É assim que se faz a história


A meio de uma semana que promete coisas bonitas (mais austeridade, amigos falecidos, milhões cifrados a circularem nas aquisições dos clubes da magna bola…) fazendo um périplo arrumador pelos escaninhos do meu sótão achei mais um poema perdido.

No caso vertente um dado a lume, nos tempos idos de fins de 70, no já desaparecido “A Batalha” do saudoso libertário Emídio Santana. E pouco depois reproduzido por Mário Cesariny num dos proverbiais boletins do então alfacinha-alentejano Bureau Surrealista.

Outros tempos…outros namoros… Embora o país siga sendo quase o mesmo (pior, diz do lado uma voz menos paciente…). Mas adiante!

 

 

Os namorados de Lisboa

(No Largo do Rato)
.

Os namorados

enlaçados

passeiam por Lisboa

com os rostos fechados.

 

Enlaçados

ou de mão na mão:

compenetrados

circunspectos e equilibrados

– estão ambos bem empregados –

…e além disso há a emancipação.

 

É tempo (que felicidade!)

de liberdade e de alegria.

Que serve para esquecer

que depois irão ter

uma data de anos de agonia.

 

Por enquanto passeiam. Miram, remiram

as montras. Tanta coisa bonita!

Assim até amar

– até casar –

é mais de recomendar

e mais catita.

 

Lá vão andando. Ignoram

o seu norte e o seu sul: o símbolo

grego, judaico, egípcio, lusitano.

Sabem é que é preciso

“indispensável, filho, indispensável”

achar apartamento até ao fim do ano.

Por sorte ela já deu c’um senhorio amável…

 

Têm o resto, que bom, mais ou menos tratado.

Até a Avó, que alívio, se lembrou de falecer

– o que vai dar certa ajuda ao ordenado –

Ah!  o velho pé-de-meia bem guardado

que enquanto adolescente ele se lembra de ver!

 

Eis que passeiam, olhando. E trocam gestos

minúcias, uma que outra carícia

sem maldade.

Da parte da polícia

não vai haver protestos

pois não visam lançar a anarquia na cidade.

 

Remiram e procuram, interessados. Ele, tá claro

com expressão de Homem

ela com jeitinhos de Mulher. E ao depois de casados

muito solenes e lavados

(um bocadinho encavacados)

farão então amor

– ele muito senhor

– ela cheirando a malmequer.

 

E seja o que Deus quiser…!

 

Amor do melhor, de confiança

sóbrio, digno e composto

sem tiques, sem toques, sem truques ‘scusados.

Mas com alguns ais

vá lá, dentro do esquema:

– afinal ela já leu, emprestados, alguns manuais

e ele tem ido ao cinema.

 

São bons, são simples, são naturais

sérios e correctos

com um tom português nos rostos mansos.

Mais tarde, ela vai desculpar

outros afectos

ele, compreensivo, vai desculpar

alguns escapanços…

 

Terão muitos rebentos de narizes iguais

ao avôzinho, ao pai, ao primo Florival.

Hão-de oferecer-se prendas em todos os Natais

quando na noite esvoaça uma figura infernal.

 

Em quatro assoalhadas gastarão a sua vida.

E na volta, aos domingos, do passeio de popó

ela às vezes achará que se sente perdida

e ele às vezes sentirá quanto andou sempre só.

 

Morrerão um dia de velhos, aos bocados

estranhos, inquietantes, repletos que nem odres

de vastos silêncios petrificados

p’los vizinhos muito considerados, coitados

inteiramente podres.

 

E terão nessa altura o nome no jornal

e muita, muita gente amiga no funeral.

 

No Largo do Rato passam namorados.

Honrados e serenos, passo miúdo e igual.

 

– Meudeus, meudeus, meudeus

como estamos estragados

(digo-me cá por dentro aos meus botões espantados)

 

Como é triste e ridículo o amor em Portugal!

 

 

 

.

 

 

 

 

 

 

 

 

.

Nicolau Saião é poeta, pintor, publicista e actor/declamador, nasceu em Monforte do Alentejo em 1946. Vive em Portalegre, Portugal. Como pintor participou em mostras de Arte Postal em diversos países (Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Austrália, Mali…), além de ter exposto individual e colectivamente em diversas localidades (Paris, Lisboa, Porto, Elvas, Tiblissi, Portalegre, Messina, Borba, Campo Maior, Sevilha…). Organizou, com Mário Cesariny e Carlos Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”, patente no Teatro de Xabregas e na Soc. Nac. de Belas Artes ( tendo traduzido diversos autores incluídos no livro-catálogo) e, com João Garção, a mostra de mail-art “O futebol”.Está representado em diversas antologias de poesia e pintura. Traduziu “Os fungos de Yuggoth” de H. P. Lovecraft e “Vestígios” de Gérard Calandre, bem como poemas avulsos de Benjamin Péret, Derek Soames, Jules Morot, Emílio A. Westphalen, Jacques Tombelle, Edward Burton, Philipe Dennis, Juan Ramón Jimenez, Philip Jose Farmer, etc. Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes” (Editorial Caminho). Outros livros: “Flauta de Pan, “Os olhares perdidos, “Assembleia geral”, “Passagem de nível”, “Os labirintos do real“ – publicados. “Cantos do deserto”(poemas relacionados com o deserto de Tabernas, Espanha), “As vozes ausentes”(crónicas e textos diversos), “As estrelas sobre a casa”(teatro), “Em nós o céu”(novela policial). E-mail: nicolau19@yahoo.com



Comentários (3 comentários)

  1. Maria Lindgren, Gostei muito do poema. Delicado e verdadeiro, parece que é só maravilha para então mostrar a realidade triste do amor em toda parte, não paenas em Portugal, viu, Poeta? Maria Lindgren
    10 junho, 2013 as 16:50
  2. Emílio Beirão, Divertido, por irónico e justo. Excelente análise duma vivencia de classe feita de preconceito e constrangimento. O que o ambiente beato faz às pessoas, mesmo. Chapelada.
    12 junho, 2013 as 10:53
  3. vicente páscoa, Fresco e bom, Nico. Vai de roda, mano, bacalhauzada boa.
    28 junho, 2013 as 19:35

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