que diz respeito a terceiros (e obduram
obscurecendo significados) leva a conselho
o que compete apenas a ti
e por alguém que recuse
guarda-o
na gorilla cage do peito
por prazo que não dê asas à traça vizinha
ideografia cabinda:
o coração não prefixe os
seus dias solvido
nos traços de um cadeado
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edótica particular
além do ermo ponto onde não faz
sombra ruína nenhuma de cultura
onde não se trova contrato humano
ali mais que o diabo resmia o miúra
(aparas de uma canção do patíbulo)
*
na estrada batida
se enfrasca como em refrega e enfia por
sendas menos balizadas do que alisadas
por sola de escória
deixou para trás à sua esquerda mão
via que se renova sob demãos
renitentes de retinto asfalto
e paira em seguida
ligeira como o pensamento
fina poeira cor de tijolo bem acima dos joelhos
película sobre a qual o dedo índice
esboça uma tatuagem
drago pernilongo de cauda fendida
*
despachem-no
desprezando o canhoto do recibo
para o exílio feito ovídio
nasão sem bilhete de volta
vai dar com os quatro costados
no duro de terras frias
que se ocupe em representar
a fusão das geleiras
onde ainda não há
esperança de degelo
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OBS.:
O livro será lançado no dia 16 próximo, às 19h, no bar Canto Madalena, Vila Madalena, Rua Medeiros e Albuquerque, pela editora Patuá.
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Ronald Augusto poeta, músico, editor e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) eNo assoalho duro (2007). Dá expediente nos blogs: http://poesia-pau.blogspot.com ehttp://poesiacoisanenhuma.blogspot.com. É diretor associado do website http://sibila.com.br

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