Elegias para os anos 60 e 70


ELEGIAS PARA OS ANOS 60 E 70 EM DOIS LIVROS FUNDAMENTAIS

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Dois livros que li de cabo a rabo, quase de um fôlego só, têm uma afinidade: falam de ideais artísticos, existenciais, comportamentais dos anos 1960 e 1970 que sucumbiram à indústria cultural – pois esta soube devorá-los cinicamente – ou que morreram porque seus próprios representantes não souberam evitar o perigo da egolatria, do sucesso corruptor, do dinheiro em quantidades astronômicas e das drogas.

“Ponto final”, de Mikal Gilmore, jornalista e crítico de música da Rolling Stone americana (Cia. das Letras, 439 páginas) e “Como a geração sexo, drogas e rock´n roll salvou Hollywood- Easy Riders e Raging Bulls”, de Peter Biskind (Intrinseca, 502 páginas) são livros minuciosos e volumosos, daqueles que não dá para carregar por aí facilmente, e serão melhores lidos em casa, com cuidado e lentidão. Interessam apaixonadamente a quem gosta de rock´n roll e de cinema e nasceu, como eu, numa geração que era bem jovem (e vulnerável aos sonhos que corriam pelo ar) naquela época de Beatles, Stones, Dylan, Hendrix no rock ou de Coppola, Scorsese, Spielberg, Hal Asby, Friedkin e outros no cinema.

As novas gerações devem ter uma impressão diferente, lendo esses livros – afinal, não se envolveram tanto com os sonhos representados por esses ícones, podem curti-los e admirá-los à distância, porque boa parte nasceu num mundo artístico já vencido pela indústria, pelo mercado, culturalmente domesticado, sem ideologia outra que não a felicidade via enriquecimento pessoal e consumismo.

Deve parecer estranho para os jovens de hoje em dia que alguém possa ter objeções ao sucesso e a ser “engolido pelo Sistema”, já que a fama e o dinheiro se tornaram ideais tão automáticos que nem mais se cogita disso, e ser engolido parece, ao contrário, ser assimilado, encontrar um eixo, um público, desfrutar do melhor que a vida tem a dar. Na verdade, ídolos de rock e do cinema não têm mais nada de “contracultural”, são hoje em dia o próprio Sistema, ele todo matreiro, sedutor e envolvente com seus apelos e permissões a uma individualidade irrestritamente vivida. Décadas e décadas de narcisismo como prioridade ideológica, de Eu Futebol Clube, praticamente deixaram as pessoas indiferentes a criticar aquilo que as atrai – a integridade é facilmente trocada pelos pratos de lentilha douradas à disposição por toda parte. Mas é preciso compreender que por trás disso há uma história longa e dramática de vitórias questionáveis, grandes derrotas e combatentes tombados.

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“PONTO FINAL”: UM TÍTULO MUITO APROPRIADO
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Começo por “Ponto final” (o subtítulo é “Crônicas sobre os anos 1960 e suas desilusões”). Trata-se do livro de um jornalista de rock´n roll da Rolling Stone americana, e seu americanismo é patente e por vezes pode irritar. Os ídolos e ícones da música daquelas décadas que mereceram ensaios de Mikal Gilmore são, por vezes, ídolos e ícones que nunca chegaram a ter importância no Brasil. Por exemplo, o Grateful Dead e seu líder, Jerry Garcia – apesar de toda a fama, este grupo jamais chegou direito aos nossos ouvidos jovens naqueles anos. Nem ouvimos, nos anos 70, gente como Allman Brothers, Johnny Cash, Phil Ochs, ou lemos Hunter S. Thompson e Ken Kesey, ou chegamos a venerar Leonard Cohen, menestrel depressivo de público restrito. Quem nos tocou mais de perto, na lista dos artistas abordados? Certamente, Os Beatles, o Led Zeppelin, o Pink Floyd, Bob Marley, Dylan. Eu particularmente gostei da parte intitulada “Os Beatles: O auge e o legado”, em que há uma análise excelente da tremenda importância que o álbum “Sgt.Pepper´s Lonely Hearts Club Band” teve para todo mundo.  Além disso, há ensaios isolados sobre George Harrison e John Lennon que estão entre os mais reveladores e significativos que se possa querer.

O problema do americanismo de Mikal é compreensivo, já que se trata dos ensaios de uma revista voltada para a América, seu público e seus problemas peculiares. Mas acredito que muitos leitores brasileiros vão pular grandes pedaços do livro para lerem sobre aqueles ídolos que lhe tocaram mais de perto, como eu fiz, tendo pelos outros um interesse menor. Constatei o mesmo problema no livro “1001 discos para ouvir antes de morrer”, com seleções feitas por Michael Lydon, editor e co-fundador da mesma revista. Nesses 1000 discos, encontrei omissões a grupos ingleses essenciais como Procol Harum e Moody Blues, donos de álbuns antológicos, e inúmeras, abundantes e irrelevantes citações de grupinhos americanos novos de que nunca ouvi falar e que não me daria ao trabalho de conhecer. Portanto, é irônico que haja tanta coisa dispensável, inútil, supérflua, numa coletânea com um título tão ambicioso.

Mas isso reflete a própria história do rock e do pop. As décadas posteriores aos 60 e 70 foram de avalanche industrial absurdamente opulenta, de tal modo que a exaustão tomou conta, com o excesso de saciedade e tédio que o consumismo cultural promove e provoca. Eu simplesmente parei de me interessar por novos nomes, atitudes e grupos que era necessário ouvir porque algum crítico os considerava fundamentais (quando na verdade caíam no descartável de todos os outros); minhas últimas predileções nos anos 80 e 90, sustentadas até hoje, foram os Talking Heads e o gênio Peter Gabriel.

Não acho que tenha perdido muita coisa do que veio depois. Coisas surgidas nos anos 90 e no novo milênio não mexeram comigo ou nem me dei conta delas, enjoado por antecipação de tanta oferta, tanta vitrine. Os Michael Jacksons e Madonas sempre me pareceram produtos-apenas-produtos, feitos já não para provocarem sonhos de mudanças do mundo como os Beatles sugeriam e nós acatávamos, mas para puro entretenimento, explosões de ego, afetação, riqueza obscena e lantejoulas, e assim com milhares de outros astros.

“Ponto final”, portanto, é um livro que pode ser lido com muito proveito em certas partes e com tédio ou indiferença em outras. As revelações são, por vezes, sensacionais, por vezes deprimentes. Distância e experiência me fizeram suspirar, nostálgico, às vezes, e às vezes achar tudo extremamente infantil, pretensioso (tantos sonhos absurdos!) e digno de um balançar incrédulo da cabeça, marcado pela ironia e pela tristeza. O problema, para jovens que têm seus ídolos e não podem deixar de tê-los, é a veneração fanática que, com o tempo, será substituída por uma sobriedade melancólica, já que não há deuses, não há criaturas sobre-humanas neste mundo – há por certo grandes artistas, mas feitos de carne e osso, de “comicidade e miséria” (como dizia Thomas Mann), o que seus admiradores demorarão a perceber, mas perceberão um dia inevitavelmente, entre lamentos. Eles, decididamente, não são melhores que o resto da humanidade.

 

TALENTOS E CORAÇÕES ESMAGADOS

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“Como a geração sexo, drogas e rock´n roll salvou Hollywood”, de Peter Biskind, ex-editor-executivo da revista “Premiére” e editor-chefe da “American Film” é bem mais contundente e não tem medo de contar histórias que nos revelam que alguns sujeitos muito famosos que admirávamos eram verdadeiros monstros de ganância e egolatria. Caso do diretor William Friedkin, de “O exorcista”, por exemplo. Não por acaso talvez, a crítica Pauline Kael considerou esse filme feio, assustador de fato (no pior sentido) e deprimente, um verdadeiro “triunfo da insensibilidade”, a prenunciar coisas piores, nos anos 70. E depois dele, como se viu, o horror obsceno, a superstição estúpida, o entretenimento sádico e a nojeira dominaram o cinema de terror decididamente.

É um livro tremendamente interessante, para estudiosos do cinema, porque acompanha de perto, por dentro das vísceras, na verdade, o que foram as carreiras de diretores como Coppola, Scorsese, Hal Ashby, Dennis Hopper, Bob Rafelson, Peter Bogdanovitch e vários outros, alguns sobreviventes, outros não. É interessante de fato ler um livro desses num momento em que Coppola, tendo praticamente parado de filmar, volta a fazer um filme de baixo orçamento, “Tetro”, rodado na Argentina, e passa pelo Brasil dando entrevistas que revelam o quanto ele desejava simplesmente fazer cinema a seu jeito, com liberdade, e como o bilionário megalomaníaco que foi o impedia, naquele tempo.

Ele não foi um caso isolado, mas certamente foi o grande gênio e aglutinador dessa geração que chegou à Hollywood decrépita dos anos 60, dominada por baboseiras de Doris Day e Rock Hudson, musicais falidos e filmes de guerra, épicos e bíblicos incapazes de convencer quem quer que fosse. Hollywood estava no “bico do corvo” e filmes dos fins dos 60 e inícios dos 70 como “Sem destino”, “Cada um vive como quer”, “Ensina-me a viver” etc, refletindo os valores anárquicos e provocadores da contracultura, botaram tudo de ponta-cabeça. Os velhos produtores e astros detestavam aquilo tudo profundamente (e muita gente vai se surpreender com o puritanismo revelado por essa gente, mostrando uma América horrível e inapelavelmente hipócrita que sempre foi de adorar o dinheiro e ter horror ao fracasso e à arte – em suma, totalmente filistéia). De pequenas produções quase marginais gente como Coppola, Spielberg, Lucas foi saltando para blockbusters como “O poderoso chefão”, “Star wars”, “Tubarão”. Hollywood precisava do dinheiro (fabuloso) e do sucesso (esmagador) que esses filmes deram, da recuperação que eles significaram.

Mas, aí está o dilema: a assimilação de gente rebelde, anti-Sistema, que queria fazer arte na cartilha do cinema europeu e era influenciada por um crítico favorável à Nouvelle Vague como Andrew Sarris, e também pela excelente Pauline Kael, foi apenas uma nova forma astuciosa de triturar talentos e construir egos infladíssimos, seduzidos pelo poder, a fama e as drogas.

Um exemplo foi Warren Beatty, cujo instinto para a mudança revelou-se em plenitude com “Bonnie & Clyde”, mas foi se tornando apenas um astro narcisista, no sentido mais fútil do termo, sucumbindo a porcarias frívolas como “O céu pode esperar” e desejando perpetuar-se com um equívoco como “Reds”, visão bem hollywoodiana do comunista John Reed. Na verdade, o livro sugere que o lixo dos velhos astros, diretores e produtores já de bengala, cegos, loucos delirantes ou à porta da morte, simplesmente foi substituído por um novo lixo, sem alterar tão fundamentalmente as bases do Sistemão vicioso.

Steven Spielberg, principalmente, louco por um cinema de entretenimento sem maiores compromissos, embora seduzido parcialmente pelos ideais artísticos de Coppola, Scorsese & Cia, tornou-se o grande nome popular desses tempos porque a indústria e seu glamour eram tudo o que queria. Coppola se estrepou por projetos napoleônicos e dívidas assustadoras. Friedkin, de “O exorcista” e “Operação França”, afundou devido a um egocentrismo sem limites e a uma franqueza violentamente suicida no trato com produtores poderosos. Martin Scorsese foi ao fundo do fundo das drogas e sua recuperação, com um filme como “Touro indomável”, nunca foi convincente em termos populares – portanto, sua luta para conciliar arte e indústria prosseguiu, e não é certo que tenha se resolvido até hoje (eu particularmente acho filmes como “O aviador” e “Ilha do medo” uns fiascos pomposos). Dennis Hopper era um louco de sérios instintos homicidas de quem até mulher e filhos fugiam. É curioso como sua história pessoal se ajusta perfeitamente àquele personagem perfeito que David Lynch lhe deu em “Veludo azul”, quando sua carreira de diretor já fora enterrada e ele voltava com tudo como ator. O caso mais trágico e comovente parece o de Hal Ashby, vítima daqueles anos, que as drogas simplesmente reduziram a nada. Não foi um diretor sensacional, mas deixou saudade com filmes como “Ensina-me a viver” e “Muito além do jardim”.

Em suma, “Como a geração sexo,drogas e rock´n roll salvou Hollywood” é um manancial de informações importantes (e seu lado de fofocas não chega a prejudicá-lo, porque tudo parece muito bem documentado). É preciso conhecer este livro. Muitos mitos podem cair com sua leitura, mas isso nunca é menos que saudável, ao menos para pessoas dispostas a viver sonhos artísticos, no novo milênio, com a devida lucidez. Que hoje implica em carregar às costas mortos muito lamentados, com um luto resignado e uma disposição resistente para viver “a vida apenas, sem mistificações”.

 

 

 

 

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Chico Lopes nasceu em Novo Horizonte, SP, em 1952, está radicado em Poços de Caldas desde 1992. Em Poços, é programador e apresentador de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles desde 1994. Tem vários livros inéditos de ensaios sobre filmes e literatura, além de ter publicado três livros de contos: “Nó de sombras” (2000), “Dobras da noite” (2004) e “Hóspedes do vento” (2010). Em 2011, deve estrear na publicação de novelas e romances. E-mail: franciscocarlosl@yahoo.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. Daniel Lopes, Valeu a dica Chico. Mais dois livros que entram para a lista de leituras obrigatórias e que abordam temas do meu coração: Música e Cinema. Além disso, de calcanhar, deixa a bola para pensarmos o fazer o artístico no novo milênio: profissão de fé.
    25 abril, 2012 as 16:57

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